10º Domingo do Tempo Comum - Ano
B
Neste 10º Domingo do Tempo Comum,
a Palavra de Deus leva-nos a meditar sobre a nossa resposta de vida ao projeto
de Deus para nós, na liberdade de optar pelo bem e pelo mal.
O Evangelho centra o nosso olhar
na pessoa de Jesus, que os seus conterrâneos, entre eles tantos familiares, não
aceitaram como enviado de Deus e não perceberam, até se opuseram, à vontade de
Deus revelada em Jesus. Na
caminhada da fé, cada um é livre de optar: ou ficar pelos dispersos sentidos de
vida, ou permanecer na única família de Jesus, de «quem quiser fazer a vontade
de Deus».
A segunda leitura realça que,
para o cristão, viver só faz sentido na certeza da ressurreição, na caminhada
de vida interior que se renova dia a dia em perspcetiva da etermidade.
Neste horizonte neo-testamentário,
meditemos em particular a primeira leitura que nos mostra, recorrendo à
história mítica de Adão e Eva, o que acontece quando rejeitamos as propostas de
Deus e preferimos caminhos de egoísmo, de orgulho e de auto-suficiência… Viver
à margem de Deus leva, inevitavelmente, a trilhar caminhos de sofrimento, de
destruição, de infelicidade e de morte.
LEITURA I – Gen 3, 9-15
O relato jahwista de Gn 2,4b-3,24
sobre as origens da vida e do pecado (ao qual pertence o texto que hoje nos é
proposto como primeira leitura) é, de acordo com a maioria dos comentadores, um
texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão.
Apresenta-se num estilo exuberante e vivo e parece ser obra de um catequista
popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes.
Não podemos, de forma nenhuma,
ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na
aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas
teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer
dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh e que na origem do mal e
do pecado estão as opções erradas do homem. Trata-se, portanto, de uma página
de catequese.
Esta longa reflexão sobre as
origens da vida e do mal que desfeia o mundo está estruturada num esquema
tripartido, com duas situações claramente opostas e uma realidade central que
aparece como charneira e ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte…
Na primeira parte (cf. Gn 2,4b-25), o autor descreve a criação do paraíso e do
homem; apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde
tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as outras
criaturas. Na segunda parte (cf. Gn 3,1-7), o autor descreve o pecado do homem
e da mulher; mostra como as opções erradas do homem introduziram na comunhão do
homem com Deus e com o resto da criação factores de desequilíbrio e de morte.
Na terceira parte (cf. Gn 3,8-24), o autor apresenta o homem e a mulher
confrontados com o resultado das suas opções erradas e as consequências que daí
advieram, quer para o homem, quer para o resto da criação.
Na perspectiva do catequista
jahwista, Deus criou o homem para a felicidade… Então, pergunta Ele: como é que
hoje conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que desfeiam o mundo? A
resposta é: algures na história humana, o homem que Deus criou livre e feliz
fez escolhas erradas e introduziu na criação boa de Deus dinamismos de
sofrimento e de morte.
O nosso texto pertence à terceira
parte do tríptico. As personagens intervenientes são Deus (que “passeia no
jardim à brisa do dia” – vers. 8a), Adão e Eva (que se esconderam de Deus por
entre o arvoredo do jardim – vers. 8b).
A nossa leitura começa com a
“investigação” de Deus… Antes de proferir a sua acusação, Deus – o acusador e
juiz – investiga, descobre e estabelece os factos.
Primeira pergunta feita por Deus
ao homem: “onde estás?” A resposta do homem é já uma confissão da sua
culpabilidade: “ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu,
tive medo e escondi-me” (vers. 9-10). A vergonha e o medo são sinal de uma
perturbação interior, de uma ruptura com a anterior situação de inocência, de
harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação?
Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles
que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem trai, portanto, o seu segredo
e a sua culpa.
Depois desta constatação, a
segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu
comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em
causa – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” – significa o orgulho, a
auto-suficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir
por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o
reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem,
perturbado e em ruptura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus… É evidente
que o homem “comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho
e de auto-suficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.
Ao defender-se, o homem acusa a
mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que
está (“a mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu
comi” – vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e
na auto-suficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por
outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a
sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio.
Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de
ruptura com Deus e com os outros irmãos.
Vem, depois, a “defesa” da
mulher: “a serpente enganou-me e eu comi” (vers. 13). Entre os povos cananeus,
a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os
israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam
Jahwéh para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a
fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor jahwista
escreve, a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os
levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo
literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Jahwéh. A resposta da
“mulher” confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a
humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e
enveredou por outros caminhos. Achou, no seu egoísmo e auto-suficiência, que
podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas
de Deus.
Diante disto, não são precisas
mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou
poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, totalmente à
margem dos caminhos que foram propostos por Deus.
Que tem Deus a acrescentar? Pouco
mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações
que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos
mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista jahwista sabe que a serpente é um
animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O
autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical
de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a
enveredar por caminhos de egoísmo e de auto-suficiência.
O que é que significa a inimizade
e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente?
Provavelmente, o autor jahwista está, apenas, a dar uma explicação etiológica
(uma “etiologia” é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada
realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso
acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação actual) para o
facto de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar
“esmagar a cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras
uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias)
acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de
graça.
Atenção: o autor sagrado não está
a falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem
e pela primeira mulher; mas está a falar do pecado cometido por todos os homens
e mulheres de todos os tempos… Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os
males está no facto de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir
de critérios de egoísmo e de auto-suficiência. Não conhecemos bem este quadro?
ATUALIZAÇÃO
• Um dos mistérios que mais
questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal… Esse mal que vemos,
todos os dias, tornar sombria e deprimente essa “casa” que é o mundo, vem de
Deus, ou vem do homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus…
Deus criou-nos para a vida e para a felicidade e deu-nos todas as condições
para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de
realização plena.
• O mal resulta das nossas
escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e auto-suficiência. Quando
o homem escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus e
prescindindo do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de
prepotência, de sofrimento, de pecado… Quais os caminhos que eu escolho? As
propostas de Deus fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a
felicidade, ou prefiro ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, à margem das
propostas de Deus?
• O nosso texto deixa também
claro que prescindir de Deus e caminhar longe d’Ele, leva o homem ao confronto
e à hostilidade com os outros homens e mulheres. Nasce, então, a injustiça, a
exploração, a violência. Os outros homens e mulheres deixam de ser irmãos, para
passarem a ser ameaças ao próprio bem-estar, à própria segurança, aos próprios
interesses. Como é que eu me situo face aos meus irmãos? Como é que eu me
relaciono com aqueles que são diferentes, que invadem o meu espaço e
interesses, que me questionam e interpelam?
• O nosso texto ensina, ainda,
que prescindir de Deus e dos seus caminhos significa construir uma história de
inimizade com o resto da criação. A natureza deixa de ser, então, a casa comum
que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para
se tornar algo que eu uso e exploro em meu proveito próprio, sem considerar a
sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para
mim: algo que eu posso explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a
todos os homens e mulheres e que eu devo respeitar e guardar com amor?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 129
(130)
Refrão: No Senhor está a
misericórdia e abundante redenção.
Ou: No senhor está a misericórdia,
no senhor está a plenitude da
redenção.
Do profundo abismo chamo por Vós,
Senhor,
Senhor, escutai a minha voz.
Estejam os vossos ouvidos atentos
à voz da minha súplica.
Se tiverdes em conta os nossos
pecados,
Senhor, quem poderá salvar-se?
Mas em Vós está o perdão
para Vos servirmos com
reverência.
Eu confio no senhor,
a minha alma confia na sua
palavra.
A minha alma espera pelo Senhor
mais do que as sentinelas pela
aurora.
Porque no Senhor está a
misericórdia
e com Ele abundante redenção.
Ele há-de libertar Israel
de todas as suas faltas.
LEITURA II – 2 Cor 4, 13 – 5, 1
A segunda Carta de Paulo aos
Coríntios apareceu num momento particularmente tenso da relação entre o
apóstolo e essa comunidade cristã da Grécia. Algumas duras críticas de Paulo
(na primeira Carta aos Coríntios) a certos membros da comunidade que viviam de
forma pouco coerente com a fé cristã provocaram um certo desconforto na
comunidade, que foi aproveitado pelos opositores de Paulo, que criaram um clima
de hostilidade contra o apóstolo. Paulo foi acusado de estar a cuidar apenas
dos seus próprios interesses e de pregar uma doutrina que não estava em
consonância com o Evangelho anunciado pelos outros apóstolos. Na opinião dos
seus detractores, o facto de Paulo não ter apresentado qualquer “carta de
recomendação” que comprovasse a sua autoridade para anunciar o Evangelho
significava que a doutrina por ele pregada não era digna de fé.
Ao saber do que se passava, Paulo
foi a Corinto; mas essa ida não só não resolveu o problema, como até o
radicalizou. Deve ter havido uma troca violenta de argumentos e de palavras e
Paulo foi gravemente ofendido por um membro da comunidade. Algum tempo depois,
Tito, amigo e colaborador de Paulo, partiu para Corinto com a missão de acalmar
os ânimos e de tentar a reconciliação. Quando voltou, Tito trazia notícias
animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, outra vez, em
comunhão com Paulo. Foi então que Paulo escreveu a nossa segunda Carta aos
Coríntios. Nela, o apóstolo explicava tranquilamente aos Coríntios os
princípios que sempre orientaram o seu trabalho apostólico (cf. 2 Cor 1,3-7,16)
e desmontava os argumentos dos adversários (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Estávamos
nos anos 56/57.
Neste contexto, o texto de hoje
situa-nos na opção pelo sentido da nossa vida em Cristo. Paulo
apresenta duas fortes convicções de fé: «com este mesmo espírito de fé, também
acreditamos, e falamos», que Deus há-de ressuscitar-nos com Jesus e vai
levar-nos para ficarmos eternamente em comunhão com Ele; o homem interior
renova-se em cada dia na medida em que intensifica o seu olhar nas coisas
invisíveis que são eternas. Em consequência, há que renovar constantemente, sem
desanimar, esta opção pela habitação eterna, em comunhão plena com Deus. Coisas
essenciais, ditas de modo claro, a exigir coerência àqueles que querem
continuar a viver como autênticos discípulos de Cristo.
ALELUIA – Jo 12, 31b-32
Aleluia. Aleluia.
Chegou a hora em que vai ser
expulso o príncipe deste mundo, diz o Senhor;
e quando Eu for levantado da
terra, atrairei todos a Mim.
EVANGELHO – Mc 3, 20-35
Jesus continua a percorrer o
espaço geográfico da Galileia e a cumprir a sua missão de anunciar o “Reino”.
Começa, no entanto, a crescer a onda de contestação à sua pregação. Tomando
como pretexto alguns casos particulares cada vez mais insignificantes, os
líderes judaicos manifestam a sua firme oposição à novidade do “Reino”. As
polémicas e controvérsias marcam esta fase da caminhada de Jesus.
De uma forma geral, Marcos narra
as controvérsias seguindo um esquema fixo e sempre igual: começa com a
apresentação da questão, continua com a discussão e termina com um “dito” final
de Jesus. Este “dito” não oferece a mera solução do “caso” em questão, mas é
sempre uma auto-revelação de Jesus, de importância decisiva para a comunidade
cristã do tempo de Marcos e de todos os tempos.
Toda a cena se passa numa “casa”.
Que casa é essa? É uma casa onde Jesus está a pregar a Palavra e é uma casa
onde «de novo acorreu tanta gente, de modo que nem sequer podiam comer». É também
uma casa onde estão sentados/instalados alguns especialistas da Lei (escribas).
A “casa” onde Jesus prega, onde se congrega a comunidade judaica e onde há
escribas instalados, poderia ser uma figura da sinagoga, entendida como
assembleia do Povo de Deus. O facto de se referir que a “casa” em questão
estava situada na cidade de Cafarnaum (o centro a partir do qual irradia a
actividade de Jesus na Galileia) poderia indicar que Marcos está a falar da
comunidade judaica da Galileia, em cujas sinagogas Jesus acabou de passar (cf.
Mc 1,39), anunciando a Boa Nova do Reino. Em qualquer caso, a “casa” representa
essa comunidade judaica a quem Jesus dirige a pregação do “Reino”.
A mensagem evangélica de hoje
apresenta três diálogos de Jesus: dois com os seus familiares, no princípio e
no fim, outro com os escribas, no meio
Fiquemo-nos pelos familiares de
Jesus. Diz-se que vão a Cafarnaum para levar Jesus desta casa onde está para a
sua casa em Nazaré.
Muitas são as razões: muito tempo fora da família, notícias
contraditórias sobre a sua actividade, mensagem em contraste com a doutrina
oficial dos escribas e fariseus, contacto com os pecadores de quem é amigo, não
seguimento da tradição dos antigos nem respeito pelo sábado; enfim, Jesus é
considerado louco e herético. A intenção principal é reconduzi-lo ao caminho
recto de um autêntico judeu.
Há os que ficam de fora e os que
estão dentro. Imagem actualíssima para nós hoje. Podemos andar por fora,
arredios, ficar à porta, até nos chamarmos “católicos não praticantes”. Que
significa isso? Faz sentido? Ou se é ou não se é. Aí está de novo a
radicalidade da opção por Jesus. Ou ficamos for, ou estamos dentro da casa,
unidos a Jesus, a escutá-l’O e a segui-l’O com todo o nosso ser, com todo o
nosso coração.
Em Outubro próximo inicia-se a
celebração do Ano Fé, anunciado há meses por Bento XVI através de um breve mas
belíssimo documento. Aí está: ou entramos na porta da casa, na Porta da Fé, e
continuamos o caminho apenas com Jesus como único nas nossas vidas, ou ficamos
à porta ou a espreitar pelas janelas, continuando a apanhar ou a soprar outros
ventos que não nos centram em Jesus.
Na caminhada da fé, cada um é
livre de optar pela família que quiser: ou ficar pelas famílias que dispersam
do sentido da vida, ou permanecer na única família de Jesus, de «quem quiser
fazer a vontade de Deus».
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