Beata Elisabeth da Trindade e a oração
Atraída desde a infância
Em um campo militar francês – Avor – no
dia 18 de julho de 1880, nasce a primeira filha do Capitão
Catez: Elisabeth. Herdeira de um temperamento pronto à
réplica e próprio de oficiais militares, Elisabeth
tem sua infância caracterizada por uma manifesta e irreprimível
cólera. Contudo, a mãe soube dominar e trabalhar
com energia e amor as reações violentas da filha.
Aos sete anos de idade, sofre a perda do pai, falecido repentinamente,
ficando sua família reduzida apenas à mãe
e à irmã mais jovem, Margarida. Em Dijon, para
onde a família transladara-se desde 1881, Elisabeth
segue uma vida normal, cristã e alegre, entre estudos,
dedicação ao piano e passeios com famílias
amigas.
Desde cedo a busca da vontade de Deus se fez notar em sua
vida e, mais particularmente desde sua Primeira Comunhão,
foi notável seu despertar para as coisas de Deus. Já
no Carmelo, em uma carta à sua mãe, Elisabeth
revela a influência materna sobre sua vida espiritual:
“Mamãe querida, se o amo é porque foi
a senhora que, de certo modo, orientou o coração
de sua pequena para Ele. A senhora me preparou tão
bem para o primeiro encontro, aquele grande dia em que nos
demos totalmente um ao outro!... Muito obrigada por tudo o
que fez” (C 150).
Começou desde cedo também uma acirrada luta
contra seus defeitos dominantes: ira e sensibilidade. Contou
para isso com a ajuda de três fatores: a graça
divina, sua própria vontade – “vontade
de ferro” – e a influência benéfica
de sua mãe.
Ouvindo dentro de si o chamado ao Carmelo, Elisabeth sente-se
atraída cada vez mais à oração
e ao silêncio, e aos 14 anos faz seu voto de pertencer
só a Jesus, consagrando-se virginalmente a Ele. Contudo,
vive com naturalidade as exigências de uma vida social
intensa entre festas e reuniões de toda sorte, sem
que isto lhe desvie de seu ideal. Pelo contrário, sabe
se comportar como se nada estivesse acontecendo em seu interior,
participando de tudo com entusiasmo, dando sempre uma boa
impressão e até sendo pedida em casamento várias
vezes. Sabe adaptar-se maravilhosamente ao ambiente em que
está, evitando sempre a singularidade. Suas cartas
revelam-na alegre e festejada por onde passa, principalmente
durante suas viagens de férias.
Parece um paradoxo ver esta jovem entre tantas festas pensar
e até ansiar pela vida do Carmelo. Conta-nos Elisabeth,
já como carmelita: “Recordo-me, querida mamãe,
que enquanto dançava como as demais e bailava no amplo
salão, estava como obcecada por este Carmelo que tanto
me atraía e onde iria encontrar, um ano mais tarde,
tanta felicidade” (Carta 156).
Aos 21 anos despede-se de seus passeios com uma viagem de
três meses pela França, despede-se também
de seu apostolado nas paróquias de São Miguel
e São Pedro: cuidado dos filhos dos operários
da fábrica de tabaco, a catequese, as visitas aos familiares
das crianças da Primeira Eucaristia e aos enfermos,
o coral etc. Deixa sua querida mãe e irmã e
transpõe para sempre os umbrais do Carmelo de Dijon.
Nesse Carmelo viveu até a morte, aos 26 anos de idade,
após prolongada doença. Numa vida escondida
e silenciosa consumou sua sede de amor e transformação
em Jesus Crucificado, numa profunda intimidade com a Santíssima
Trindade. Aí descobriu sua vocação de
“Louvor de glória da Santíssima Trindade”,
dizendo ser este o seu nome novo, que traduz toda a sua vida.
“Um louvor de glória é uma alma que permanece
em Deus, que o ama com amor puro e desinteressado, sem procurar
consolações; que o ama acima de todos os seus
dons, e o amaria mesmo se nada tivesse dele recebido...é
uma alma de silêncio que se mantém como uma lira
sob o toque misterioso do Espírito Santo, que nele
tange harmonias divinas. Sabe que o sofrimento é uma
corda que produz sons ainda mais belos, e por isso gosta de
vê-la em seu instrumento, porque assim agradará
mais deliciosamente o coração de Deus”
(CT 43).
Irmã Elisabeth sempre foi atraída para o seu
interior. Com plena consciência de ser um templo habitado
pelo próprio Deus, esforçou-se por aquietar
seu mundo interior, numa atenção de amor ao
Senhor. Suas numerosas cartas revelam um coração
sensível e cheio de amor, terno e mergulhado no mistério
que a envolve.
“Encontrei o meu céu na terra, pois o céu
é Deus e Deus está na minha alma. No dia em
que o compreendi, tudo se tornou luminoso para mim e eu gostaria
de confiar este segredo, bem baixinho, àqueles que
amo” (Carta 107).
O que é oração?
Cada pessoa tem sua identidade, e esta identidade se estende
também à área espiritual. Ou seja, como
todos temos nossa maneira peculiar de agir, de nos relacionar
com o outro, de expressar nossos sentimentos e afetos, também
temos nosso modo pessoal de viver a intimidade com o Senhor.
Ainda que o carisma do Carmelo Descalço seja o mesmo
para todos e todas que se propõem a seguir a Jesus
nesta Ordem, cada carmelita tem seu modo ‘personalizado’
de vivê-lo, segundo as próprias características
e de sua época e lugar onde vive. Assim, vemos como
Santa Teresa de Jesus, São João da Cruz, Santa
Teresinha, Elisabeth da Trindade e tantos santos desta mesma
Ordem viveram a oração com sua peculiaridade
própria, contudo dando matizes diferentes à
sua forma de expressar. Para Teresa de Jesus, oração
é um trato de amizade com Aquele que sabemos que nos
ama; para Teresinha, é um impulso do coração
para Deus...
Para Elisabeth da Trindade, oração “é
aquela elevação da alma a Deus em todas as coisas,
que nos coloca numa espécie de contínua comunhão
com a Santíssima Trindade, levando-nos, assim, a fazer
tudo com simplicidade, sob o seu olhar” (C 191).
Em outro lugar, diz a uma jovem leiga: “Não é,
porventura, verdade que sua alma sente a necessidade de fortalecer-se
na prece, sobretudo na oração, nesse íntimo
diálogo cordial em que a alma se derrama em Deus e
Deus nela, a fim de transformá-la nele?” (C 234).
Vemos que, para a carmelita de Dijon, oração
e comunhão são a mesma coisa. Oração
é amor, e quem ama deseja identificar-se com a pessoa
amada. Também o orante sente em si esse desejo de identificação
com o Senhor, que o atrai ao deserto e lhe fala ao coração.
Elisabeth da Trindade chegou ao cume de uma vida oracional,
à união transformante – ou matrimônio
espiritual – onde é o próprio Deus quem
age e toma para si o ser inteiro da pessoa que se entrega.
Seu desejo de transformação em Jesus Cristo,
e Jesus crucificado, foi plenamente realizado e muito rapidamente
Deus consumou sua obra na vida de Elisabeth, que se sentia
“esposa do crucificado” e se apossou totalmente
desse novo estado de vida.
Oração como amor esponsal
“Ser esposa de Cristo! Não é só
a expressão do mais doce dos sonhos: é uma realidade
divina: é a expressão de todo um mistério
de semelhança e união”. Com esse texto,
escrito em 1902, vemos sintetizado o pensamento de Elisabeth
da Trindade sobre o amor esponsal a Jesus Cristo. De fato,
se no relacionamento dos esposos dentro do sacramento do matrimônio
pode-se experimentar esta realidade de semelhança e
união, ao ponto que, após alguns anos de convivência
no verdadeiro amor, um já se assemelhe ao outro e se
entendam mesmo à distância e sem usarem as palavras,
muito mais num relacionamento com Deus.
Como o Verbo de Deus quis se assemelhar em tudo ao homem –
com exceção do pecado – e para isso se
encarnou e “armou sua tenda” no meio de nós,
também o coração de Elisabeth tem esse
sonho de identificação. E o realiza total e
profundamente. De fato, no fim de sua vida, quando a doença
já havia realizado nela toda uma obra de destruição
física, suas Irmãs da comunidade do Carmelo
de Dijon atestam que pareciam ver o próprio Crucificado
estendido naquela cama. O amor tem a característica
de transformar em si tudo o que toca.
Elisabeth elenca outras características do amor esponsal
em suas obras. Já na sua célebre “Elevação
à Santíssima Trindade”, diz a Jesus Cristo:
“Ó meu Cristo amado, crucificado por amor; quisera
ser uma esposa para vosso coração, quisera cobrir-vos
de glória, amar-vos... até morrer de amor! Sinto,
porém, minha impotência e peço-vos revestir-me
de vós, identificar minha alma com todos os movimentos
da vossa, submergir-me, invadir-me, substituir-vos a mim,
para que minha vida seja uma verdadeira irradiação
da vossa”.
É próprio do amor não buscar a própria
glória. O egoísmo é o oposto do amor,
e quem ama esquece-se para que o outro seja. “Convém
que ele cresça e eu desapareça”, dizia
João Batista sobre Jesus. E as pessoas que vivem o
amor sabem desaparecer – sem que isso signifique anular-se
como pessoa – para que o outro seja “coberto de
glória”.
Sentem-se felizes ao ver isso se realizar, porque já
se supõem uma mútua comunhão de dons.
O que é de um é também do outro, e esta
já é outra característica do amor esponsal
apresentada por Elisabeth. “Ser esposa quer dizer abandonar-se
como Ele se abandonou; quer dizer ser imolada como Ele, por
Ele e para Ele – o Cristo se torna totalmente nosso
e nós nos tornamos totalmente Dele”. Já
não mais existe o “meu” e o “teu”,
tudo o que é de um pertence ao outro e vice-versa.
Vemos na carmelita de Dijon uma delicadeza de percepção
das realidades humanas do desponsório para depois transpô-las
ao âmbito espiritual com simplicidade e profundidade.
“É fixá-lo (o Esposo) sempre com o olhar
para perceber o mínimo sinal e o mínimo desejo;
é entrar em todas as suas alegrias, condividir todas
as suas tristezas. Quer dizer ser fecundos co-redentores,
gerar almas para a graça, multiplicar os filhos adotivos
do Pai, os redimidos por Cristo, os co-herdeiros de sua glória”.
Assim como é próprio do matrimônio a fecundidade,
também no amor esponsal não pode haver esterilidade.
“Pelos frutos os conhecereis”, dizia Jesus. E
o fruto de um amor desse quilate são as almas conquistadas
para o Reino. Por isso, quem atingiu esse grau de comunhão
com Deus não pode ficar ocioso.
Quer trabalhar e se consumir para que todos possam encontrar
esse “tesouro escondido”. A salvação
das almas torna-se uma espécie de “obsessão”
em sua vida. Faz tudo o que pode e sabe, para cativar as pessoas
para Deus. Quer se consumir pelos irmãos assim como
seu Esposo o fez numa cruz.
“Quantas coisas esse nome (esposa de Cristo) evoca sobre
o amor dado e recebido, sobre a intimidade, a fidelidade,
a dedicação absoluta!” Além dessas
características até agora citadas, existe uma
que resume e engloba todas as demais: a UNIDADE. De fato,
não existe verdadeiro matrimônio sem uma total
unidade. Os méritos de Jesus Cristo, as promessas,
as palavras, o amor, enfim, tudo que lhe pertence se torna
posse da esposa e tudo que é da esposa – dons,
fraquezas, sonhos, ideais, limitações etc. –
é assumido pelo Esposo. Por isso, tudo o que toca a
Ele toca também a ela. É o mistério do
amor que faz de dois UM.
Deus vai preparando a pessoa para este cume de um relacionamento
no amor, que os místicos chamam “matrimônio
espiritual”, e está magistralmente descrito nas
sétimas moradas do livro “Castelo Interior”,
de Santa Teresa de Jesus. Elisabeth entendeu-o bem, por isso
encerra sua descrição de uma “esposa de
Cristo” com estas palavras: “Quer dizer o Pai,
o Verbo e o Espírito que invadem a alma, deificam-na,
consomem-na no UM por amor. Quer dizer matrimônio, o
estado estável, porque é a união indissolúvel
das vontades e dos corações. E Deus disse: Façamos
uma companhia semelhante a eles: eles serão dois num
só ser”.
Em conclusão, vemos como a Beata Elisabeth estava consciente
de sua missão de esposa junto ao coração
de seu Esposo Jesus. Ela emprega esta expressão muitíssimas
vezes em seus escritos e cita o livro bíblico do Cântico
dos Cânticos também muitas vezes – livro
que inspirou a tantos místicos no concernente à
doutrina sobre o mais elevado grau de intimidade com Deus
como sendo o matrimônio espiritual. Deus, ao criar o
homem, capacitou-o a viver esse misterioso relacionamento
de amor esponsal com Ele. Dando-lhe o Espírito Santo
transformou-o em templo da Santíssima Trindade pelo
Batismo e o convida de diversos modos a entrar em comunhão
de amor com Ele. O homem, por sua vez, traz em si uma sede
insaciável de infinito, sede do próprio Deus
e busca, apesar das limitações impostas por
sua condição de pecador, esta união plena
com o Senhor num amor forte, transformante e unitivo.
Mestra da oração
Quem encontra o tesouro vai, vende tudo o que possui e volta
para comprá-lo, mas depois não pode mais mantê-lo
escondido, deve fazer a luz iluminar a todos, colocando o
candeeiro sobre a mesa. Uma vida oracional tão profunda,
chegando à união transformante de que fala São
João da Cruz, não poderia ficar confinada apenas
ao interior da própria beata Elisabeth da Trindade.
É preciso responder a tamanho amor e gratuidade do
Senhor com as obras. “Obras quer o Senhor”, dizia
Santa Teresa de Jesus para quem chega às sétimas
moradas de seu “Castelo Interior”.
Elisabeth não retém para si as graças
que Deus lhe concede – sobretudo a de uma oração
profunda e adoradora –, mas convida a todos, sacerdotes,
leigos, jovens e adultos a buscar ao Deus Trindade que habita
em seus corações pelo Batismo. Suas cartas são
páginas do mais fino e delicado apostolado entre suas
amigas e amigos. Abre a cada um deles um leque de possibilidades
para o encontro com o Senhor em meio aos afazeres normais
da vida que levam. Sua missão é atrair as pessoas
ao interior de si mesmas para o encontro pessoal com Deus.
A partir daí o próprio Senhor se encarrega de
fazer sua transformação em suas vidas.
Os conselhos que dá a uma amiga revelam esse transbordamento
de sua vida interior: “Sim, querida senhora, vivamos
com Deus como com um amigo. Procuremos avivar a nossa fé
para comunicar-nos com Ele através de todas as coisas,
pois assim conseguiremos a santidade. Carregamos o céu
dentro de nós... parece-me ter encontrado o meu céu
na terra, porque o céu é Deus e Deus está
na minha alma. O dia em que compreendi isso, tudo se iluminou
dentro de mim e muito gostaria de sussurrar esse segredo àqueles
que amo, para que também eles, através de todas
as coisas, se unam sempre a Deus e se concretize aquela oração
de Jesus Cristo: ‘Pai, que sejam perfeitos na unidade’
(Jo 17,23)” (C 107).
Ainda que sem esse título, Elisabeth da Trindade é
‘mestra’ na vida de oração. Basta
tomar algum de seus escritos e todos nos sentimos envolvidos
por um clima de interioridade. Nesta época em que vivemos,
entre tantos desafios e questionamentos, Elisabeth nos desperta
ao amor puro e genuíno para com o Senhor, para que
possamos depois irradiá-lo, sendo agentes de transformação
deste mundo.
Irmã Maria Elizabeth da Trindade, OCD – Carmelo
S. José – Passos(MG)