COMO
SÃO FRANCISCO DE ASSIS CELEBRA A SUA PRÓPRIA MORTE
1.
Em Francisco, uma original experiência de Deus
Vocês
conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro de 1226.
Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da natureza toda.
Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno. Da fraternidade
universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com todos, até mesmo com a
morte, à qual ele chama de Irmã.
O
santo que descobriu e viveu profundamente o Amor. Tudo isso e ainda muito mais,
a partir de uma profunda experiência de Deus, atestada pelos seus escritos e os
de seus biógrafos (1). Não o Deus fabricado por especulações filosóficas ou
teológicas, mas o Deus do Evangelho. O Deus de Jesus Cristo. Foi beijando certa
vez um leproso que Francisco sentiu profundamente de que jeito Deus é.
Beijando
um leproso, ele se lembrou de Jesus pobre, desprezado, sofrido, marginalizado,
crucificado, abandonado, só por amor de nós e para nos salvar. Foi beijando um
leproso e lembrando do Jesus “que se fez leproso” (2) por nosso amor, que
Francisco fez esta grande descoberta: Deus é pobre.
Sim,
Deus é pobre! E a Pobreza - com “P” maiúsculo, esse modo característico de Deus
ser! - passa a ser para ele a grande paixão de sua vida, a sua amada, a dama de
sua vida e de suas canções, até a hora derradeira, a morte corporal.
2.
Francisco: uma vida em celebração
A
partir desta experiência de Deus como Pobre e que por isso é Criador e
Salvador, Francisco se tornou um cristão que vivia para celebrar este Deus.
Lendo
os escritos franciscanos mais antigos, notamos como a vida deste santo é toda
pautada pela oração, pelo louvor, pela celebração, por um imenso amor à
Eucaristia e por uma intensa vida de fraternidade. E o fazia criativamente, com
a singeleza e a simplicidade pura de um pobre cheio de Deus.
Adorava
celebrar. E de corpo inteiro. Pondo emoção, afeto, coração, paixão, em suas
celebrações. Por exemplo, para celebrar o nascimento de Jesus - a divina
Pobreza encarnada no Menino pobre de Belém - Francisco inventou o presépio. Foi
ele quem inventou o presépio de Natal! E assim, desta maneira, ele encena e
torna palpável aos olhos, à mente e ao coração, o Deus que se revelou Pobre
para nos libertar de nossas misérias.
3.
E celebrando sua própria morte
Vou
destacar e comentar brevemente para vocês, aqui, um exemplo típico de
celebração litúrgica feita por Francisco. Uma celebração memorial, na sua
estrutura, até bem parecida com muitas que são feitas hoje em nossas
comunidades. Comporta, basicamente, três partes. Há primeiro uma encenação;
depois vem uma leitura do Evangelho; e, por fim, um momento de louvor que se
prolonga até...
Vejam
como Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de São Francisco, nos apresenta esta
celebração. Vejam como São Francisco de Assis celebra a sua própria
morte:“Estando os frades a chorar amargamente e a se lamentar sem consolação, o
pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para
cada um comer.
Também
mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São
João a partir do trecho que começa: Antes do dia da festa da Páscoa, etc.
Lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com
seus discípulos. Fez tudo isso para celebrar sua lembrança demonstrando todo o
amor que tinha para com seus frades.
Passou
a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos
muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Ele mesmo, quanto lhe permitiam
suas forças, entoou o Salmo: Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz
imploro o Senhor, etc. Convidava também todas as criaturas ao louvor de Deus e,
usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortava-as ao amor de
Deus.
Chegava
a convidar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam e,
correndo alegre ao seu encontro, convidava-a com hospitalidade: Bem-vinda seja
minha irmã, a morte! Ao médico disse: Irmão médico, diga com coragem que minha
morte está próxima, para mim ela é a porta da vida! E aos frades:Quando
perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido antes de ontem,
assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo
tempo que alguém levaria para caminhar uma milha, devagar.
E
assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo,
voou feliz para Deus” (3).
4. A morte de São Francisco como celebração
memorial (4)
Lá
está Francisco, deitado, muito debilitado. À beira da morte. Os frades começam
a chorar. E choram amargamente. Desconsolados, lamentam esta triste situação: A
perda de um pai; a desgraça da morte.
Vendo
os frades neste estado, Francisco, que queria tanto bem a eles, toma a
iniciativa de fazer uma celebração.
E
assim, desta maneira tão humana e divina, ele consola os frades e os encoraja.
Como? Transportando-os, no envolvimento desta celebração, para a Última Ceia de
Jesus e, em Jesus, para o sentido positivo da própria morte. E ali está: “Uma
comunidade eclesial que celebra liturgicamente, com Francisco, a morte deste” (5).
a)
O gesto de partir o pão
Francisco
manda trazer um pão. Abençoou o pão. Partiu-o e deu um pedacinho para cada um
comer.
Através
deste gesto, Francisco encena a Última Ceia que Jesus fez com seus discípulos
antes de morrer. Assim recorda o imenso ato de amor e de doação total e perene
de Jesus à humanidade, perpetuado na Eucaristia que ele reverenciava o máximo,
pois o Corpo do Senhor não é senão o Pobre e Humilde que ele descobriu ao
beijar o leproso (6).
O
gesto se relaciona com a despedida de Jesus a seus discípulos. Os frades,
semelhantemente aos discípulos de Jesus, aqui assistem à representação que
Francisco faz de “sua” Última Ceia. Deste modo, Francisco celebra também a sua
doação total ao Senhor, servindo aos irmãos, na vida e na morte que se
aproxima.
“Em
obediência total a Cristo, seu Mestre e Senhor, põe em ação sua diaconia
revivendo a lembrança daquela santíssima noite com uma celebração litúrgica
‘sui-generis’, à qual associa todos os frades ali presentes” (7). Assim ele
“leva os frades a suportar a dor de sua morte, para vivenciar a alegria de quem
sente e possui a presença do Senhor” (8).
b)
Leitura do Evangelho de João
Francisco
mandou trazer também o livro dos Evangelhos. Pediu para alguém ler o Evangelho
de João, capítulo 13,1-15. É o texto do lava-pés: Jesus, durante a Última Ceia,
levantou-se, cingiu-se com uma toalha, e lavou os pés dos discípulos, como
exemplo de humildade e serviço a ser seguido por todos.
Portanto,
Francisco completa a representação de “sua Última Ceia” integrando nela esta
leitura de João. É bom lembrar que, na época, quando alguém estava para morrer,
após lhe serem ministrados os santos sacramentos, se lia um texto evangélico da
Paixão do Senhor. Geralmente de Marcos. Aqui, no caso de Francisco, ele é original
e criativo: Ele mesmo escolhe o texto; e um texto condizente com o momento que
eles estavam vivendo ali. Um texto que traz vivamente presente, neste “clima”
de Última Cela, o exemplo de humildade, de minoridade e de serviço do Senhor
Jesus, que ele abraçou com toda a paixão.
c)
Tudo Isso para se lembrar da Última Cela e por amor aos frades
Assim,
como narra Tomás de Celano, Francisco “lembrava-se daquela sagrada ceia que foi
a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo Isso para celebrar
o amor que tinha para com os seus frades”.
Em
outras palavras. Francisco se transporta e transporta os frades para a
centralidade do seu ideal, que supera o horror da morte.
Esta
centralidade é o Senhor, pobre, humilde, menor, servo de todos que, na Eucaristia,
assume a forma humilde de pão e de vinho, e na Palavra revela a presença do seu
amor-serviço.
O
amor de Francisco, iluminado pela lembrança da Última Ceia do Senhor nesta
celebração, conduz os frades a uma visão positiva da morte. Em vez de chorar,
eles devem agora cantar. Devem passar (Páscoa!) do luto para a festa da vida
que chega pelas portas da morte.
d)
O momento de louvor
Diz
Tomás de Celano que Francisco passou então “a louvar os poucos dias que ainda
restavam até sua morte”. E não só isso. Ele o fez, “ensinando seus filhos muito
amados a louvar Cristo em sua companhia”.
É
o momento de louvor, na celebração. Como em tantas celebrações de nossas
comunidades... Tem sempre o momento de louvor, que é o momento alto.
Francisco
louva, porque sente estar próximo o dia de sua passagem para a vida. Graças a
Jesus Cristo. Por isso, os frades, que antes estavam tristes, chorando,
desconsolados se lamentando, agora podem com seu pai cantar, louvar o imenso
amor de Jesus Cristo que nos salvou.
Francisco
louva, entoando o Salmo 141. Convida todas as criaturas ao louvor de Deus.
Para
tanto, usa inclusive o Poema que ele mesmo havia composto, o célebre “Cântico
do Irmão Sol”, através do qual também exorta todas as criaturas ao amor de
Deus. Chega a convidar para o louvor até a própria morte que se aproximava, à
qual dá as boas-vindas, como sua irmã.
Louva
a Deus pela irmã morte. Louva, porque esta, “que todos temem e abominam, para
Francisco é sentida como “a porta da vida”. Louva, pois ele, a esta altura,
estava plenamente identificado com a Fonte da Vida: Deus (9). Assim, em
Francisco ainda vivo, no embalo desta celebração, a morte já era percebida como
tragada pela Vida. Os frades não precisam mais chorar nem se lamentar: mas sim
celebrar o mistério do Amor que ali se fazia presente.
5.
Concluindo
Vou
concluir com as palavras do meu confrade espanhol. J. Tresserras Basela: Vimos
como, pela narração de Tomás de Celano, se destaca “o caráter de
celebração-memorial que a morte de Francisco tem”. Vemos aí “o caminho
ascendente do Pobrezinho de Assis que se prepara para participar da
Ressurreição.
E
não querendo permanecer só, neste momento, ele envolve nesta celebração os
frades e toda a criação para que com ele gozem da plenitude deste momento” (10)
Para nós, para as nossas comunidades e para
as equipes de liturgia, fica este exemplo de São Francisco: Uma celebração será
boa, isto é, viva, criativa, envolvente, convincente, e produzirá frutos de
evangelização, se ela vier carregada de uma mística, se ela vier carregada de
uma experiência de Deus, do Deus Pobre que está do lado do pobre.
(1).
Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias de São Francisco de Assis.
Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano, Vozes/CEFEPAL,
Petrópolis 1981. Cf. também L. Boff, São Francisco de Assis: Ternura e Vigor,
Vozes, Petrópolis 1982.
(2).
Cf. São Boaventura, “Legenda Maior” I, 6, em: São Francisco de Assis, Escritos
e biografias..., op. cit, p. 468: I Fioretti, 25, em: Ibidem, p. 1130.
(3).
Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias..., op. clt., p. 441.
(4).
Cf , J. TRESSERRAS Basela. La muerte de San Francisco como celebración memorial
Análisis de la “Vita secunda” 217 de Tomás de Celano, comparación con otras
biografias. Editrice Antonianum, Roma, 1990.
(5).
Ibidem, p. 135.
(6).
Cf. D. FLOOD. Frei Francisco e o Movimento Franciscano, Vozes/CEFEPAL.
Petrópolis 1986. p. 158-178.
(7).
J. TRESSERRAS Basela, op. cit.. p. 143. Francisco era apenas diácono, não quis
usurpar o poder sacerdotal de consagrar, mas quis imitar Jesus até o fim. Foi
então que realizou a celebração da aliança nova e eterna {L. Boff. op. cit., p.
176).
(8).
J. TRESSERRAS Basela. op. ciL, p. 149.
(9)
L.BOFF, op, cit, p.172-180; Idem, “Uma irmã de São Francisco: a morte”, Grande
Sinal 36 (1982) p. 451-464
(10).
J. TRESSERRAS Basela, op. Cit., p.212.
Frei
José Ariovaldo da Silva, OFM
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