Qual é o papel da dor na vida do homem?
Deve ela ser desejada ou
detestada? Ela é inevitável? Questões como estas povoavam a mente do
célebre escritor católico francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) quando
escrevia uma de suas grandes obras, "L'Oblat", da qual transcrevemos o
trecho a seguir:
Para
tentar compreender a razão de ser dessa terrível benfeitora, seria
preciso remontar à primeira idade do mundo, entrar naquele Éden onde,
assim que Adão conheceu o pecado, a dor surgiu. Ela foi a primogênita
das obras do homem, e desde então o persegue na terra e mesmo além do
túmulo, até o limiar do Paraíso.
Ela foi a filha expiatória da desobediência, aquela que o Batismo, que apaga o pecado original, não extinguiu.
À
água do sacramento, ela acrescentou a água das lágrimas. Tanto quanto
lhe foi possível, ela limpou as almas com as duas substâncias tomadas do
próprio corpo do homem: a água e o sangue.
Odiosa para todos e detestada, ela martirizou as gerações que se seguiram.
De
pai para filho, a Antiguidade transmitiu o ódio e o medo a essa
comissária das obras divinas, essa torturadora, incompreensível para o
paganismo que a erigiu em deusa má não aplacável pelas orações e pelas
oferendas.
Andou
durante séculos sob o peso da maldição da humanidade. Cansada de, em
sua tarefa reparadora, inspirar apenas cóleras e vaias, ela esperou –
também ela – com impaciência a vinda do Messias que devia redimi-la de
sua abominável fama e destruir o execrável estigma que levava consigo.
Ela
O esperava como Redentor, mas também como o Noivo que lhe era destinado
desde a queda. Para Ele reservava suas violências amorosas até então
reprimidas porque, no cumprimento de sua triste e santa missão, ela só
podia distribuir torturas quase intoleráveis; ela reduzia suas
desoladoras carícias à proporção das pessoas; ela não se entregava
inteira aos desesperados que a rejeitavam e a injuriavam, mesmo quando
pressentiam que ela simplesmente os espreitava, sem aproximar-se
demasiadamente deles.
Ela
foi de fato magnífica amante somente com o Homem-Deus, cuja capacidade
de sofrimento ultrapassava o que ela tinha conhecido. Arrastou- se para
junto d’Ele naquela noite espantosa em que, só e abandonado numa gruta,
Ele assumia os pecados do mundo. E ela exaltou-se assim que O abraçou, e
tornou-se grandiosa.
Ela
era tão terrível que Ele desfaleceu ao seu contato. Sua Agonia foi o
noivado dela. Seu sinal de aliança, como o de qualquer noiva, foi um
anel, mas um anel enorme que de anel tinha apenas a forma e, além d
e ser um símbolo de casamento, era um emblema de realeza, uma coroa.
Com
esse diadema, ela cingiu a cabeça de seu Esposo, antes mesmo que os
judeus tivessem trançado a coroa de espinhos por ela encomendada, e a
fronte divina circundou-se de um suor de rubis e adornou-se com uma jóia
de pérolas de sangue. Ela O saciou com os únicos afagos de que era
capaz, isto é, com tormentos atrozes e sobre-humanos. E como esposa
fiel, prendeu-se a Ele e não mais O abandonou. Maria Santíssima,
Madalena e as santas mulheres não tinham podido segui-Lo a todos os
lugares. A dor, no entanto, acompanhou- O ao pretório, junto a Herodes,
junto a Pilatos. Ela examinou as tiras de couro dos açoites, retificou o
trançado dos espinhos, afiou o ferro da lança, adelgaçou ciumentamente a
ponta dos cravos.
E
quando chegou o momento supremo das bodas – enquanto Maria, Madalena e
João permaneciam em lágrimas aos pés da cruz – ela, como a pobreza da
qual fala São Francisco de Assis, subiu deliberadamente ao leito do
patíbulo, e da união desses dois rejeitados da terra nasceu a Igreja. Em
golfadas de sangue e água, ela saiu do coração vitimado. E foi o fim.
Tendo Se tornado impassível, Cristo escapava para sempre de seus
abraços. Ela ficou viúva no exato momento em que tinha sido, afinal,
amada, mas descia do Calvário reabilitada por esse amor, resgatada por
essa morte.
Tão
vituperada quanto o Messias, elevara-se com Ele e, ela também, tinha
dominado o mundo do alto da Cruz. Sua missão estava ratificada e
enobrecida. Doravante, ela era compreensível para os cristãos e seria
amada, até o fim dos tempos, por almas que a chamariam para apressar a
expiação de seus pecados e os dos outros, para amá-la em memória e
imitação da Paixão de Cristo Nosso Senhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário