03º Domingo da Quaresma - Ano C-
O que é essencial na nossa vivência cristã?
Nesta terceira etapa da caminhada para a Páscoa somos chamados, mais
uma vez, a repensar a nossa existência.
O tema fundamental da liturgia de hoje é a “conversão”. Com este tema
enlaça-se o da “libertação”: o Deus libertador propõe-nos a transformação em homens
novos, livres da escravidão do egoísmo e do pecado, para que em nós se
manifeste a vida em plenitude, a vida de Deus.
O Evangelho contém um convite a uma transformação radical da
existência, a uma mudança de mentalidade, a um recentrar a vida de forma que
Deus e os seus valores passem a ser a nossa prioridade fundamental. Se isso não
acontecer, diz Jesus, a nossa vida será cada vez mais controlada pelo egoísmo
que leva à morte.
A segunda leitura avisa-nos que o cumprimento de ritos externos e
vazios não é importante; o que é importante é a adesão verdadeira a Deus, a
vontade de aceitar a sua proposta de salvação e de viver com Ele numa comunhão
íntima.
A primeira leitura fala-nos do Deus que não suporta as injustiças e as
arbitrariedades e que está sempre presente naqueles que lutam pela libertação.
É esse Deus libertador que exige de nós uma luta permanente contra tudo aquilo
que nos escraviza e que impede a manifestação da vida plena.
LEITURA I – Ex 3,1-8a.13-15
A primeira parte do livro do Êxodo (Ex 1-18) apresenta-nos um conjunto
de “tradições” sobre a libertação do Egito: narra-se a iniciativa de Jahwéh,
que escutou os gemidos dos escravos hebreus e teve compaixão deles (cf. Ex
2,23-24).
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta-nos o
chamamento de Moisés, convidado a ser o rosto visível da libertação que Jahwéh
vai levar a cabo. Algum tempo antes, Moisés deixara o Egito e encontrara abrigo
no deserto do Sinai, depois de ter morto um egípcio que maltratava um hebreu (o
caminho do deserto era o caminho normal dos opositores à política do faraó,
como o demonstram outras histórias da época que chegaram até nós); acolhido por
uma tribo de beduínos, Moisés casou e refez a sua vida, numa experiência de
calma e de tranquilidade bem merecidas, após o incidente que lhe arruinara os
sonhos de uma carreira no aparelho administrativo egípcio (cf. Ex 2,11-22).
Ora, é precisamente nesse oásis de paz que Jahwéh Se revela, desinquieta Moisés
e envia-o em missão ao Egito.
A afirmação “Jahwéh tirou Israel do Egito” será a primitiva profissão
de fé de Israel. É o fato fundamental da fé israelita. Ora, é essa descoberta
que está no centro desta leitura.
O texto que nos é proposto divide-se em duas partes. Na primeira
(vers. 1-8), temos o relato da vocação de Moisés. O contexto é o das teofanias
(manifestações de Deus): o “anjo do Senhor”, o fogo (vers. 2-3), a
omnipotência, a santidade e a majestade de Deus (vers. 4-5), a apresentação de
Deus, o sentimento de “temor” que o homem experimenta diante do divino (vers.
6); e Deus manifesta-Se para “comprometer” Moisés, enviando-o em missão (vers.
7-8) e fazendo dele o instrumento da libertação. Fica claro que o chamamento de
Moisés é uma iniciativa do Deus libertador, apostado em salvar o seu Povo. Deus
age na história humana através de homens de coração generoso e disponível, que
aceitam os seus desafios.
Na segunda parte (vers. 13-15), apresenta-se a revelação do nome de
Deus (uma espécie de “sinal” que confirma que Moisés foi chamado por Deus e
enviado por Ele em missão): “Eu sou (ou serei) ‘aquele que sou’ (ou que
serei)”. Este nome acentua a presença contínua de Deus na vida do seu Povo, uma
presença viva, ativa e dinâmica, no presente e no futuro, como libertação e
salvação.
Os israelitas descobriram, desta forma, que Jahwéh esteve no meio
daquela tentativa humana de libertação e conduziu o processo, de forma a que um
povo vítima da opressão passasse a ser livre e feliz. Para a fé de Israel,
Jahwéh não ficou de braços cruzados diante da opressão; mas iniciou um longo
processo de intervenção na história que se traduziu em libertação e vida para
um povo antes condenado à morte.
Para Israel, o Êxodo tornar-se-á, assim, o modelo e paradigma de todas
as libertações. A partir desta experiência, Israel descobriu a pedagogia do
Deus libertador e soube que Jahwéh está vivo e atuante na história humana,
agindo no coração e na vida de todos os que lutam para tornar este mundo
melhor. Israel descobriu – e procurou dizer-nos isso também a nós – que, no
plano de Deus, aquilo que oprime e destrói os homens não tem lugar; e que
sempre que alguém luta para ser livre e feliz, Deus está com essa pessoa e age
nela. Na libertação do Egito, os israelitas – e, através deles, toda a
humanidade – descobriram a realidade do Deus salvador e libertador.
ATUALIZAÇÃO
Refletir nos seguintes dados:
• A humanidade geme, hoje, num violento esforço de libertação
política, cultural e econômica: os povos lutam para se libertarem do
colonialismo, do imperialismo, das ditaduras; os pobres lutam para se libertarem
da miséria, da ignorância, da doença, das estruturas injustas; os
marginalizados lutam pelo direito à integração plena na sociedade; os operários
lutam pela defesa dos seus direitos e do seu trabalho; as mulheres lutam pela
defesa da sua dignidade; os estudantes lutam por um sistema de ensino que os
prepare para desempenhar um papel válido na sociedade… Convém termos
consciência que, lá onde alguém está a lutar por um mundo mais justo e mais
fraterno, aí está Deus – esse Deus que vive com paixão o sofrimento dos
explorados e que não fica de braços cruzados diante das injustiças.
• Deus age na nossa vida e na nossa história através de homens de boa
vontade, que se deixam desafiar por Deus e que aceitam ser seus instrumentos na
libertação do mundo. Diante dos sofrimentos dos irmãos e dos desafios de Deus,
como respondo: com o comodismo de quem não está para se chatear com os
problemas dos outros? Com o egoísmo de quem acha que não é nada consigo? Com a
passividade de quem acha que já fez alguma coisa e que agora é a vez dos
outros? Ou com uma atitude de profeta, que se deixa interpelar por Deus e
aceita colaborar com Ele na construção de um mundo mais justo e mais fraterno?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 102 (103)
Refrão: O Senhor é clemente e cheio de compaixão.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e todo o meu ser bendiga o seu nome santo.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e não esqueças nenhum dos seus benefícios.
Ele perdoa todos os teus pecados
e cura as tuas enfermidades;
salva da morte a tua vida
e coroa-te de graça e misericórdia.
O Senhor faz justiça
e defende o direito de todos os oprimidos.
Revelou a Moisés os seus caminhos
e aos filhos de Israel os seus prodígios.
O Senhor é clemente e compassivo,
paciente e cheio de bondade.
Como a distância da terra aos céus,
assim é grande a sua misericórdia para os que O temem.
LEITURA II – 1 Cor 10,1-6.10-12
No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os
animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal
era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. No entanto, havia sempre
sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à
venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na
cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas
questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente
fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos. Isso
era lícito? É essa questão que inquieta os cristãos de Corinto.
A esta questão, Paulo responde em 1 Cor 8-10. Concretamente, a
resposta aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os
ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente. Contudo, deve-se evitar
escandalizar os mais débeis: se houver esse perigo, evite-se comer dessa carne.
Paulo aproveita este ponto de partida para um desenvolvimento que vai
muito além da questão inicial: comer ou não comer carne imolada aos ídolos não
é importante; o importante é não voltar a cair na idolatria e nos vícios
anteriores; o importante é esforçar-se seriamente por viver em comunhão com
Deus.
A título de exemplo, Paulo apresenta a história do Povo de Deus do
Antigo Testamento. Os israelitas foram todos conduzidos por Deus (a nuvem),
passaram todos pela água libertadora do Mar Vermelho, alimentaram-se todos do
mesmo maná e da mesma água do rochedo “que era Cristo” (Paulo inspira-se numa
antiga tradição rabínica segundo a qual o rochedo de Nm 20,8 seguia Israel na
sua caminhada pelo deserto; e, para Paulo, este rochedo é o símbolo de Cristo,
pré-existente, já presente na caminhada para a liberdade dos hebreus do Antigo
Testamento); mas isso não evitou que a maior parte deles ficasse prostrada no
deserto, pois o seu coração não estava verdadeiramente com Deus e cederam à
tentação dos ídolos.
Assim também os coríntios, embora tenham recebido o Batismo e
participado da Eucaristia, não têm a salvação garantida: não bastam os ritos,
não basta a letra. Apesar do cumprimento das regras, os sacramentos não são
mágicos: não significam nada e não realizam nada se não houver uma adesão
verdadeira à vontade de Deus. Aos “fortes” e “autossuficientes” de Corinto,
Paulo recorda: o fundamental, na vivência da fé, não é comer ou não carne
imolada aos ídolos; mas é levar uma vida coerente com as exigências de Deus e
viver em verdadeira comunhão com Deus.
ATUALIZAÇÃO
Ter em conta, para a reflexão, as seguintes questões:
• O que é essencial na nossa vivência cristã? O cumprimento de ritos
externos que nos marcam como cristãos aos olhos do mundo (ou dos nossos
superiores)? Ou é uma vida de comunhão com Deus, vivida com coerência e
verdade, que depois se transforma em gestos de amor e de partilha com os nossos
irmãos? O que é que condiciona as minhas atitudes: o “parecer bem” ou o “ser”
de verdade?
• Os sacramentos não são ritos mágicos que transformam o homem em pessoa
nova, quer ele queira quer não. Eles são a manifestação dessa vida de Deus que
nos é gratuitamente oferecida, que nós acolhemos como um dom, que nos
transforma e que nos torna “filhos de Deus”. É nessa perspectiva que encaramos
os momentos sacramentais em que participamos? É isto que procuramos transmitir
quando orientamos encontros de preparação para os sacramentos?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Mt 4,17
Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
Refrão 4: Louvor a Vós, Jesus Cristo, rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Arrependei-vos, diz o Senhor; está próximo o reino dos Céus.
EVANGELHO – Lc 13,1-9
O Evangelho de hoje situa-nos, já, no contexto da “viagem” de Jesus
para Jerusalém (cf. Lc 9,51-19,28). Mais do que um caminho geográfico, é um
caminho espiritual, que Jesus percorre rodeado pelos discípulos. Durante esse
percurso, Jesus prepara-os para que entendam e assumam os valores do Reino
(mesmo quando as palavras de Jesus se dirigem às multidões, como é o caso do
episódio de hoje, são os discípulos que rodeiam Jesus os primeiros
destinatários da mensagem). Pretende-se que, terminada esta caminhada, os
discípulos estejam preparados para continuar a obra de Jesus e para levar a sua
proposta libertadora a toda a terra.
O texto que hoje nos é proposto apresenta um convite veemente à
conversão ao Reino. Destina-se à multidão, em geral, e aos discípulos que
rodeiam Jesus, em particular.
O texto apresenta duas partes distintas, embora unidas pelo tema da
conversão. Na primeira parte (cf. Lc 13,1-5), Jesus cita dois exemplos
históricos que, no entanto, não conhecemos com exatidão (assassínio de alguns
patriotas judeus por Pilatos e a queda de uma torre perto da piscina de Siloé).
Flávio Josefo, o grande historiador judeu do séc. I, narra como Pilatos matou
alguns judeus que se haviam revoltado em Jerusalém. Trata-se do exemplo citado
por Jesus? Não sabemos. Também não sabemos nada sobre a queda da torre de Siloé
que, segundo Jesus, matou dezoito pessoas… Apesar disso, a conclusão que Jesus
tira destes dois casos é bastante clara: aqueles que morreram nestes desastres
não eram piores do que os que sobreviveram. Refuta, desta forma, a doutrina
judaica da retribuição segundo a qual o que era atingido por alguma desgraça
era culpado por algum grave pecado. No caso presente, esta doutrina levava à
seguinte conclusão: “nós somos justos, porque nos livramos da morte nas
circunstâncias nomeadas”. Em contrapartida, Jesus pensa que, diante de Deus,
todos os homens precisam de se converter. A última frase do vers. 5 (“se não vos
arrependerdes perecereis todos do mesmo modo”) deve ser entendida como um
convite à mudança de vida; se ela não ocorrer, quem vencerá é o egoísmo que
conduz à morte.
Na segunda parte (cf. Lc 13,6-9), temos a parábola da figueira. Serve
para ilustrar as oportunidades que Deus concede para a conversão. O Antigo
Testamento tinha utilizado a figueira como símbolo de Israel (cf. Os 9,10),
inclusive como símbolo da sua falta de resposta à aliança (cf. Jer 8,13) (uma
ideia semelhante aparece na alegoria da vinha de Is 5,1-7). Deus espera,
portanto, que Israel (a figueira) dê frutos, isto é, aceite converter-se à
proposta de salvação que lhe é feita em Jesus; dá-lhe, até, algum tempo (e
outra oportunidade), para que essa transformação ocorra. Deus revela, portanto,
a sua bondade e a sua paciência; no entanto, não está disposto a esperar
indefinidamente, pactuando com a recusa do seu Povo em acolher a salvação.
Apesar do tom ameaçador, há no cenário de fundo desta parábola uma nota de
esperança: Jesus confia em que a resposta final de Israel à sua missão seja
positiva.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e atualizar a Palavra, considerar as seguintes notas:
• A proposta principal que Jesus apresenta neste episódio chama-se
“conversão” (“metanoia”). Não se trata de penitência externa, ou de um simples
arrependimento dos pecados; trata-se de um convite à mudança radical, à
reformulação total da vida, da mentalidade, das atitudes, de forma que Deus e
os seus valores passem a estar em primeiro lugar. É este caminho a que somos
chamados a percorrer neste tempo, a fim de renascermos, com Jesus, para a vida
nova do Homem Novo. Concretamente, em que é que a minha mentalidade deve mudar?
Quais são os valores a que eu dou prioridade e que me afastam de Deus e das
suas propostas?
• Essa transformação da nossa existência não pode ser adiada
indefinidamente. Temos à nossa disposição um tempo relativamente curto: é
necessário aproveitá-lo e deixar que em nós cresça, o mais cedo possível, o
Homem Novo. Está em jogo a nossa felicidade, a vida em plenitude… Porquê adiar
a sua concretização?
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