Homilia Quarta –feira de Cinzas :
Convertei-vos a mim de todo o vosso
coração
Hoje, Quarta-Feira de Cinzas porta litúrgica
que introduz na Quaresma a liturgia da Palavra predisposta para a celebração
delineiam, ainda que resumidamente, toda a fisionomia do tempo quaresmal. A
Igreja preocupa-se por nos mostrar qual deve ser a orientação do nosso espírito
e oferece-nos os subsídios divinos para percorrer com decisão e coragem, já
iluminados pelo fulgor do Mistério pascal, o singular itinerário espiritual que
estamos a celebrar, centro de toda a nossa vida Cristã:Paixão, Morte e
ressurreição de Cristo Jesus.
"Convertei-vos a mim de todo
o vosso coração". O apelo à conversão sobressai como tema predominante em
todos os componentes da liturgia. Na
antífona de entrada já se diz que o Senhor esquece e perdoa os pecados de
quantos se convertem; na coleta convida-se o povo cristão a rezar para que cada
um empreenda "um caminho de verdadeira conversão". Na primeira Leitura, o profeta Joel exorta a
converter-se ao Pai "de todo coração, com jejuns, com lágrimas e com
gemidos... porque Ele é bom e compassivo, clemente e misericordioso, inclinado
a arrepender-se de todo o castigo que inflige" (2, 12-13).
A promessa de Deus é clara: se o povo ouvir o convite a converter-se,
Deus fará triunfar a sua misericórdia e os seus amigos serão cumulados de inúmeros
favores. Com o Salmo responsorial, a assembleia litúrgica faz suas as
invocações do Salmo 50, pedindo ao Senhor que crie em nós "um coração
puro", que renove em nós "um espírito reto". Há depois, a página evangélica em que Jesus,
alertando-nos contra o caruncho da vaidade que leva à ostentação e à
hipocrisia, à superficialidade e à autocomplacência, reitera a necessidade de
nutrir a retidão do coração. Ele mostra, ao mesmo tempo, o meio para crescer
nesta pureza de intenção: cultivar a intimidade com o Pai celeste. Particularmente
agradável chega a nós a palavra da segunda Carta aos Coríntios: "Suplicamos-vos, pois, em nome de
Cristo: reconciliai-vos com Deus"
(5, 20). Este convite do Apóstolo ressoa como um ulterior estímulo a levar a
sério o apelo quaresmal à conversão.
Paulo experimentou de maneira extraordinária o poder da graça de Deus, a
graça do Mistério pascal de que a própria Quaresma vive. Ele apresenta-se-nos
como "embaixador" do Senhor. Então, quem melhor do que ele pode
ajudar-nos a percorrer de maneira frutuosa este itinerário de conversão
interior? Na primeira Carta a Timóteo,
escreve: "Jesus Cristo veio a este
mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro", e
acrescenta: "Por isso alcancei
misericórdia, a fim de que Jesus mostrasse, primeiro em mim, toda a sua
magnanimidade, e para que assim servisse de exemplo àqueles que haviam de crer
nele para a vida eterna" (1, 15-16). Portanto, o Apóstolo está consciente
de ter sido escolhido como exemplo, e esta sua exemplaridade diz respeito
precisamente à conversão, à transformação da sua vida que se verificou graças
ao amor misericordioso de Deus. "Embora eu fosse outrora blasfemo,
perseguidor e injuriador reconhece ele alcancei misericórdia... e a graça de
nosso Senhor superabundou" (Ibid., 1, 13-14). Toda a sua pregação e, antes ainda, toda a
sua existência missionária foram sustentadas por um impulso interior
reconduzível à experiência fundamental da "graça". "Pela graça
de Deus, sou o que sou escreve aos Coríntios ... tenho trabalhado mais do que
todos eles [os Apóstolos], não eu, mas a graça de Deus que está comigo" (1
Cor 15, 10) Trata-se de uma consciência
que sobressai em cada um dos seus escritos e funcionou como uma
"alavanca" interior sobre a qual Deus pôde agir para o fazer
progredir rumo a confins sempre novos, não só geográficos mas também
espirituais.
São Paulo reconhece que tudo nele é obra da
graça divina, mas não esquece que é necessário aderir livremente ao dom da vida
nova recebida no Batismo. No texto do capítulo 6 da Carta aos Romanos, que será
proclamado durante a Vigília pascal, escreve: "Não reine, pois, o pecado
no vosso corpo mortal, de modo que obedeçais à concupiscência. Não façais dos
vossos membros armas de injustiça ao serviço do pecado; oferecei-vos antes a
Deus, como ressuscitados dentre os mortos, e os vossos membros, como armas de
justiça ao serviço de Deus" (6, 12-13).
Nestas palavras encontra conteúdo todo o programa da Quaresma, segundo a
sua intrínseca perspectiva batismal. Por um lado, afirma-se a vitória de Cristo
sobre o pecado, que se realizou de uma vez por todas com a sua morte e
ressurreição; por outro, somos exortados a não oferecer os nossos membros ao
pecado, ou seja a não conceder, por assim dizer, espaço de desforra ao
pecado.
A vitória de Cristo espera que o
discípulo a faça sua, e isto acontece antes de tudo com o Batismo mediante o
qual, unidos a Jesus, nos tornamos "ressuscitados dentre os mortos".
Porém, a fim de que Cristo possa reinar plenamente nele, o batizado deve seguir
fielmente os seus ensinamentos; nunca deve abaixar a guarda, para não permitir
que o adversário recupere de alguma forma o terreno. Mas como completar a vocação batismal, como
ser vitorioso na luta entre a carne e o espírito, entre o bem e o mal, luta que
caracteriza a nossa existência?
No trecho evangélico de hoje o
Senhor indica-nos três meios úteis: a
oração, a esmola e o jejum.
No evangelho Jesus nos alerta
sobre o perigo da hipocrisia, ser visto pelos outros, e nos mostra a atitude
correta com a qual devemos dar esmolas, rezar e jejuar.
A este propósito, também na
experiência e nos escritos de São Paulo encontramos referências úteis. Acerca
da oração, ele exorta a "perseverar" e a "velar nela com a ação
de graças" (cf. Rm 12, 12; Cl 4, 2), a "rezar ininterruptamente"
(1 Ts 5, 17). Jesus está no fundo do
nosso coração. A relação com Ele está presente, e permanece presente mesmo
quando falamos, agimos segundo os nossos deveres profissionais. Por isso, na
oração há a presença interior do nosso coração da relação com Deus, que se
torna cada vez também oração explícita.
No que diz respeito à esmola, são certamente importantes as páginas
dedicadas à grande coleta em favor dos irmãos pobres (cf. 2 Cor 8-9), mas é
necessário sublinhar que para ele a caridade é o ápice da vida do crente, o
"vínculo da perfeição": Acima de tudo escreve aos Colossenses
"revesti-vos da caridade que é vínculo da perfeição" (Cl 3, 14). Do jejum não fala expressamente, mas exorta
com freqüência à sobriedade, como característica de quem é chamado a viver na
expectativa vigilante do Senhor (cf. 1 Ts 5, 6-8; Tt 2, 12). É interessante também a sua referência
àquele "agonismo" espiritual, que exige temperança: "Aquele que se prepara para a luta
abstém-se de tudo, a fim de alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, para
alcançar uma coroa incorruptível" (1 Cor 9, 25).
Eis, pois, a vocação dos cristãos: ressuscitados com Cristo, eles passaram
através da morte e a sua vida já está escondida com Cristo em Deus (cf. Cl 3,
1-2). Para viver esta "nova" existência em Deus é indispensável
nutrir-se da Palavra de Deus. Só assim podemos realmente estar unidos a Deus,
viver na sua presença, se nos mantivermos em diálogo com Ele. Jesus diz claramente, quando responde à
primeira das três tentações no deserto, citando o Deuteronômio: "Nem só de pão vive o homem, mas de toda
a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4; cf. Dt 8,3). São Paulo recomenda: "A palavra de Cristo permaneça em vós
abundantemente, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros com salmos,
hinos e cânticos espirituais" (Cl 3, 16).
Também nisto, o Apóstolo é acima
de tudo testemunha: as suas Cartas são a
prova eloquente do fato de que ele vivia em diálogo permanente com a Palavra de
Deus: pensamento, ação, oração,
teologia, pregação, exortação, tudo nele era fruto da Palavra, recebida desde a
juventude na fé judaica, plenamente revelada aos seus olhos pelo encontro com
Cristo morto e ressuscitado, pregada pelo resto da vida durante a sua
"corrida" missionária. A ele
foi revelado que Deus pronunciou em Jesus Cristo a Palavra definitiva, Ele
mesmo, Palavra de salvação que coincide com o mistério pascal: o dom de si na cruz, que depois se torna
ressurreição, porque o amor é mais forte do que a morte.
Assim, São Paulo podia
concluir: "Quanto a mim, Deus me
livre de me gloriar, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual
o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14). Em Paulo,
a Palavra fez-se vida, e a sua única glória é Cristo crucificado e
ressuscitado.
Queridos irmãos e irmãs, enquanto
nos dispomos para receber as cinzas em nossa cabeça, em sinal de conversão e de
penitência, abramos o coração à ação vivificadora da Palavra de Deus. A
Quaresma, caracterizada por uma escuta mais frequente desta Palavra, por uma
alegria mais intensa, por um estilo de vida austero e penitencial, seja
estímulo à conversão e ao amor sincero pelos irmãos, especialmente os mais
pobres e necessitados.
Que nos acompanhe o Amado Crucificado nosso
Bem da Cruz, nos guie Maria, Virgem atenta da escuta, Serva humilde do Senhor.
Assim, renovados no espírito, poderemos chegar a celebrar a Páscoa com alegria.
Amém!
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