Assim como no Antigo Testamento Deus suscitou Jeremias, para admoestar e
aconselhar o povo a respeito do caminho que devia seguir, hoje Ele
também suscita homens que nos guiem e orientem.
A destruição
de Jerusalém pelas tropas caldeias no século VI a.C. e o posterior
exílio para a Babilônia marcam uma grande linha de divisão na história
do antigo Israel. De um só golpe, sua existência como nação termina e,
com isso, todas as instituições que eram a expressão de sua própria vida
coletiva. Com o Estado destruído e o culto oficial suspenso, o país
passa a ser, naquele momento, um aglomerado de indivíduos arrancados de
suas raízes e vencidos.1
Como pôde o Povo Eleito, temido por todas
as nações em razão do poder de seu invencível Deus, cair em tão
espantosa desgraça? Para encontrar os motivos desse acontecimento, de
transcendental significado para a História Sagrada e para a exegese
bíblica, comecemos por analisar o que poderíamos chamar de “situação
internacional” daquela época.
Do apogeu assírio à hegemonia babilônica
O império
assírio, que sob o governo de Assaradão (681-670) havia alcançado seu
apogeu, durante o reinado de Assurbanípal (669-627) começa a sentir os
primeiros sintomas de decadência. A independência do Egito, levada a
cabo por Psamético I em 663, fundador da dinastia XXVI, foi seguida por
revoltas na Fenícia e Babilônia. Depois da morte de Assurbanípal, o
império entra na etapa final de sua existência.
Aproveitando as disputas pelo trono entre
Assuretililani, seu irmão Sinsariskun e o general Sinshumulisir, o
príncipe caldeu Nabopolasar proclama a independência da Babilônia e se
faz eleger rei (626-605). A partir dali empreende uma série de ataques
contra a Assíria, e em aliança com o rei dos medos, Ciáxares, conquista
Assur em 614 e a capital Nínive em 612, onde morre o rei Sinsariskun,
filho de Assurbanípal.
O último monarca assírio, Assur- Ubalit II,
foge para Haram, onde consegue – apoiado pelo Egito – resistir durante
três anos aos ataques de Nabopolasar. Finalmente, em 609, o rei caldeu
conquista Haram e o império assírio chega a seu fim, sendo seu
território dividido entre os vencedores.
A partir de então o poder da Babilônia
começa a estender-se pelo Oriente Médio; sobretudo após a vitória do
filho e sucessor de Nabopolasar, o grande Nabucodonosor, sobre o
exército do faraó Necao na batalha de Karkemish (605 a.C.).
A Babilônia se havia convertido na soberana de toda a região e passa a gozar da hegemonia sobre o Oriente Próximo.2
Posição do Reino de Judá a favor do Egito
Na luta entre o
Egito e a Babilônia, o Reino de Judá sempre se inclinará para o país do
Nilo, trazendo como consequência expedições de Nabucodonosor, a última
das quais acabou assediando Jerusalém, que foi tomada, saqueada e
arrasada.
Durante um ano e meio as tropas caldeias
cercaram a cidade, até que, em julho de 587,3 os soldados conseguiram
abrir uma brecha nas muralhas e se precipitaram no seu interior.
Sedecias, último rei de Judá, conseguiu fugir de noite com alguns
soldados, mas foi capturado nas planícies de Jericó e levado à presença
do rei caldeu, que estava em Ribla, na alta Síria. Ali, após ser
obrigado a assistir à morte de seus filhos, foi cegado e levado
prisioneiro para a Babilônia, como nos narra o capítulo 52 de Jeremias.
Terminado o cerco, Jerusalém foi devastada
pelas tropas comandadas por Nabuzardã. A Bíblia nos diz que alguns
judeus fugiram para o Egito (Jr 42-44); um grupo permaneceu na cidade
(Jr 39, 10) e um grande número de habitantes foi deportado para a
Babilônia (Jr 39, 9). “Pelos caminhos da Meia-Lua Fértil percorria
novamente o povo da Promessa, como nos dias de Abraão; porém, não mais
com fé e esperança, mas com miséria e abatimento”, comenta
ilustrativamente o historiador Henri Daniel-Rops.4
Advertência de Jeremias
Durante o
tempo que duraram esses acontecimentos, o profeta Jeremias sempre
desaconselhou a aliança de Judá com o Egito e pregou, por inspiração
divina, a submissão aos babilônios, pois Deus decidira entregar
Jerusalém a Nabucodonosor.5
Renunciar à sua independência era algo
muito duro para o povo judeu, mas essa era a vontade do Altíssimo, como
castigo por tantos pecados cometidos. Por isso, apesar do perigo
iminente, as palavras do profeta não encontram acolhida entre seus
concidadãos.
O rei Sedecias, em um primeiro momento,
segue os conselhos divinos. Contudo, como nos narra o capítulo 38 do
livro de Jeremias, os inimigos do profeta conseguem persuadir o rei do
“perigo” que significam esses oráculos para o povo (v.4). Fica patente a
falta de personalidade do rei (v.5), que não tem suficiente valor para
opor-se a essa injusta petição e permite que o homem de Deus seja preso
em uma cisterna (v.6).
Posteriormente, graças ao etíope Abdemelec,
Jeremias é liberado por ordem do próprio soberano (vv.7- 10), que tem
um colóquio secreto com o profeta no qual se revela muito bem a situação
em que se encontra: quer seguir os oráculos divinos para salvar sua
vida, mas ao mesmo tempo teme seus oficiais (vv.14-19).
Pelos fins de 589, no “ano nono de
Sedecias, no décimo mês” (Jr 39, 1), o rei decide, por fim, rebelar-se
contra a Babilônia, provavelmente instigado pelo faraó Hofra. A
catástrofe havia sido detonada.
A verdadeira causa do castigo
No segundo
versículo do capítulo 37, o Livro de Jeremias nos aponta com total
clareza a verdadeira causa do castigo sofrido pelo povo judeu: “Nem ele
[Sedecias], porém, nem seus súditos e a população da terra escutaram os
oráculos que lhes transmitia o Senhor, por intermédio do profeta
Jeremias”.
O termo usado no original hebraico para
referir-se à desobediência do povo judeu é shama, do verbo “escutar”.
São Jerônimo, porém, opta na Vulgata pela expressão latina “non
oboedivit” (não obedeceram), que se mantém em várias das traduções
atuais. É interessante notar que não existe oposição entre ambas as
versões, dado que o verbo “escutar” tem em hebraico um sentido amplo.
Não se trata apenas de prestar atenção, mas também de abrir o coração,
pôr em prática, obedecer.6
Acentuando a importância deste versículo
para a correta compreensão dos acontecimentos posteriores, Schökel e
Sicre comentam: “Este verso é programático e abarca o que segue até o
fim de uma era. Temos aí dois poderes internos em confrontação: por uma
parte, o rei e as pessoas influentes; diante deles, o profeta que
esgrime a Palavra de Deus. A última frase nos remete à vocação de
Jeremias que, com a palavra, recebe poder ‘sobre os reis’. Podia ser
poder para ‘edificar’, a catástrofe era evitável; ao não escutá-lo, o
povo provocou o poder ‘para arrancar'”.7
Justiça e misericórdia
Alguns
comentaristas modernos acusam Jeremias, com argumentos absurdos, de
haver-se vendido ao ouro da Babilônia. Outros elogiam sua clarividência
política, e não cabe dúvida de que ele foi mais sensato que os políticos
de seu tempo. Contudo não foi a sensatez que guiou sua conduta, mas o
desejo de cumprir a vontade divina.8
Sabendo que Deus é justiça, mas também
misericórdia, clamou o quanto pôde por seus irmãos, até que Deus o
proibiu de interceder por eles: “Quanto a ti, não intercedas por esse
povo. Não ergas em favor dele queixas ou súplicas e não insistas junto
de mim, porque não te escutarei. Não vês o que faz ele nas cidades de
Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos juntam lenha, os pais acendem o
fogo e as mulheres sovam a massa para fazer tortas destinadas à rainha
do céu, depois fazem libações a deuses estranhos, o que provoca a minha
ira” (Jr 7, 16-18).
Apesar de a grande maioria de seu povo se
opor, Jeremias teve sempre forças e ânimo para interceder por eles. Se
seus contemporâneos tivessem dado importância a suas palavras, a
catástrofe teria sido evitada e a tão temida submissão a Nabucodonosor
haveria ocorrido em condições muito diferentes.
Deus nos fala na Mesa da Palavra
“Deus nos fala por meio de homens e segundo o modo humano, porque falando assim nos procura”.9
Assim como no Antigo Testamento, Deus
suscitou Jeremias para advertir o povo judeu sobre o mau caminho que
estava tomando e quais seriam as consequências caso não houvesse
arrependimento, Ele também hoje suscita homens que nos apontam a vontade
divina.
São às vezes simples leigos, mas não é o
habitual. É do ambão, Mesa da Palavra, que Deus manifesta habitualmente
seus desejos a respeito de cada um e nos inspira a pô-los em prática.
Pela voz do pregador, algumas vezes nos anima, revitaliza e ampara;
todavia, outras vezes aponta com inclemência nossos pecados,
deixando-nos contritos e cheios de pesar.
Em ambos os casos – sobretudo no segundo – o
ministro de Deus está atuando como pai, mestre e guia que busca nossa
eterna salvação. Pois a justiça e a misericórdia divinas não são
opostas, mas se complementam.10
Assim, pois, se em algum momento sentimos
cair sobre nós o merecido peso da punição, recordemos que Deus nunca
visa condenar, mas sim edificar. Tenhamos ânimo, procuremos emendar- nos
e digamos, como o próprio Jeremias: “Corrigi- me, ó Senhor, mas com
equidade, e não com furor, para que não sejamos reduzidos ao nada” (10,
24). (Revista Arautos do Evangelho, Fev/2010, n. 98, p. 31 à 33)
********************
Notas:
1 Cf. BRIGHT, John. História de Israel. 7.ed. São Paulo: Paulus, 2003, p.411.
2 Cf. COUTURIER, Guy P.Jeremías. In: Comentario Bíblico “San Jerónimo”.Madrid: Cristiandad, 1971, t.I, p.791-792.
3 Não existe unanimidade entre os estudiosos a respeito dessa data; alguns creem que foi em 586. Seguimos a opinião de BRIGHT, op. cit., p.397, nota de rodapé.
4 DANIEL-ROPS, Henri.Historia Sagrada. Barcelona: Luis de Caralt, 1955, p.229.
5 É interessante recordar a descrição que Damien Noël faz da atuação de Jeremias, de um aspecto meramente político: “Jeremias é realista e não derrotista, e menos ainda é um traidor de sua pátria. Suas preocupações virão dos judeus pró-egípcios, não dos babilônios. Viverá o decênio do reinado de Sedecias na Jerusalém livre, desaconselhando- lhe até o fim a aliança com o Egito” (NOËL, Damien. En tiempo de los imperios. In: Cuadernos bíblicos nº 121. Navarra: Verbo Divino, 2004, p.15).
6 LÉON-DUFOUR, Xavier.Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1965, p.250.
7 SCHÖKEL, Luis Alonso; SICRE, José Luis. Profetas.2.ed. Madrid: Cristiandad, 1987, v.I, p.588.
8 Idem, p.410.
9 SANTO AGOSTINHO, apud SCHÖKEL y SICRE, op. cit., p.17.
10 GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Teología de la Biblia. Madrid: BAC, 1970, v.I, AT, p.250
2 Cf. COUTURIER, Guy P.Jeremías. In: Comentario Bíblico “San Jerónimo”.Madrid: Cristiandad, 1971, t.I, p.791-792.
3 Não existe unanimidade entre os estudiosos a respeito dessa data; alguns creem que foi em 586. Seguimos a opinião de BRIGHT, op. cit., p.397, nota de rodapé.
4 DANIEL-ROPS, Henri.Historia Sagrada. Barcelona: Luis de Caralt, 1955, p.229.
5 É interessante recordar a descrição que Damien Noël faz da atuação de Jeremias, de um aspecto meramente político: “Jeremias é realista e não derrotista, e menos ainda é um traidor de sua pátria. Suas preocupações virão dos judeus pró-egípcios, não dos babilônios. Viverá o decênio do reinado de Sedecias na Jerusalém livre, desaconselhando- lhe até o fim a aliança com o Egito” (NOËL, Damien. En tiempo de los imperios. In: Cuadernos bíblicos nº 121. Navarra: Verbo Divino, 2004, p.15).
6 LÉON-DUFOUR, Xavier.Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1965, p.250.
7 SCHÖKEL, Luis Alonso; SICRE, José Luis. Profetas.2.ed. Madrid: Cristiandad, 1987, v.I, p.588.
8 Idem, p.410.
9 SANTO AGOSTINHO, apud SCHÖKEL y SICRE, op. cit., p.17.
10 GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Teología de la Biblia. Madrid: BAC, 1970, v.I, AT, p.250
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