18º Domingo do Tempo Comum - Ano C
Só em Deus e com Deus seremos capazes de encontrar o sentido da vida e
preencher a nossa existência.
A liturgia deste domingo
questiona-nos acerca da atitude que assumimos face aos bens deste mundo.
Sugere que eles não podem ser os
deuses que dirigem a nossa vida; e convida-nos a descobrir e a amar esses
outros bens que dão verdadeiro sentido à nossa existência e que nos garantem a
vida em plenitude.
No Evangelho, através da
“parábola do rico insensato”, Jesus denuncia a falência de uma vida voltada
apenas para os bens materiais: o homem que assim procede é um “louco”, que
esqueceu aquilo que, verdadeiramente, dá sentido à existência.
Na primeira leitura,
temos uma reflexão do “qohélet” sobre o sem sentido de uma vida voltada para o
acumular bens… Embora a reflexão do “qohélet” não vá mais além, ela constitui
um patamar para partirmos à descoberta de Deus e dos seus valores e para
encontramos aí o sentido último da nossa existência.
A segunda leitura convida-nos
à identificação com Cristo: isso significa deixarmos os “deuses” que nos
escravizam e renascermos continuamente, até que em nós se manifeste o Homem
Novo, que é “imagem de Deus”.
LEITURA I – Co (Ecle) 1,2; 2,21-23
O Livro de Qohélet é um livro de
carácter sapiencial, escrito pelos finais do séc. III a.C.. Não sabemos quem é
o autor… Em 1,1, apresenta-se o livro como “palavras de qohélet”; mas “qohélet”
é uma forma participial do verbo “qhl” (“reunir em assembleia”): significa,
pois, “aquele que participa na assembleia” ou, numa perspectiva mais activa,
“aquele que fala na assembleia”. O nome “Eclesiastes” (com que também é
designado) é a forma latinizada do grego “ekklesiastes” (nome do livro na
tradução grega do Antigo Testamento): significa o mesmo que “qohélet” – “aquele
que se senta ou que fala na assembleia” (“ekklesia”).
Este “caderno de anotações” de um
“sábio” é um escrito estranho e enigmático, sarcástico, inconformista, polêmico,
que põe em causa os dogmas mais tradicionais de Israel. A sua preocupação
fundamental, mais do que apontar caminhos, parece ser a de destruir certezas e
seguranças. Levanta questões e não se preocupa, minimamente, em encontrar
respostas para essas questões.
O tom geral do livro é de um
impressionante pessimismo. O autor parece negar qualquer possibilidade de
encontrar um sentido para a vida… Defende que o homem é incapaz de ter acesso à
“sabedoria”, que não há qualquer novidade e que estamos fatalmente condenados a
repetir os mesmos desafios, que o esforço humano é vão e inútil, que é
impossível conhecer Deus e que, aconteça o que acontecer, nada vale a pena
porque a morte está sempre no horizonte e iguala-nos com os ignorantes e os
animais… Não é um livro onde se vão procurar respostas; é um livro onde se
denuncia o fracasso da sabedoria tradicional e onde ecoa o grito de angústia de
uma humanidade ferida e perdida, que não compreende a razão de viver.
Em concreto, no texto que hoje a
liturgia nos propõe, o “qohélet” proclama a inutilidade de qualquer esforço
humano. A partir da sua própria experiência, ele foi capaz de concluir
friamente que os esforços desenvolvidos pelo homem ao longo da sua vida não
servem para nada. Que adianta trabalhar, esforçar-se, preocupar-se em construir
algo se teremos, no final, de deixar tudo a outro que nada fez? E o “qohélet”
resume a sua frustração e o seu desencanto nesse refrão que se repete em todo o
livro (25 vezes): “tudo é vaidade”. É uma conclusão ainda mais estranha quanto
a “sabedoria” tradicional “excomungava” aquele que não fazia nada e apresentava
como ideal do “sábio” aquele que trabalhava e que procurava cumprir eficazmente
as tarefas que lhe estavam destinadas.
A grande lição que o “qohélet”
nos deixa é a demonstração da incapacidade de o homem, por si só, encontrar uma
saída, um sentido para a sua vida. O pessimismo do “qohélet” leva-nos a
reconhecer a nossa impotência, o sem sentido de uma vida voltada apenas para o
humano e para o material. Constatando que em si próprio e apenas por si próprio
o homem não pode encontrar o sentido da vida, a reflexão deste livro força-nos
a olhar para o mais além. Para onde? O “qohélet” não vai tão longe; mas nós,
iluminados pela fé, já podemos concluir: para Deus. Só em Deus e com Deus
seremos capazes de encontrar o sentido da vida e preencher a nossa existência.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão e atualização,
as seguintes linhas:
• Quase poderíamos dizer que o
“qohélet” é o precursor desses filósofos existencialistas modernos que
reflectem sobre o sentido da vida e constatam a futilidade da existência, a
náusea que acompanha a vida do homem, a inutilidade da busca da felicidade, o fracasso
que é a vida condenada à morte (Jean Paul Sartre, Albert Camus, André
Malraux…). As conclusões, quer do “qohélet”, quer das filosofias
existencialistas agnósticas, seriam desesperantes se não existisse a fé. Para
nós, os crentes, a vida não é absurda porque ela não termina nem se encerra
neste mundo… A nossa caminhada nesta terra está, na verdade, cheia de
limitações, de desilusões, de imperfeições; mas nós sabemos que esta vida
caminha para a sua realização plena, para a vida eterna: só aí encontraremos o
sentido pleno do nosso ser e da nossa existência.
• A reflexão do “qohélet”
convida-nos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança em coisas
falíveis e passageiras. Quem vive, apenas, para trabalhar e para acumular, pode
encontrar aí aquilo que dá pleno significado à vida? Quem vive obcecado com a
conta bancária, com o carro novo, ou com a casa com piscina num empreendimento
de luxo, encontrará aí aquilo que o realiza plenamente? Para mim, o que é que
dá sentido pleno à vida? Para que é que eu vivo?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão: Senhor, tendes sido o
nosso refúgio através das gerações.
Vós reduzis o homem ao pó da
terra
e dizeis: «Voltai, filhos de
Adão».
Mil anos a vossos olhos são como
o dia de ontem que passou
e como uma vigília da noite.
Vós os arrebatais como um sonho,
como a erva que de manhã
reverdece;
de manhã floresce e viceja,
de tarde ela murcha e seca.
Ensinai-nos a contar os nossos
dias,
para chegarmos à sabedoria do
coração.
Voltai, Senhor! Até quando…
Tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos desde a manhã com a
vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos
todos os dias.
Desça sobre nós a graça do Senhor
nosso Deus.
Confirmai, Senhor, a obra das
nossas mãos.
LEITURA II – Col 3,1-5.9-11
A segunda leitura deste domingo
é, mais uma vez, um trecho dessa Carta aos Colossenses, em que Paulo polemiza
contra os “doutores” para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o
conhecimento dos anjos e com certas práticas legalistas e ascéticas. Paulo
procura demonstrar que a fé em Cristo (entendida como adesão a Cristo e
identificação com Ele) basta para chegar à salvação.
Este texto integra a parte moral
da carta (cf. Col 3,1-4,1): aí Paulo tira conclusões práticas daquilo que
afirmou na primeira parte (que Cristo basta para a salvação) e convoca os
Colossenses a viverem, no dia a dia, de acordo com essa vida nova que os
identificou com Cristo.
O texto que nos é proposto está
dividido em duas partes.
Na primeira (vers. 1-4), Paulo
apresenta, como ponto de partida e como base sólida da vida cristã, a união com
Cristo ressuscitado. Os cristãos, pelo batismo, identificaram-se com Cristo
ressuscitado; dessa forma, morreram para o pecado e renasceram para uma vida
nova. Essa vida deve crescer progressivamente, mas manifestar-se-á em
plenitude, quando Cristo “aparecer” (a Carta aos Colossenses ainda alimenta nos
cristãos a espera da vinda gloriosa de Cristo).
Na segunda parte (vers. 5.9-11),
Paulo descreve as exigências práticas dessa identificação com Cristo
ressuscitado. O cristão deve fazer morrer em si a imoralidade, a impureza, as
paixões, os maus desejos, a cupidez, numa palavra, todos esses falsos deuses
que enchem a vida do homem velho; e, por outro lado, deve revestir-se do Homem
Novo – ou seja, deve renovar-se continuamente até que nele se manifeste a
“imagem de Deus” (“sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai do céu” – cf. Mt
5,48). Quando isso acontecer, desaparecerão as velhas diferenças de povo, de
raça, de religião e todos serão iguais, isto é, “imagem de Deus”. Foi isso que
Cristo veio fazer: criar uma comunidade de homens novos, que sejam no mundo a
“imagem de Deus”.
A identificação com Cristo
ressuscitado – que resulta do Batismo – é, portanto, um renascimento contínuo
que deve levar-nos a parecer-nos cada vez mais com Deus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização podem
partir das seguintes questões:
• Ser batizado é, na perspectiva
de Paulo, identificar-se com Cristo e, portanto, renunciar aos mecanismos que
geram egoísmo, ambição, injustiça, orgulho, morte – os mesmos que Jesus
rejeitou como diabólicos; e é, em contrapartida, escolher uma vida de doação,
de entrega, de serviço, de amor – os mecanismos que levaram Jesus à cruz, mas
que também o levaram à ressurreição. Eu estou a ser coerente com as exigências
do meu Batismo? Na minha vida há uma opção clara pelas “coisas do alto”, ou
essas “coisas da terra” (brilhantes, sugestivas, mas efêmeras) têm prioridade e
condicionam a minha ação?
• O objetivo da nossa vida (esse objetivo
que deve estar sempre presente diante dos nossos olhos e que deve constituir a
meta para a qual caminhamos) é, de acordo com Paulo, a renovação contínua da
nossa vida, a fim de que nos tornemos “imagem de Deus”. Aqueles que me rodeiam
conseguem detectar em mim algo de Deus? Que “imagem de Deus” é que eu transmito
a quem, diariamente, contata comigo?
• A comunidade cristã é essa
família de irmãos onde as diferenças (de raça, de cultura, de posição social,
de perspectiva política, etc.) são ilusórias, porque o fundamental é que todos
caminham para ser “imagem de Deus”. Isto é realidade? Nas nossas comunidades
(cristãs ou religiosas), todos os membros são tratados com igual dignidade,
como “imagem de Deus”?
• Convém não esquecer que a
construção do “Homem Novo” é uma tarefa que exige uma renovação constante, uma
atenção constante, um compromisso constante. Enquanto estamos neste mundo,
nunca podemos cruzar os braços e dar a nossa caminhada para a perfeição por
terminada: cada instante apresenta-nos novos desafios, que podem ser vencidos
ou que podem vencer-nos.
ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em
espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Lc 12,13-21
Continuamos a percorrer o
“caminho de Jerusalém” e a escutar as lições que preparam os discípulos para
serem as testemunhas do Reino. A catequese, que Jesus hoje apresenta, é sobre a
atitude face aos bens.
A reflexão é despoletada por uma
questão relacionada com partilhas… Um homem queixa-se a Jesus porque o irmão
não quer repartir com ele a herança. Segundo as tradições judaicas, o filho
primogénito de uma família de dois irmãos recebia dois terços das possessões
paternas (cf. Dt 21,17. É possível que só fossem repartidos os bens móveis e
que, para guardar intacto o património da família, a casa e as terras fossem
atribuídas ao primogénito). O homem que interpela Jesus é, provavelmente, o
irmão mais novo, que ainda não tinha recebido nada. Era frequente, no tempo de
Jesus, que os “doutores da lei” assumissem o papel de juízes em casos
similares… Como é que Jesus Se vai situar face a esta questão?
Jesus escusa-Se, delicadamente, a
envolver-Se em questões de direito familiar e a tomar posição por um irmão
contra outro (“amigo, quem me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?” –
vers. 14). O que estava em causa na questão era a cobiça, a luta pelos bens, o
apego excessivo ao dinheiro (talvez por parte dos dois irmãos em causa). A
conclusão que Jesus tira (vers. 15) explica porque é que Ele não aceita
meter-Se na questão: o dinheiro não é a fonte da verdadeira vida. A cobiça dos
bens (o desejo insaciável de ter) é idolatria: não conduz à vida plena, não
responde às aspirações mais profundas do homem, não conduz a um autêntico
amadurecimento da pessoa. A lógica do “Reino” não é a lógica de quem vive para
os bens materiais; quem quiser viver na dinâmica do Reino deverá ter isto
presente.
A parábola que Jesus vai
apresentar na sequência (vers. 16-21) ilustra a atitude do homem voltado para
os bens perecíveis, mas que se esquece do essencial – aquilo que dá a vida em plenitude. Apresenta-nos
um homem previdente, responsável, trabalhador (que até podíamos admirar e
louvar); mas que, de forma egoísta e obsessiva, vive apenas para os bens que
lhe asseguram tranquilidade e bem-estar material (e nisso, já não o podemos
louvar e admirar). Esse homem representa, aqui, todos aqueles cuja vida é
apenas um acumular sempre mais, esquecendo tudo o resto – inclusive Deus, a
família e os outros; representa todos aqueles que vivem uma relação de
“circuito fechado” com os bens materiais, que fizeram deles o seu deus pessoal
e que esqueceram que não é aí que está o sentido mais fundamental da
existência.
A referência à ação de Deus, que
põe repentinamente um ponto final nesta existência egoísta e sem significado,
não deve ser muito sublinhada: ela serve, apenas, para mostrar que uma vida
vivida desse jeito não tem sentido e que quem vive para acumular mais e mais
bens é, aos olhos de Deus, um “insensato”.
O que é que Jesus pretende, ao
contar esta história? Convidar os seus discípulos a despojar-se de todos os
bens? Ensinar aos seus seguidores que não devem preocupar-se com o futuro?
Propor aos que aderem ao Reino uma existência de miséria, sem o necessário para
uma vida minimamente digna e humana? Não. O que Jesus pretende é dizer-nos que
não podemos viver na escravatura do dinheiro e dos bens materiais, como se eles
fossem a coisa mais importante da nossa vida. A preocupação excessiva com os
bens, a busca obsessiva dos bens, constitui uma experiência de egoísmo, de
fechamento, de desumanização, que centra o homem em si próprio e o impede de
estar disponível e de ter espaço na sua vida para os valores verdadeiramente
importantes – os valores do Reino. Quando o coração está cheio de cobiça, de
avareza, de egoísmo, quando a vida se torna um combate obsessivo pelo “ter”,
quando o verdadeiro motor da vida é a ânsia de acumular, o homem torna-se
insensível aos outros e a Deus; é capaz de explorar, de escravizar o irmão, de
cometer injustiças, a fim de ampliar a sua conta bancária. Torna-se orgulhoso e
auto-suficiente, incapaz de amar, de partilhar, de se preocupar com os outros…
Fica, então, à margem do Reino.
Atenção: esta parábola não se
destina apenas àqueles que têm muitos bens; mas destina-se a todos aqueles que
(tendo muito ou pouco) vivem obcecados com os bens, orientam a sua vida no
sentido do “ter” e fazem dos bens materiais os deuses que condicionam a sua
vida e o seu agir.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, ter em conta os
seguintes elementos:
• A Palavra de Deus que aqui nos
é servida questiona fortemente alguns dos fundamentos sobre os quais a nossa
sociedade se constrói. O capitalismo selvagem que, por amor do lucro, escraviza
e obriga a trabalhar até à exaustão (e por salários miseráveis) homens,
mulheres e crianças, continua vivo em tantos cantos do nosso planeta… Podemos,
tranquilamente, comprar e consumir produtos que são fruto da escravidão de
tantos irmãos nossos? Devemos consentir, com a nossa indiferença e passividade,
em aumentar os lucros imoderados desses empresários/sanguessugas que vivem do
sangue dos outros?
• Entre nós, o capitalismo assume
um “rosto” mais humano nas teses do liberalismo econômico; mas continua a impor
a filosofia do lucro, a escravatura do trabalhador, a prioridade dos critérios
de planificação, de eficiência, de produção em relação às pessoas. Podemos
consentir que o mundo se construa desta forma? Podemos consentir que as leis
laborais favoreçam a escravidão do trabalhador? Que podemos fazer? Nós cristãos
– nós Igreja – não temos uma palavra a dizer e uma posição a tomar face a isto?
• Qualquer trabalhador – muitos
de nós, provavelmente – passa a vida numa escravatura do trabalho e dos bens,
que não deixa tempo nem disponibilidade para as coisas importantes – Deus, a
família, os irmãos que nos rodeiam. Muitas vezes, o mercado de trabalho não nos
dá outra hipótese (se não produzimos de acordo com a planificação da empresa,
outro ocupará, rapidamente, o nosso lugar); outras vezes, essa escravatura do
trabalho resulta de uma opção consciente… Quantas pessoas escolhem prescindir
dos filhos, para poder dedicar-se a uma carreira de êxito profissional que as
torne milionárias antes dos quarenta anos… Quantas pessoas esquecem as suas
responsabilidades familiares, porque é mais importante assegurar o dinheiro
suficiente para as férias na Tailândia ou na República Dominicana… Quantas
pessoas renunciam à sua dignidade e aos seus direitos, para aumentar a conta
bancária… Tornamo-nos, assim, mais felizes e mais humanos? É aí que está o
verdadeiro sentido da vida?
• O que Jesus denuncia aqui não é
a riqueza, mas a deificação da riqueza. Até alguém que fez “voto de pobreza”
pode deixar-se tentar pelo apelo dos bens e colocar neles o seu interesse
fundamental… A todos Jesus recomenda: “cuidado com os falsos deuses; não deixem
que o acessório vos distraia do fundamental”.
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