01º Domingo da Quaresma - Ano A
Vocação essencial é viver em comunhão com o Pai e concretizar o seu
projeto para o mundo e para os homens.
No início da nossa caminhada quaresmal, a Palavra de Deus
convida-nos à “conversão” – isto é, a recolocar Deus no centro da nossa
existência, a aceitar a comunhão com Ele, a escutar as suas propostas, a
concretizar no mundo – com fidelidade – os seus projetos.
A primeira leitura afirma que Deus criou o homem para a felicidade
e para a vida plena. Quando escutamos as propostas de Deus, conhecemos a vida e
a felicidade; mas, sempre que prescindimos de Deus e nos fechamos em nós
próprios, inventamos esquemas de egoísmo, de orgulho e de prepotência e
construímos caminhos de sofrimento e de morte.
A segunda leitura propõe-nos dois exemplos: Adão e Jesus. Adão
representa o homem que escolhe ignorar as propostas de Deus e decidir, por si
só, os caminhos da salvação e da vida plena; Jesus é o homem que escolhe viver
na obediência às propostas de Deus e que vive na obediência aos projetos do
Pai. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e morte; o esquema de Jesus
gera vida plena e definitiva.
O Evangelho apresenta, de forma mais clara, o exemplo de Jesus. Ele
recusou – de forma absoluta – uma vida vivida à margem de Deus e dos seus projetos.
A Palavra de Deus garante que, na perspectiva cristã, uma vida que ignora os
projetos do Pai e aposta em esquemas de realização pessoal é uma vida perdida e
sem sentido; e que toda a tentação de ignorar Deus e as suas propostas é uma
tentação diabólica e que o cristão deve, firmemente, rejeitar.
LEITURA I – Gen 2,7-9;3,1-7
O texto de Gn 2,4b-3,24 –
conhecido como relato jahwista da criação – é, de acordo com a maioria dos
comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época
do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece
ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas,
coloridas e fortes.
Não podemos, de forma nenhuma,
ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na
aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas
teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer
dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de
uma página de catequese e não de um tratado destinado a explicar
cientificamente as origens do mundo e da vida.
Para apresentar essa catequese
aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas utilizaram elementos
simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação
do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem
mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das
narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova
interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a
linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam
paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do Crescente
Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre Deus e
sobre o lugar que o homem ocupa no projecto de Deus – são muito diferentes.
A primeira parte (cf. Gn 2,7-9)
do texto que nos é proposto apresenta-nos dois quadros significativos.
O primeiro quadro (vers. 7) pinta
– com cores quentes e sugestivas – a origem do homem: “o Senhor Deus formou o
homem do pó da terra e insuflou-lhe nas narinas um sopro de vida”. O verbo
utilizado para descrever a ação de Deus é o verbo “yasar” (“formar”,
“modelar”), que é um verbo técnico ligado ao trabalho do oleiro. Deus aparece,
assim, como um oleiro, que modela a argila. Estamos muito próximos das
concepções mesopotâmicas, onde o homem é criado pelos deuses a partir do barro
(o jogo de palavras “’adam” – “homem” – e “’adamah” – “terra”, sugere que o
homem – “’adam” – vem da “terra” – “’adamah” – e, morrendo, voltará à terra de
onde foi tirado).
No entanto, o homem formado da
terra não é apenas terra, pois ele recebe também o “sopro” (“neshamá”) de Deus.
A palavra hebraica utilizada significa “sopro”, “hálito”, “respiração”. É a
vida que vem de Deus que torna o homem vivo… O homem tem qualquer coisa de
divino; a vida do homem procede, diretamente, de Deus.
É significativa a forma como o
jahwista sublinha o cuidado de Deus na criação do homem: Deus é o oleiro que
modela cuidadosa e amorosamente a sua obra; e, ainda mais, transmite a esse
homem formado da terra a sua própria vida divina. O homem aparece, assim, como
o centro do projeto criador de Deus: ele ocupa um lugar especial na criação e é
para ele que tudo vai ser criado.
No segundo quadro (vers. 8-9), o
autor jahwista reflete sobre a situação do homem criado por Deus… Para que é
que Deus criou o homem? Para ser escravo dos deuses e prover ao sustento das
divindades, como nos mitos mesopotâmicos? Não. Na perspectiva do nosso
catequista, o homem foi criado para ser feliz, em comunhão com Deus. Para
descrever a situação ideal do homem, criado para a felicidade e a realização
plena, o jahwista coloca-o num “jardim” cheio de árvores de fruta. Para um povo
que sentia pesar constantemente sobre si a ameaça do deserto árido, o ideal de
felicidade seria um lugar com muitas árvores e muita água. Os mitos
mesopotâmicos apresentam, aliás, as mesmas imagens.
No meio dessa vegetação
abundante, o autor coloca duas árvores especiais: a “árvore da vida” e a
“árvore do conhecimento do bem e do mal”. A “árvore da vida” é o símbolo da
imortalidade concedida ao homem. Provavelmente, ao falar da “árvore da vida”, o
autor está a pensar na “Lei”: desde o início, Deus ofereceu ao homem a
possibilidade da vida plena e imortal, que passa por uma vida percorrida no
caminho da Lei e dos mandamentos… Ao lado da “árvore da vida” e em
contraposição a ela (pois traz a morte), está a “árvore do conhecimento do bem
e do mal”. Provavelmente, representa o orgulho e a autossuficiência de quem
acha que pode conquistar a sua própria felicidade, prescindindo de Deus. “Comer
da árvore do conhecimento do bem e do mal” significa fechar-se em si próprio,
querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, pôr-se a si próprio em
lugar de Deus, reivindicar autonomia total em relação ao criador. O homem que renuncia
à comunhão com Deus está a seguir o caminho da morte.
A ideia do nosso catequista é
esta: Deus criou o homem para ser feliz; deu-lhe a possibilidade de vida
imortal; mas o homem pode escolher prescindir de Deus e percorrer caminhos onde
Deus não está.
Na segunda parte do nosso texto
(cf. Gn 3,1-7), o autor jahwista reflete sobre a questão do mal. De onde vem o
mal que desfeia o mundo e que impede o homem de ter vida plena? Esse mal –
sugere o nosso teólogo jahwista – vem das opções erradas que, desde o início da
história, o homem tem feito.
Para dizer isto, o autor jawista
recorre à imagem da serpente. Entre os povos antigos, a serpente aparece como
um símbolo por excelência da vida e da fecundidade (provavelmente por causa da
sua configuração fálica). Entre os cananeus, estava também bastante difundido o
culto da serpente. Nos santuários cananeus invocavam-se os deuses da
fertilidade (representados muitas vezes pela serpente) e realizavam-se rituais
mágicos destinados a assegurar a fecundidade dos campos… Ora, os israelitas,
instalados na Terra, depressa se deixaram fascinar por esses cultos e
praticavam os rituais dos cananeus destinados a assegurar a vida e a
fecundidade dos campos e dos rebanhos. No entanto, isso significava prescindir
de Jahwéh e abandonar o caminho da Lei e dos mandamentos. A “serpente” surge
aqui, portanto, como símbolo de tudo o que afasta os homens de Deus e das suas
propostas, sugerindo-lhes caminhos de orgulho, de egoísmo e de autossuficiência.
Em conclusão: Deus criou o homem
para ser feliz e indicou-lhe o caminho da imortalidade e da vida plena; no
entanto, o homem escolhe muitas vezes o caminho do orgulho e da autossuficiência
e vive à margem de Deus e das suas propostas. Na opinião do autor jahwista, é
essa a origem do mal que destrói a harmonia do mundo.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os
seguintes elementos:
• De onde vimos? Para onde vamos?
Porque é que estamos aqui? Qual o sentido da nossa vida? São perguntas eternas,
que o homem de todos os tempos coloca a si próprio. A Palavra de Deus que hoje
nos é proposta responde: é Deus a nossa origem e o nosso destino último. Não
somos um minúsculo e insignificante grão de areia perdido numa galáxia
qualquer; mas somos seres que Deus criou com amor, a quem Ele deu o seu próprio
“sopro”, a quem animou com a sua própria vida. O fim último da nossa existência
não é o fracasso, a dissolução no nada, mas a vida definitiva, a felicidade sem
fim, a comunhão plena com Deus.
• Como é que chegamos a essa
felicidade que está inscrita no projeto que Deus tem para os homens e para o
mundo? Deus nada impõe e respeita sempre – de forma absoluta – a nossa
liberdade; no entanto, insiste em mostrar-nos, todos os dias, o caminho para
essa plenitude de vida que Ele sonhou para os homens. Quando aceitamos a nossa
condição de criaturas e reconhecemos em Deus esse Pai que nos dá vida, que nos
ama e que nos indica caminhos de realização e de felicidade, construímos uma
existência harmoniosa, um "paraíso" onde encontramos vida, harmonia,
felicidade e realização.
• E o mal que vemos, todos os
dias, tornar sombria e deprimente essa “casa” que é o mundo: vem de Deus ou do
homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus; o mal resulta das
nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência.
Quando o homem escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus
e prescindindo do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de
prepotência, de sofrimento, de pecado… Quais os caminhos que eu escolho? As propostas
de Deus fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a felicidade, ou
prefiro ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, prescindindo das indicações
de Deus?
SALMO RESPONSORIAL – SALMO 50
(51)
Refrão 1: Pecámos, Senhor: tende
compaixão de nós.
Refrão 2: Tende compaixão de nós,
Senhor,
porque somos pecadores.
Compadecei-Vos de mim, ó Deus,
pela vossa bondade,
pela vossa grande misericórdia,
apagai os meus pecados.
Lavai-me de toda a iniquidade
e purificai-me de todas as
faltas.
Porque eu reconheço os meus
pecados
e tenho sempre diante de mim as
minhas culpas.
Pequei contra Vós, só contra Vós,
e fiz o mal diante dos vossos
olhos.
Criai em mim, ó Deus, um coração
puro
e fazei nascer dentro de mim um
espírito firme.
Não queirais repelir-me da vossa
presença
e não retireis de mim o vosso
espírito de santidade.
Dai-me de novo a alegria da vossa
salvação
e sustentai-me com espírito
generoso.
Abri, Senhor, os meus lábios
e a minha boca cantará o vosso
louvor.
LEITURA II – Rom 5,12-19
No final da década de 50 (a Carta
aos Romanos apareceu por volta de 57/58), multiplicavam-se as “crises” entre os
cristãos oriundos do mundo judaico e os cristãos oriundos do mundo pagão. Uns e
outros tinham perspectivas diferentes da salvação e da forma de viver o
compromisso com Jesus Cristo e com o seu Evangelho. Os cristãos de origem
judaica consideravam que, além da fé em Jesus Cristo, era necessário cumprir as
obras da Lei (nomeadamente a prática da circuncisão) para ter acesso à
salvação; mas os cristãos de origem pagã recusavam-se a aceitar a obrigatoriedade
das práticas judaicas. Era uma questão “quente”, que ameaçava a unidade da
Igreja. Este problema também era sentido pela comunidade cristã de Roma.
Neste cenário, Paulo vai mostrar
a todos os crentes (a Carta aos Romanos, mais do que uma carta para a
comunidade cristã de Roma, é uma carta para as comunidades cristãs, em geral) a
unidade da revelação e da história da salvação: judeus e não judeus são, de
igual forma, chamados por Deus à salvação; o essencial não é cumprir a Lei de
Moisés – que nunca assegurou a ninguém a salvação; o essencial é acolher a
oferta de salvação que Deus faz a todos, por Jesus Cristo.
O texto que nos é proposto faz
parte da primeira parte da Carta aos Romanos (cf. Rom 11,18-11,36). Depois de
demonstrar que todos (judeus e não judeus) vivem mergulhados no pecado (cf. Rom
1,18-3,20) e que é a justiça de Deus que a todos salva, sem distinção (cf. Rom
3,21-5,11), Paulo ensina que é através de Jesus Cristo que a vida de Deus chega
aos homens e que se faz oferta de salvação para todos (cf. Rom 5,12-8,39).
Para deixar bem claro que a
salvação foi oferecida por Deus aos homens através de Jesus Cristo, Paulo
recorre aqui a uma figura literária que aparece, com alguma frequência, nos
seus escritos: a antítese. Em concreto, Paulo vai expor o seu raciocínio
através de um jogo de oposições entre duas figuras: Adão e Jesus.
Adão é a figura de uma humanidade
que prescinde de Deus e das suas propostas e que escolhe caminhos de egoísmo,
de orgulho e de autossuficiência. Ora, essa escolha produz injustiça,
alienação, sofrimento, desarmonia. Porque a humanidade preferiu, tantas vezes,
esse caminho, o mundo entrou numa economia de pecado; e o pecado gera morte. A
morte deve ser entendida, neste contexto, em sentido global – quer dizer, não
tanto como morte físico-biológica, mas sobretudo como morte espiritual e
escatológica que é afastamento temporário ou definitivo de Deus (a fonte da
vida autêntica).
Cristo propôs um outro caminho.
Ele viveu numa permanente escuta de Deus e das suas propostas, na obediência
total aos projetos do Pai. Esse caminho leva à superação do egoísmo, do
orgulho, da autossuficiência e faz nascer um Homem Novo, plenamente livre, que
vive em comunhão com o Deus que é fonte de vida autêntica (a vitória de Cristo
sobre a morte é a prova provada de que só a comunhão com Deus produz vida
definitiva). Foi essa a grande proposta que Cristo fez à humanidade… Assim,
Cristo libertou os homens da economia de pecado e introduziu no mundo uma
dinâmica nova, uma economia de graça que gera vida plena (salvação).
Não é claro que Paulo se esteja a
referir, aqui, àquilo que a teologia posterior designou como “pecado original”
(ou seja, um pecado histórico cometido pelo primeiro homem, que atinge e marca
todos os homens que nascerem em qualquer tempo e lugar). O que é claro é que,
para Paulo, a intervenção de Cristo na história humana se traduziu num
dinamismo de esperança, de vida nova, de vida autêntica. Cristo veio propor à
humanidade um caminho de comunhão com Deus e de obediência aos seus projetos; é
esse caminho que conduz o homem em direção à vida plena e definitiva, à
salvação.
ATUALIZAÇÃO
Considerar os seguintes
desenvolvimentos:
• A modernidade ensinou-nos que a
fonte da salvação não é Deus, mas o homem e as suas conquistas. Disse-nos que
as propostas de Deus são resquícios de uma época pré-científica, obscurantista,
ultrapassada, e que a plenitude da vida está no corte radical com qualquer
autoridade exterior à nossa Razão – inclusive com Deus. Exaltou o individualismo
e a autossuficiência e ensinou-nos que só nos realizaremos totalmente se formos
nós – orgulhosamente sós – a definir o nosso caminho e o nosso destino. No
entanto, onde nos leva esta cultura que prescinde de Deus e das suas sugestões?
A cultura moderna tem feito surgir um homem mais feliz, ou tem potenciado o
aparecimento de homens perdidos e sem referências, que muitas vezes apostam
tudo em propostas falsas de salvação e que saem dessa experiência de busca mais
fragilizados, mais dependentes, mais alienados?
• Alguns acontecimentos que
marcam a história do nosso tempo confirmam que uma história construída à margem
das propostas de Deus é uma história marcada pelo egoísmo, pela injustiça, pela
prepotência e, portanto, é uma história de sofrimento e de morte. Quando o
homem deixa de dar ouvidos a Deus, dá ouvidos ao lucro fácil, destrói a
natureza, explora os outros homens, torna-se injusto e prepotente, sacrifica em
proveito próprio a vida dos seus irmãos… Qual é o nosso papel de crentes, neste
processo? O que podemos fazer para que Deus volte a estar no centro da história
e a as suas propostas sejam acolhidas?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Mt
4,4b
Escolher um dos refrães:
Refrão 1: Louvor e glória a Vós,
Jesus Cristo, Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor,
Filho do Deus vivo.
Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus
Cristo, Rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis
são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e
o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da
boca de Deus.
EVANGELHO – Mt 4,1-11
A cena das tentações antecede, em
Mateus (e nos outros Sinópticos), a vida pública de Jesus. A cena segue-se
imediatamente – quer em termos cronológicos, quer em termos lógicos – ao
Batismo (cf. Mt 3,13-17): porque recebeu o Espírito (batismo), Jesus pode
afrontar e vencer a tentação de uma proposta de atuação messiânica que o
convida a subverter a proposta do Pai.
A cena coloca-nos no deserto.
Mateus diz explicitamente que “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a
fim de ser tentado pelo demônio”. Os quarenta dias e quarenta noites que, de
acordo com o relato, Jesus aí passou, resumem os quarenta anos que Israel
passou em caminhada pelo deserto. O deserto é, no imaginário judaico, o lugar
da “prova”, onde os israelitas experimentaram, por diversas vezes, a tentação
do abandono de Jahwéh e do seu projeto de libertação (embora seja, também, o
lugar do encontro com Deus, o lugar da descoberta do rosto de Deus, o lugar
onde o Povo fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a
confiar na bondade e no amor de Deus). Será que a história se vai repetir, que
Jesus vai ceder à tentação e dizer “não” ao projeto de Deus – como aconteceu
com os israelitas?
O relato que hoje nos é proposto
não é, contudo, uma reportagem histórica elaborada por um jornalista que
presenciou um combate teológico entre Jesus e o diabo, algures no deserto… É,
sim, uma página de catequese, cujo objetivo é ensinar-nos que Jesus, apesar de
ter sentido – como nós – a mordedura das tentações, soube pôr acima de tudo o
projeto do Pai.
O relato de Mateus (bem como o de
Lucas) parte, sem dúvida, do relato – muito mais breve – de Marcos (cf. Mc
1,12-13); mas o texto que hoje nos é proposto amplia o relato original de
Marcos, com um diálogo entre Jesus e o diabo, feito de citações do Antigo
Testamento (sobretudo do livro do Deuteronômio).
A catequese sobre as opções de
Jesus aparece em três quadros ou “parábolas”.
A primeira “parábola” (vers. 3-4)
sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de realização material, de
satisfação de necessidades materiais. É a tentação – que todos nós conhecemos
muito bem – de fazer dos bens materiais a prioridade fundamental da vida. No
entanto, Jesus sabe que “nem só de pão vive o homem” e que a realização do
homem não está na acumulação egoísta dos bens. A resposta de Jesus cita Dt 8,3
e sugere que o seu alimento – isto é, a sua prioridade – não é um esquema de
enriquecimento rápido, mas é o cumprimento da Palavra (isto é, da vontade) do
Pai.
A segunda “parábola” (vers. 5-7)
sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de êxito fácil, mostrando o
seu poder através de gestos espetaculares e sendo admirado e aclamado pelas multidões
(sempre dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático dos
super-heróis). Jesus responde a esta tentação citando Dt 6,16, e sugere que não
está interessado em utilizar os dons de Deus para satisfazer projetos pessoais
de êxito e de triunfo humano. “Não tentar” o Senhor Deus significa, neste
contexto, não exigir de Deus sinais e provas que sirvam para a promoção pessoal
do homem e para que ele se imponha aos olhos dos outros homens.
A terceira “parábola” (vers.
8-10) sugere que Jesus poderia ter escolhido um caminho de poder, de domínio,
de prepotência, ao jeito dos grandes da terra. No entanto, Jesus sabe que a
tentação de fazer do poder e do domínio a prioridade fundamental da vida é uma
tentação diabólica; por isso, citando Dt 6,13, diz que, para Ele, só o Pai é
absoluto e que só Ele deve ser adorado.
As três tentações aqui
apresentadas não são mais do que três faces de uma única tentação: a tentação
de prescindir de Deus, de escolher um caminho de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência,
à margem das propostas de Deus. Mas, para Jesus, ser “Filho de Deus” significa
viver em comunhão com o Pai, escutar a sua voz, realizar os seus projetos,
cumprir obedientemente os seus planos. Ao longo da sua vida, diante das
diversas “provocações” que os adversários Lhe lançam, Jesus vai confirmar esta
sua “opção fundamental” e vai procurar concretizar, com total fidelidade, o
projeto do Pai.
Israel, ao longo da sua caminhada
pelo deserto, sucumbiu frequentemente à tentação de ignorar os caminhos e as
propostas de Deus. Jesus, ao contrário, venceu a tentação de prescindir de Deus
e de escolher caminhos à margem dos projetos do Pai. De Jesus vai nascer um
novo Povo de Deus, cuja vocação essencial é viver em comunhão com o Pai e
concretizar o seu projeto para o mundo e para os homens.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e a partilha poderão
ter em conta os seguintes dados:
• A questão essencial que a
Palavra de Deus hoje nos propõe é, portanto, esta: Jesus recusou, de forma
absoluta, conduzir a sua vida à margem de Deus e das suas propostas. Para Ele,
só uma coisa é verdadeiramente decisiva e fundamental: a comunhão com o Pai e o
cumprimento obediente do seu projeto… E nós, seguidores de Jesus? É essa também
a nossa perspectiva? O que é que é decisivo na minha vida: as propostas de
Deus, ou os meus projetos pessoais?
• Quando o homem esquece Deus e
as suas propostas, e se fecha no egoísmo e na autossuficiência, facilmente cai
na escravidão de outros deuses que, no entanto, estão longe de assegurar vida
plena e felicidade duradoura. Quais são os deuses que, hoje, dominam o
horizonte desse homem moderno que prescindiu de Deus? Quais são os deuses que
estão no centro da minha própria vida e que condicionam as minhas decisões e
opções?
• Deixar-se conduzir pela tentação
dos bens materiais, do acumular mais e mais, do subordinar toda a vida à lógica
do “ter mais”, é seguir o caminho de Jesus? Olhar apenas para o seu próprio
conforto e comodidade, fechar-se à partilha e às necessidades dos outros, pagar
salários de miséria e malbaratar fortunas em noitadas de jogo ou em coisas
supérfluas… é seguir o exemplo de Jesus?
• Usar Deus ou os seus dons para
saciar a nossa vaidade, para promover o nosso êxito pessoal, para brilhar, para
dar espetáculo, para levar os outros a admirar-nos e a bater-nos palmas… é
seguir o exemplo de Jesus?
• Procurar o poder a todo o custo
(às vezes, entregando ao diabo os nossos valores mais importantes e as nossas
convicções mais sagradas) e exercê-lo com prepotência, com intolerância, com
autoritarismo (quantas vezes humilhando e magoando os pobres, os débeis, os
humildes)… é seguir o exemplo de Jesus?
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