4º. DOMINGO
DA QUARESMA
30
de MARÇO DE 2014
Viver como
filhos da luz |
“Outrora
éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor vivei como filhos da luz”
|
Leituras:
Primeiro
Samuel 1b, 6-7.10-13a;
Salmo 22 (23);
Carta de São Paulo aos Efésios 5, 8-14;
João
9, 1-4.
COR LITÚRGICA: ROXA
1. Situando-nos brevemente
A época atual
é cheia de contradições. Por um lado oferece oportunidades de desenvolvimento
pessoal e social, que as anteriores não tiveram a sorte de encontrar. Por
outro, estamos sofrendo aridez espiritual, desequilíbrios sociais, violências
nas cidades, corrupção, guerras e fome endêmica em algumas regiões do mundo,
que obrigam milhões de pessoas a abandonarem os próprios países na esperança da
busca de melhor condição de vida para si e para seus filhos. Ao longo desta
autêntica “travessia do deserto”,
muitas vezes as pessoas se tornam vítimas de traficantes cruéis que exploram a
miséria delas até a perda da vida (Campanha da Fraternidade 2014).
“O pobre e o desamparado” – está gritando repetidas
vezes Papa Francisco – “é a carne de
Cristo!”. O grito do amor rasga a cortina do silêncio culpado e tira o véu
da cegueira voluntária. Indica o caminho da conversão para Páscoa.
Os poderes
fortes, políticos, econômicos, ideológicos conhecem bem estas tragédias, mas
fazem conta de não ver, de não saber. Não querem ver que isso é fruto amargo e
envenenado de um sistema político e econômico, que põe, ao centro, o dinheiro e
o lucro, em vez da pessoa humana.
Certas praças
e ruas das grandes cidades do Brasil apresentam um rosto de humanidade
desfigurada, parecido com o rosto sangrento de Lampedusa. Os poderes o ignoram. É melhor conduzir os olhos do povo
para os sonhos reluzentes da Copa do Mundo.
Silenciosos e
generosos discípulos e discípulas de Jesus, de dia e de noite, se aproximam a
estes feridos da vida, como o samaritano ao homem assaltado pelos ladrões (cf.
Lc 10,29-37), versam sobre suas pragas o óleo do consolo e oferecem um abrigo
de esperança.
É nas casas e
nas ruas da vida cotidiana que Jesus estende sua mão, como fez com o cego de
nascença. Cura a cegueira do egoísmo, faz enxergar o que o egoísmo procurar
esconder. A luz que vem de Jesus produz frutos de dignidade, de esperança e de
alegria.
“Laetare, Jerusalém! – Alegra-te, Jerusalém!”. Com o nome derivado da
primeira palavra latina da antífona de entrada, este 4º domingo da Quaresma é
denominado “domingo Laetare”, dia de alegria e de luz que antecipa a grande
alegria da Páscoa. “Alegra-te, Jerusalém!
Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria!
Sacia-vos com a abundância de suas consolações!” (Antífona de entrada - Is
66,10-1).
“Eis a luz de Cristo! Demos graças a Deus!” Eis o grito de alegria, com
o qual a Igreja abre a grande Vigília da noite de Páscoa.
2. Recordando a Palavra
Irmãos, “outrora éreis trevas, mas agora sois luz no
Senhor. Procedei como filhos da luz” (2ª Leitura – Ef 5,8). O apóstolo
destaca que, com o Batismo, não só gozamos da luz do Senhor para conduzir uma
vida certa, mas também, em força desta relação vital para com ele, “somos luz”,
no Senhor, participamos de seu ser, da sua vida. Desta participação nasce a
possibilidade e o chamado a viver como “filhos da luz”, isto é, atuar e agir
com o mesmo estilo.
Viver como
filhos da luz significa viver segundo o Espírito filial e os critérios de
avaliação da vida que correspondem à energia vital e à sabedoria do Espírito
Santo. A situação da vida é, por sua natureza, sempre ambígua. Precisamos da
luz interior para discernir entre o que vale de verdade e o que tem somente a
aparência. “Discerni o que agrada ao
Senhor e não tomeis parte nas obras estéreis das trevas, mas, pelo contrário,
denunciai-as” (Ef 5, 10-11).
O Espírito da
Quaresma nos convida a passar das aparências para a verdade profunda, em relação
a nós mesmos e na relação com o Senhor, bem como os irmãos. Esta passagem
interior para a autenticidade é a Páscoa a viver cada dia mais, como diz a
própria palavra “páscoa”.
O salmo
responsorial (Sl 22), conhecido como o salmo do Bom Pastor, destaca como o
caminho para Páscoa feita vida é um longo caminho. Encontra desafios e riscos,
mas o próprio Senhor cuida de nós, nos orienta, nos alimenta, nos sustenta em
seus braços, nos momentos de cansaço e de perigo. “O Senhor é o meu pastor, nada me falta (...) Se eu tiver de andar por
vale escuro, não temerei mal nenhum (...) Vou morar na casa do Senhor por
muitíssimos anos” (Sl 22).
Nas homilias
mistagógicas dos Padres da Igreja, bem como nas imagens que ornavam as paredes
das igrejas antigas, a cena de Jesus que cura o cego de nascença (evangelho)
ocupava lugar central.
No pano de
fundo da narração evangélica, é fácil vislumbrar o caminho que na Igreja faz o
catecúmeno, para chegar a celebrar, no Batismo, aquele encontro pessoal com
Jesus, que muda seu coração e lhe dá uma luz interior que ilumina, de maneira
radicalmente nova, a vida.
É conveniente
que, durante a Quaresma, a comunidade acompanhe com muita atenção, seguindo as
etapas indicadas pelo Rito da Iniciação Cristã dos Adultos (RICA), os adultos que
eventualmente se preparam para receber o Batismo na Vigília Pascal.
Esta atenção
pastoral com os catecúmenos adultos pode ser facilmente valorizada para animar
também as famílias das crianças que, na mesma noite, vão receber o Batismo.
No relato,
encontramos dois processos interiores que vão em sentido contrário. O cego
passa através de um cainho de iluminação interior que o conduz a penetrar
sempre mais profundamente o mistério de Jesus e sua relação pessoal com ele.
Ao contrário,
as autoridades se envolvem numa progressiva cegueira. Não querem reconhecer a
manifestação de Deus em Jesus. A aceitação ou a recusa de Jesus se torna
critério autêntico para avaliar as obras de cada pessoa e sua real escolha
entre a luz e as trevas.
O oposto
dinamismo que encontramos na relação do cego e das autoridades judaicas com
Jesus, se torna um critério permanente para avaliar a relação de cada um com
Jesus. Na minha vida de cristão, Jesus ocupa verdadeiramente o centro e se
torna critério para orientar minhas escolhas cotidianas? Ou me deixo determinar
pelo costume e pela conveniência social, por critério de aparência, orgulho,
até mesmo de medo?
3. Atualizando a Palavra
Nas
catequeses dos Padres da Igreja, o Batismo era indicado como “iluminação”.
Aqueles que tinham recebido o Batismo eram chamados de “iluminados”. Ainda hoje
um significativo rito complementar da celebração do Batismo Põe em evidência
sua dimensão iluminadora, que abre o caminho para seguir a Jesus e partilhar
seus critérios de julgamento, que não olham as aparências enganadoras, mas a
verdade profunda das coisas e das pessoas.
É o rito da
vela batismal acesa no círio pascal e entregue ao batizado adulto ou aos pais e
padrinhos da criança, com as palavras: “recebe a luz de Cristo. Caminha sempre
como filho da luz, para que, perseverando na fé, possas ir ao encontro do
Senhor com todos os santos no reino celeste” (Rito da Iniciação Cristã dos
Adultos (RICA), n.265).
A luz/vida
recebida no Batismo é uma potencialidade divina a desenvolver. É preciso deixar-se
guiar pela luz interior do Espírito procurando viver coerentemente segundo seus
impulsos interiores. Ele conduz a um estilo de vida no qual se manifesta e
resplandece a luz do próprio Cristo.
“Vivei como filhos da luz”. O fruto da luz chama-se bondade,
justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras
das trevas que não levam a nada; antes desmascarai-as (...) De repente, tu que
dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá (Cf. Ef 5,
8-11;14).
Na linha da
conformação progressiva a Cristo, realizada por sua luz transformadora, o
caminho do discípulo, ao longo da vida, se torna um duro combate espiritual
entre a luz de Cristo e as trevas do mundo que em nós habitamos e nos
circundam, e que tendem a nos ocupar novamente. É preciso fortalecer-se do
poder de Deus e revestir-se da armadura do Espírito e de todos os seus
instrumentos (Ef 6, 10-17).
Desde o
início, a sorte do Verbo, que é a vida e a luz, é a de brilhar nas trevas, de
encontrar oposição, mas as trevas não conseguem apreendê-lo, pois ele é a
verdadeira luz que ilumina todo homem, ao vir ao mundo (Cf Jo 1,4-5;9).
Jesus falou
ainda: “Eu sou a luz do mundo. Quem me
segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). A luz,
porém, encontra sempre oposição.
A saída de
Judas da sala, na última ceia de Jesus com os discípulos, marca o cume da
prepotência das trevas: “Depois do
bocado, Satanás entrou em Judas (...) Depois de receber o bocado , Judas saiu
imediatamente. Era noite” (Jo 13, 27;30). No entanto a entrega de Jesus aos
inimigos, em plena liberdade, se torna a raiz da liberdade dos discípulos
frente à violência das trevas, ao longo da história.
Jesus afirma
que também os discípulos, na medida em que se deixam envolver em sua experiência
de total dedicação ao Pai, se tornarão eles mesmos luz irradiante da luz de
Cristo para o mundo: iluminados e iluminadores. “Vós sois luz do mundo. Uma cidade construída sobre a montanha não fica
escondida” (Mt 5,14).
Como Jesus,
também os discípulos, exatamente por causa do contraste com o mundo, são
destinados a enfrentar oposição e perseguição: “O servo não é maior que o seu senhor. Se eles me perseguiram
perseguirão a vós também. E se guardaram minha palavra, guardarão também a
vossa” (Jo 15,20).
A crônica dos
nossos dias, infelizmente, confirma esta palavra de Jesus. Quantos cristãos e
cristãs estão pagando um preço muito alto pelo motivo de sua fidelidade a
Cristo? Contudo as feridas deles se tornaram luz que sustenta também nossa fé e
nossa esperança.
4. Ligando a Palavra com ação litúrgica
O evento da
páscoa de Jesus, com sua vitória sobre as trevas do pecado e da morte,
constitui a origem e a meta do caminho do povo de Deus, que vai peregrinando na
história, iluminado por Cristo. Sua celebração sacramental na noite da Páscoa
constitui, por sua vez, a origem e a meta do caminho quaresmal que, a cada ano,
se renova, para atingir, através do dinamismo do Espírito do ressuscitado, uma
participação sempre mais profunda à vida de Cristo.
“Oh noite feliz, só tu soubeste a hora em que o Cristo
da morte ressurgia; é por isso que de ti foi escrito: A noite será luz para o
meu dia!”
(Canto do Exultet – Proclamação da Páscoa).
A fé
reconhece e proclama o evento da ressurreição de Jesus como o início de uma
nova criação, que vive do reflexo da luz de Cristo (Cf. Gn 1,3).
A Eucaristia
atualiza o evento pascal, em seu dinamismo transformador pelo Espírito
derramado por Cristo e recebido na sua palavra e no seu corpo e sangue.
Iluminada por
esta fé, a Igreja, depois da comunhão, experiência de encontro com Cristo luz,
reza: “Ó Deus, luz de todo homem que vem
a este mundo, iluminai nossos corações com o esplendor da vossa graça, para
pensarmos sempre o que vos agrada e amar-vos de todo o coração”.
O encontro
com Cristo, pela fé e pelo Batismo, na Eucaristia é aprofundado e atualizado
cada vez mais, e instaura um dinamismo de iluminação e transformação
progressiva, que nos conduz a “pensarmos
sempre o que vos agrada” (oração depois da comunhão), como acontece em toda
autêntica relação entre as pessoas que se amam.
O coração se
torna sempre mais unificado no Senhor. O mandamento do Senhor – amarás ao
Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
espírito (cf. Mt 22,37) – não é mais um dever ou uma fadiga, mas verdadeira
alegria, livre de todo medo e de toda conveniência religiosa, como convém a
filhos e filhas.
O prefácio de
hoje proclama o louvor ao Pai, estruturando as razões específicas de seu canto,
a partir do evento do evangelho e de sua relação intrínseca com o Batismo. “Pelo mistério da encarnação, Jesus conduziu
a luz da fé à humanidade que caminhava nas trevas. E elevou à dignidade de
filhos e filhas os escravos do pecado, fazendo-os renascer das águas do
Batismo”.
Este texto é
um exemplo muito significativo de como nossa oração deveria deixar-se inspirar
pela Palavra proclamada na liturgia ou meditada pessoalmente. A escuta da
Palavra na fé produz a resposta confiante dos filhos e das filhas. A liturgia é
grande mestra de vida espiritual e de oração.
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