REFLEXÃO:
“viver na luz”.
As leituras deste Domingo propõem-nos o tema da “luz”. Definem a experiência cristã como “viver na luz”.
A primeira leitura
não se refere diretamente ao tema da “luz” (o tema central na liturgia
deste domingo). No entanto, conta a escolha de David para rei de Israel
e a sua unção: é um ótimo pretexto para refletirmos sobre a unção que
recebemos no dia do nosso Batismo e que nos constituiu testemunhas da
“luz” de Deus no mundo.
O nosso relato apresenta-nos uma bem
elaborada reflexão sobre a eleição. O autor do texto pretende mostrar
que a lógica de Deus é bem diferente, neste capítulo, da lógica dos
homens.
Antes de mais, David é apresentado como o
eleito de Jahwéh. É sempre Jahwéh que escolhe aqueles a quem quer
confiar uma missão. Nem a Samuel – o seu enviado – Jahwéh dá qualquer
explicação. A eleição não resulta da iniciativa do homem, mas sim da
iniciativa e da vontade livre de Deus.
Em segundo lugar, impressiona a lógica da
escolha de Deus. Samuel raciocina com a lógica dos homens e pretende
ungir como rei o filho mais velho de Jessé de Belém, impressionado pelo
seu belo aspecto e pela sua estatura; mas não é essa a escolha de Deus…
Samuel percebe, finalmente, que a escolha de Deus recai sobre David – o
filho mais novo de Jessé – um jovem anónimo e desconhecido que andava a
guardar o rebanho do pai.
A história da eleição de David quer
sublinhar a lógica de Deus, que escolhe sem ter em conta os méritos, o
aspecto ou as qualidades humanas que costumam impressionar os homens.
Pelo contrário, Deus escolhe e chama, com frequência, os pequenos, os
mais fracos, aqueles que o mundo marginaliza e considera
insignificantes; e é através deles que age no mundo.
Fica, assim, claro que quem leva a cabo a
obra da salvação é Deus; os homens são apenas instrumentos, através dos
quais Deus realiza a sua obra no mundo.
Na segunda leitura,
Paulo propõe aos cristãos de Éfeso que recusem viver à margem de Deus
(“trevas”) e que escolham a “luz”. Em concreto, Paulo explica que viver
na “luz” é praticar as obras de Deus (a bondade, a justiça e a verdade).
A imagem da “luz” e das “trevas”, aqui
utilizada, é uma imagem que aparecia frequentemente na catequese
primitiva, como sugere o seu uso nos textos neo-testamentários,
sobretudo em João e Paulo (cf. Jo 1,4-5; 3,19.21; 8,12; 1 Jo 1,5-7;
2,9-11; Rom 2,19; 2 Cor 4,6; 1 Tess 5,4-7). O símbolo “luz/trevas”
aparece, também, nos escritos de Qûmran para definir o mundo de Deus
(luz) e o mundo que se opõe a Deus (trevas).
Para Paulo, viver nas “trevas” é viver à
margem de Deus, recusar as suas propostas, viver prisioneiro das paixões
e dos falsos valores, no egoísmo e na autossuficiência. Ao contrário,
viver na “luz” é acolher o dom da salvação que Deus oferece, aceitar a
vida nova que Ele propõe, escolher a liberdade, tornar-se “filho de
Deus”.
Os cristãos são aqueles que escolheram
viver na “luz”. Paulo, dirigindo-se aos cristãos da parte ocidental da
Ásia Menor, exorta-os a viverem na órbita de Deus, como Homens Novos, e a
praticarem as obras correspondentes à opção que fizeram pela “luz”. Em
concreto, Paulo pede-lhes que as suas vidas sejam marcadas pela bondade,
pela justiça e pela verdade. A propósito, Paulo cita um velho hino
cristão batismal, que convoca os crentes para viverem na “luz” (vers.
14).
Mais ainda: o cristão não é só chamado a
viver na “luz”; mas deve desmascarar as “trevas” e denunciar as obras e
os comportamentos daqueles que escolhem viver nas “trevas” do egoísmo,
da mentira, da escravidão e do pecado. O cristão não deve só escolher a
luz, mas deve também desmascarar as obras das “trevas”, de forma aberta e
decidida.
No Evangelho, Jesus
apresenta-se como “a luz do mundo”; a sua missão é libertar os homens
das trevas do egoísmo, do orgulho e da autossuficiência. Aderir à
proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de
realização que conduz à vida plena. Da ação de Jesus nasce, assim, o
Homem Novo – isto é, o Homem elevado às suas máximas potencialidades
pela comunicação do Espírito de Jesus.
O nosso texto não é uma reportagem
jornalística sobre a cura de um cego; mas é uma catequese, na qual se
apresenta Jesus como a “luz” que veio iluminar o caminho dos homens. O
“cego” da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que
vivem na escuridão, privados da “luz”, prisioneiros dessas cadeias que
os impedem de chegar à plenitude da vida.
A reflexão apresenta-se em
vários quadros.
No primeiro quadro (vers. 2-5), Jesus
apresenta-se como “a luz do mundo”. Jesus e os discípulos estão diante
de um cego de nascença. De acordo com a teologia da época, o sofrimento
era sempre resultado do pecado; por isso, os discípulos estavam
preocupados em saber se foi o cego que pecou ou se foram os seus pais.
Jesus desmonta esta perspectiva e nega qualquer relação entre pecado e
sofrimento. No entanto, a ocasião é propícia para ir mais além; e Jesus
aproveita-a para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é ser “a luz
do mundo” e encher de “luz” a vida dos que vivem nas trevas.
No segundo quadro (vers. 6-7), Jesus
passa das palavras aos actos e prepara-se para dar a “luz” ao cego.
Começa por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo
os olhos do cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o
gesto criador de Deus de Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o
homem). A saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia
vital (equivale ao sopro de Deus, que deu vida a Adão – cf. Gn 2,7).
Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria energia vital, repetindo o
gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um Homem Novo, animado
pelo Espírito de Jesus.
No entanto, a cura não é imediata:
requer-se a cooperação do enfermo. “Vai lavar-te na piscina de Siloé” –
diz-lhe Jesus. A disponibilidade do cego em obedecer à ordem de Jesus é
um elemento essencial na cura e sublinha a sua adesão à proposta que
Jesus lhe faz. A referência ao banho na piscina do “enviado” (o autor
deste texto tem o cuidado de explicar que Siloé significa “enviado”) é,
evidentemente, uma alusão à água de Jesus (o enviado do Pai), essa água
que torna os homens novos, livres das trevas/escravidão. A comunidade
joânica pretenderá, certamente, fazer aqui uma catequese sobre o
batismo: quem quiser sair das trevas para viver na luz, como Homem
Novo, tem de aceitar a água do batismo – isto é, tem de optar por Jesus
e acolher a proposta de vida que Ele oferece.
Depois, o autor do texto coloca em cena
várias personagens; essas personagens vão assumir representar vários
papéis e assumir atitudes diversas diante da cura do cego.
Os primeiros a ocupar a cena são os
vizinhos e conhecidos do cego (vers. 8-12). A imagem do cego, dependente
e inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus
concidadãos a interrogar-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em
plenitude; talvez anseiem pelo encontro com Jesus, mas não se atrevem a
dar o passo definitivo (ir ao encontro de Jesus) para ter acesso à
“luz”. Representam aqueles que percebem a novidade da proposta que Jesus
traz, que sabem que essa proposta é libertadora, mas que vivem na
inércia, no comodismo e não estão dispostos a sair do seu “cantinho”, do
seu mundo limitado, para ir ao encontro da “luz”.
Um outro grupo que aparece em cena é o
dos fariseus (vers. 13-17). Eles sabem perfeitamente que Jesus oferece a
“luz”; mas recusam-na liminarmente. Para eles, interessa continuar com o
esquema das “trevas”. Representam aqueles que têm conhecimento da
novidade de Jesus, mas não estão dispostos a acolhê-la. Sentem-se mais
confortáveis nos seus esquemas de escravidão e autossuficiência e não
estão dispostos a renunciar às “trevas”. Mais: opõem-se decididamente à
“luz” que Jesus oferece e não aceitam que alguém queira sair da
escravidão para a liberdade. Quando constatam que o homem curado por
Jesus não está disposto a voltar atrás e a regressar aos esquemas de
escravidão, expulsam-no da sinagoga: entre as “trevas” (que os
dirigentes querem manter) e a “luz” (que Jesus oferece), não pode haver
compromisso.
Depois, aparecem em cena os pais do cego
(vers. 18-23). Eles limitam-se a constatar o acontecimento (o filho
nasceu cego e agora vê), mas evitam comprometer-se. Na sua atitude,
transparece o medo de quem é escravo e não tem coragem de passar das
“trevas” para a “luz”. O texto explica, inclusive, que eles “tinham medo
de ser expulsos da sinagoga”.
A “sinagoga” designava o local do
encontro da comunidade israelita; mas designava, também, a própria
comunidade do Povo de Deus. Ser expulso da “sinagoga” significava a
excomunhão, o risco de ser declarado herege e apóstata, de perder os
pontos de referência comunitários, o cair na solidão, no ridículo, no
descrédito e na marginalidade. Preferem a segurança da ordem
estabelecida – embora injusta e opressora – do que os riscos da vida
livre. Representam todos aqueles que, por medo, preferem continuar na
escravidão, não provocar os dirigentes ou a opinião pública, do que
correr o risco de aceitar a proposta transformadora de Jesus.
Finalmente, reparemos no “percurso” que o
homem curado por Jesus faz. Antes de se encontrar com Jesus, é um homem
prisioneiro das “trevas”, dependente e limitado. Depois, encontra-se
com Jesus e recebe a “luz” (do encontro com Jesus resulta sempre uma
proposta de vida nova para o homem). O relato descreve – com
simplicidade, mas também de uma forma muito bela – a progressiva
transformação que o homem vai sofrendo. Nos momentos imediatos à cura,
ele não tem ainda grandes certezas (quando lhe perguntam por Jesus,
responde: “não sei”; e quando lhe perguntam quem é Jesus, ele responde:
“é um profeta”); mas a “luz” que agora brilha na sua vida vai-o
amadurecendo progressivamente. Confrontado com os dirigentes e intimado a
renegar a “luz” e a liberdade recebidas, ele torna-se, em dado momento,
o homem das certezas, das convicções; argumenta com agilidade e
inteligência, joga com a ironia, recusa-se a regressar à escravidão:
mostra o homem adulto, maduro, livre, sem medo… É isso que a “luz” que
Jesus oferece produz no homem. Finalmente, o texto descreve o estádio
final dessa caminhada progressiva: a adesão plena a Jesus (vers. 35-38).
Encontrando o ex-cego, Jesus convida-o a aderir ao “Filho do Homem”
(“acreditas no Filho do Homem?” – vers. 35); a resposta do ex-cego é a
adesão total: “creio, Senhor” (vers. 38). O título “Senhor” (“kyrios”)
era o título com que a comunidade cristã primitiva designava Jesus, o
Senhor glorioso. Diz, ainda, o texto, que o ex-cego se prostrou e adorou
Jesus: adorar significa reconhecer Jesus como o projeto de Homem Novo
que Deus apresenta aos homens, aderir a Ele e segui-l’O.
Neste percurso está simbolicamente
representado o “caminho” do catecúmeno. O primeiro passo é o encontro
com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua adesão à “luz” e vai
amadurecendo a sua descoberta… Torna-se, progressivamente, um homem
livre, sem medo, confiante; e esse “caminho” desemboca na adesão total a
Jesus, no reconhecimento de que Ele é o Senhor que conduz a história e
que tem uma proposta de vida para o homem… Depois disto, ao cristão nada
mais interessa do que seguir Jesus.
A missão de Jesus é aqui apresentada como
criação de um Homem Novo. Deus criou o homem para ser livre e feliz;
mas o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, dominaram o coração do
homem, prenderam-no num esquema de “cegueira” e frustraram o projeto de
Deus. A missão de Jesus consistirá em destruir essa “cegueira”,
libertar o homem e fazê-lo viver na “luz”. Trata-se de uma nova criação…
Assim, da ação de Jesus irá nascer um Homem Novo, liberto do egoísmo e
do pecado, vivendo na liberdade, a caminho da vida em plenitude.
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