É
tremendo o paradoxo da nossa vontade, descrito por São Paulo aos
romanos: "Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero"... Como
entender essa misteriosa força dentro de nós, parecendo querer e não
querer o bem, ao mesmo tempo?
Em
Deus, a bondade e o querer são idênticos ao seu Ser. Assim, Ele só pode
querer o bem. Já as criaturas, todas elas têm uma característica comum,
refletindo esta perfeição divina: um amor ou inclinação para o bem, em
cada ser, segundo a sua natureza.(1)
Contudo as
plantas e animais, por serem irracionais, não têm senão bens finitos
como objeto de seu agir; jamais atingem o Bem supremo – Deus -, pois não
são capazes de conhecê-Lo. Essa possibilidade foi concedida somente ao
anjo e ao homem, porque têm natureza racional.
O ser humano
compreende a linguagem dos símbolos e, assim, o universo lhe fala de
Deus. Ademais, vendo o bem finito dos seres, concebe a existência de um
bem infinito e o deseja com toda a sua vontade. Por isso, São Tomás
declara que “nenhuma coisa pode aquietar a vontade do homem, senão o bem
universal.
Mas este não se encontra em bem criado algum, a não ser em
Deus, porque toda criatura tem bondade participada. Por isso, só Deus
pode satisfazer plenamente a vontade humana”. (2)
Deus requer uma livre cooperação das naturezas inteligentes
É necessário
ter em vista que, nesta vida, nossa natureza – e, portanto, nossa
vontade – não está em sua perfeição última, mas sim em estado de prova.
Deus – que na criação age para sua maior glória -, criou as coisas
naturais em estado incompleto, e estas tendem a chegar à sua plenitude
através de diversos processos, segundo a sua natureza. Vemos, por
exemplo, brotar de uma insignificante semente uma grande sequoia.
Mas tais entes
não tendem à sua finalidade livremente e por si mesmos. Deus requer
somente das naturezas inteligentes uma livre cooperação para atingirem
seu fim: a eterna bem-aventurança.
Quanto à
natureza angélica, o definitivo aperfeiçoamento (ou sua recusa e
perdição) se deu num só ato da vontade, imediato e definitivo. Não é o
que acontece com o homem.
Como explica o Doutor Angélico, “o homem por
sua natureza não foi feito para atingir, de imediato, sua última
perfeição, como acontece ao anjo. Por isso, deve percorrer um caminho
mais longo que o do anjo para merecer a bem-aventurança”.(3)
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As plantas e animais, por não estarem
dotados de razão, jamais atingem o
Bem Supremo, pois não são
capazes de conhecê-Lo |
Outro ponto
chave para levarmos em conta é ser a criatura humana, em sua composição,
a mais complexa entre todas as criaturas, por causa das diversas
naturezas nela contidas. “Está ela na fronteira das criaturas
espirituais e corporais”, observa São Tomás, e “por isso, nela se reúnem
as potências tanto de umas como de outras criaturas”.(4)
O mal nunca é amado senão sob razão de bem
Em estado de
justiça original, no Paraíso, o homem não sofria nenhuma interferência
de sua natureza composta. Antes do primeiro pecado, gozava ele do dom de
integridade, pelo qual vivia em pleno equilíbrio interior – entre sua
razão, vontade e sensibilidade – e em perfeita harmonia com a vontade de
Deus. Cedendo à tentação do demônio e levantando sua própria vontade
contra a expressa vontade de Deus, pecou.
A ordem anterior foi quebrada
e, por castigo, o dom de integridade, aquele equilíbrio perfeito,
foi-lhe retirado. Como resultante, toda a sua descendência – mesmo sendo
lavada do pecado original pelo Batismo – permanece com o efeito
evidente desse pecado em sua natureza.(5)
São Francisco
de Sales afirma haver ficado nossa vontade facilmente sujeita aos
caprichos dos apetites inferiores: “o pecado enfraqueceu mais a vontade
humana do que obscureceu o entendimento, e a rebelião do apetite
sensual, a que chamamos de concupiscência, perturba certamente o
entendimento, mas é contra a vontade, que ele excita principalmente à
revolta”.(6)
Contudo,
assevera Sertillanges, a vontade não pode deixar de querer o bem no seu
sentido universal, pois é ele seu objeto próprio enquanto natureza. “A
isso a vontade não pode escapar, e como toda ação não é, no fundo, mais
que uma manifestação da natureza, em toda ação que é fruto da vontade,
pode-se ver a marca do bem e sua influência”.(7)
Portanto, ainda quando o
homem peca, dá ao pecado uma aparência de bem, pois “o mal nunca é amado
senão sob a razão de bem, isto é, enquanto é um bem relativo apreendido
como um bem absoluto”.(8) E acrescenta São Tomás: “é desta maneira que o
homem ama a iniquidade, enquanto que por ela alcança um certo bem, como o
prazer, o dinheiro ou coisa semelhante”.(9)
Para que a vontade humana seja boa deve conformar-se com a divina
Pelo fato de
ser esclarecido por uma inteligência ordenada ao universal, o desejo da
vontade naturalmente é, de certo modo, infinito, por causa da infinitude
do seu objeto. Em face de qualquer bem limitado, conforme nos elucida
Garrigou-Lagrange, “a inteligência, verificando imediatamente o limite,
concebe um bem superior e, naturalmente, esse bem é desejado pela
vontade”.(10)
Ora, se a
vontade não dirige o enorme ímpeto do seu querer – um amor espiritual a
Deus -, acaba transferindo toda a amplitude deste aos bens sensíveis.
Mas como tem desejo de infinito, passa a ser atraída por um abismo
implacável: “a concupiscência que não é natural, a do homem depravado,
não tem limites, porque, pela sua inteligência, ele concebe sempre novas
riquezas e novos prazeres; daí vêm, por vezes, as querelas sem fim
entre os indivíduos e as guerras intermináveis entre os povos. O
avarento é insaciável, assim como o homem do prazer ou aquele que aspira
sempre a dominar”.(11)
Para ser boa,
diz São Tomás, a vontade humana deve atingir sua própria medida,
conformando-se com a vontade divina. Isto porque “aquilo que é primeiro
em qualquer gênero é a medida e a razão de tudo que é desse gênero”.(12) O
cerne do ideal moral consiste nessa conformidade e constitui a maior
prova da nossa vontade.
“A
conformidade mais real, mais íntima, mais profunda”, observa Tanquerey,
“é a que existe entre duas vontades”.(13) E Deus quer estabelecer conosco
exatamente essa estreita afinidade. Em sua bondade, Ele também nos
fornece, no Evangelho, um exemplo vivo, sublime e insuperável de como
atingir esta feliz condição.
“Não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”.
A rica
variação entre os relatos dos Santos Evangelistas é, sobretudo, evidente
quanto aos textos sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O
Evangelho de São Mateus, por exemplo, ao descrever a agonia de Cristo no
Horto de Getsêmani, é o único a mencionar três súplicas distintas –
embora essencialmente idênticas -, feitas por Nosso Senhor.
“Adiantou-se
um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: ‘Meu Pai,
se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu
quero, mas sim o que tu queres'” (Mt 26, 39). Depois de interromper sua
oração para admoestar e chamar à oração os discípulos que se encontravam
dormindo, “afastou-se pela segunda vez e orou, dizendo: ‘Meu Pai, se
não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua
vontade!'” (Mt 26, 42). A seguir, ao achar seus três companheiros
novamente dormindo, “deixou-os e foi orar pela terceira vez, dizendo as
mesmas palavras” (Mt 26, 44).
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No Batismo, as virtudes infusas são
proporcionadas às potências humanas
para aperfeiçoar a natureza |
Dos outros
evangelistas, somente São Lucas alude a esse episódio, mas faz
referência a uma única súplica, embora acrescentando o comovente detalhe
do suor de sangue, tão profuso que escorreu pela terra (cf. Lc 22, 44).
Dada a forçosa brevidade observada pelos evangelistas, qualquer
repetição pareceria convidar o leitor a uma atenção toda especial. São
João Crisóstomo chega a afirmar ser sempre uma demonstração
especialíssima da verdade, uma tríplice repetição na linguagem dos
Evangelhos.(14 )
Que admirável lição quis o Divino Espírito Santo nos dar
ao inspirar São Mateus a sublinhar essa tríplice renúncia de Jesus à sua
própria vontade bem como a aceitação incondicional da vontade do Pai?
Com as
palavras, “Não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”, ou
então, nas palavras transmitidas por São Lucas: “Não se faça, todavia, a
minha vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42), o Salvador manifesta uma
atitude constante durante sua vida. Assim, lemos: “Meu alimento é fazer a
vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra. (Jo 4, 34); “Não
busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5, 30);
“Pois desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele
que me enviou” (Jo 6, 38).
O oferecimento no Monte das Oliveiras,
então, não é senão uma culminação desta submissão contínua.
Em Cristo há duas vontades
Assegura ainda
São Tomás ser preciso afirmar que, tendo o Filho de Deus assumido uma
natureza humana perfeita, e pertencendo a vontade à perfeição desta, Ele
assumiu também uma vontade humana. Contudo, ao assumir nossa natureza,
não sofreu Ele nenhuma diminuição quanto à sua natureza divina, à qual
compete ter vontade. “Por isso, é necessário dizer que em Cristo há duas
vontades, uma divina e outra humana”.(15)
Deste modo, ao
pronunciar as palavras “a minha vontade”, Jesus podia, com toda a
propriedade, falar de sua vontade divina. Não obstante, Nosso Senhor
falava da sua vontade humana, como fica claro pelo contexto, pois Ele
“não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si
mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fl
2, 6-7).
Assim,
servindo-se de sua natureza humana, sendo do nosso próprio gênero, Jesus
se fez um Modelo para nós, para sermos mais prontamente movidos a
segui-Lo. Se Ele – enquanto Deus igual ao Pai, e enquanto homem
completamente sem culpa -, livre e amorosamente, submeteu sua vontade
humana à vontade do Pai, fica impossível duvidar da necessidade de a
humanidade fazer o mesmo.
Mas como
adequar nossas pobres vontades com a d’Aquele que declara: “Assim como
os céus se elevam acima da terra, elevam-se os meus caminhos sobre os
vossos” (Is 55, 9)? Sobretudo depois da contaminação do pecado original,
pois só temos a possibilidade de agir estavelmente segundo a Lei de
Deus com auxílio da graça. De igual maneira, só pela influência de uma
virtude especial somos capacitados a conformar as nossas vontades à do
Pai, a exemplo de Jesus, movidos por amor sobrenatural.
Caridade e santo abandono ao beneplácito divino
No Batismo,
junto com a graça santificante, as virtudes infusas são proporcionadas
às potências humanas para aperfeiçoar a natureza. Entre essas virtudes, a
caridade corresponde à vontade, e a leva ao ato sobrenatural de amor a
Deus. Conforme São João da Cruz, este é o mais alto grau de união
transformante: “quando as duas vontades, a da alma e a de Deus, de tal
modo se unem e conformam que nada há em uma que contrarie a outra.
Assim, quando a alma tirar de si, totalmente, o que repugna e não se
identifica à vontade divina, será transformada em Deus por amor”.(16)
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A submissão da vontade humana à
vontade divina foi uma constante
na vida de Nosso Senhor
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Desse modo,
mesmo na submissão necessária à chamada vontade significada de Deus,
abrangendo os preceitos expressos estabelecidos por Ele, é a caridade
que nos move a renunciar ao proibido e a obedecer aos decretos divinos,
de modo ideal. No entanto, na conformidade à vontade de beneplácito de
Deus brilha uma generosidade e amor ainda maiores, pois a prática da lei
é algo mensurável e sempre claro, mas o santo abandono ao beneplácito
divino exige uma flexibilidade e confiança sem medida, porque por meio
dele adere-se, por amor, ao que nem se conhece ou entende plenamente
ainda; adere-se, enfim, a todo o plano de Deus a nosso respeito,
simplesmente porque Ele quer, apesar da aversão espontânea que nossa
natureza sensitiva possa apresentar.(17)
“Venha a nós o vosso Reino”
As palavras de
Nosso Senhor no Horto das Oliveiras refletem o mais perfeito modelo
desta disposição de alma, conforme ensina Santo Agostinho, referindo-se
ao Corpo Místico de Cristo: “Esta expressão da cabeça é a salvação do
corpo inteiro; esta expressão instrui todos os fiéis, anima os
confessores e coroa os mártires, porque, quem poderia vencer os ódios do
mundo, o ímpeto das tentações e os terrores da perseguição, se Jesus
Cristo não tivesse dito a seu Pai, em todos e por todos: ‘Seja feita
vossa vontade’? Aprendam esta voz todos os filhos da Igreja, para que,
quando venha a dureza da adversidade, vencido o temor e o espanto,
suportem com resignação qualquer tipo de sofrimento”.(18)
Existe, então,
uma solução para o problema da vontade humana, tão embaraçada pela
desordem da natureza decaída com a qual nascemos e pelo mundo imerso em
pecado onde habitamos, fazendo surgir a esperança da vida eterna. Pois,
segundo as palavras consoladoras de São João Evangelista, “o mundo passa
com as suas concupiscências, mas quem cumpre a vontade de Deus
permanece eternamente” (I Jo 2, 17).
Para
estimular-nos mais ainda, o Divino Mestre afirmou ter um laço de união
tão forte como o de família com quem segue esse caminho: “Todo aquele
que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha
irmã e minha mãe” (Mt 12, 50). Assim, foi Ele mesmo Quem nos ensinou a
preparar, ainda nesta Terra, as condições para se estabelecer o Reino de
Deus, o qual não é senão uma conformidade de todas as vontades à
vontade divina, tornando este mundo semelhante ao Céu: “Venha a nós o
vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mt
6, 10).
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Notas:
1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.1, a.2.
2 Idem, I-II, q.2, a.8.
3 Idem, I, q.62, a.5, ad.1.
4 Idem, I, q.77, a.2.
5 Cf. Idem, II-II, q.164, a.1.
6 SÃO FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus. L.1, c.17.
7 SERTILLANGES, Antonin-Gilbert. S. Thomas d’Aquin. 4.ed. Madison: Alcan, 1925, v.II, p.207.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.27, a.1, ad.1.
9 Idem, ibidem.
10 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. O homem e a eternidade. Lisboa: Aster, 1959, p.22.
11 Idem, p.17.
12 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.19, a.9.
13 TANQUEREY, Adolfe. Compêndio de Teologia ascética e mística. 6.ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1961, p.238.
14 Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea, v.II: São Mateus, c.XXVI, v.39-44.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q. 18, a.1.
16 SÃO JOÃO DA CRUZ. Subida do Monte Carmelo, L.II,c.5. In: Obras Completas. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
17 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Providencia y la confianza en
Dios. 2.ed. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1942, p.201-203.
18 SANTO AGOSTINHO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea, v.II: São Mateus, c.XXVI, v.39-44.
(Revista Arautos do Evangelho, Abril/2011, n. 112, p. 34 à 37)