2º. DOMINGO
DA QUARESMA
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“Este é o meu Filho Amado...
Escutai-O!”
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Leituras:
Gênesis 12, 1-4a;
Salmo 50 (51);
Segunda Carta de São Paulo á Timóteo 1, 8b-10;
Mateus 17, 1-9.
COR
LITÚRGICA: ROXA
Já iniciamos, desde quarta-feira de Cinzas, o Tempo da
Quaresma, que sempre traz a Campanha da Fraternidade, para nos ajudar em nossa
conversão. Neste ano de 2014, o tema é “Fraternidade e Tráfico Humano”, com o
lema: “É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5, 1)”. Nesta Eucaristia
somos convidados a refletir sobre as tentações de Jesus e também nas nossas.
Jesus não cede às armadilhas do diabo, porque Deus não se manifesta naquilo que
mata a vida humana: a idolatria do dinheiro, que desconsidera a vida por causa
do lucro, que leva tantas pessoas a sofrerem com o tráfico humano.
1. Situando-nos brevemente
Talvez jamais as pessoas tenham apreciado tanto a
imagem, a beleza, a aparência, em relação a si mesmas e aos outros, como no
nosso tempo. Às vezes se dá maior atenção à aparência do que à realidade de uma
pessoa ou de uma atividade. Na própria comunicação, prevalece mais a imagem que
a escritura ou a fala. Se alguém não aparece na internet, no facebook ou na
rede social não existe.
Simultaneamente, se continua a “desfigurar” o rosto das
pessoas, das cidades, da natureza. Crianças abandonadas ou sujeitas à
violência, homens e mulheres vítimas do “tráfico das pessoas”, como lembra a
Campanha da Fraternidade, pessoas expulsas do trabalho em nome do proveito
econômico, etc. Mesmo na Igreja, em comunidades pequenas e grandes, se
encontram pessoas deixadas de lado, nas periferias da vida, por falta de
atenção e de cuidado, talvez por motivo de histórias ou de pessoas sofridas.
As pessoas, nestas situações, são o próprio Cristo o
“servo sofredor de Deus” (cf. Is 53) a ser “desfigurado”, enquanto vem ao nosso
encontro pedindo nossa proximidade, carinho e cura. Em cada uma delas, como
afirma com forte ênfase o Papa Francisco, “é a carne de Cristo sofrido que
encontramos e tocamos!” (cf. homilia na Missa do dia 1º de junho de 2013 e
homilia na festa de São Tomé, 3 de julho de 2013).
Cada gesto que faz brilhar nos olhos delas uma luz de
esperança e de consolo é o rosto de Cristo que se “transfigura”, que deixa
irradiar sua luz na pessoa atendida e naquela que a atendeu!
Cada um de nós pode narrar experiências pessoais: quando
alguém teve cuidado de nós, bem como quando nós tivemos cuidado de alguém. Nos
dois casos, nos foi concedido partilhar a transfiguração de Jesus. Nossa casa,
nosso escritório, a cama do hospital ou a sala de aula se tornaram para nós o
monte Tabor.
As três leituras deste domingo nos oferecem uma mensagem
convergente, que abre para os olhos da nossa fé o sentido profundo do caminho
quaresmal e da grande celebração da Páscoa, que já se deixa vislumbrar de
longe. A Páscoa é o evento central da história de amor em que Deus transfigura
e renova a história e toda pessoa. Jesus, passando através da paixão, morte e
ressurreição, primeiro cumpre em si esta “transfiguração radical”.
Ele é o primeiro a percorrer o caminho que todos os
discípulos são chamados a percorrer. A narração da transfiguração de Jesus
deixa vislumbrar a meta para a qual nos está conduzindo o caminho da Quaresma,
com a graça de purificação interior e a esperança que o habitam.
A cada ano e a cada dia, o cristão é chamado a interiorizar
sempre maios o caminho de transfiguração de si mesmo junto com Jesus, até deixar-se conformar
plenamente a Ele.
2. Recordando a
Palavra
As três leituras deste domingo destacam que a iniciativa
no processo de transfiguração e de renovação é fruto da livre e gratuita
escolha e do chamado de Deus, não dos nossos esforços. Somos filhos e filhas da
graça do Pai!
Deus, por livre escolha de amor, chama Abraão e lhe pede
para abandonar sua família e sua terra, com a promessa de que o tornará
abençoado e fecundo, sinal de esperança para todos os povos. Abraão acolhe o
chamado de Deus e inicia aquela caminhada na fé que o faz “pai de todos os que acreditam no Senhor e se entregam a Ele” (Cf. Rm
4,11).
Abrão passando do abandonar das suas raízes vitais para
a fecundidade que vem de Deus, vive primeiro a “páscoa” de morte a si mesmo e de adesão a Deus, que cada um de nós, na
Quaresma, é chamado a viver para aderir a Cristo (Gn 12, 1-4).
O salmo responsorial (Sl 32) destaca a confiança que,
com Abraão, somos chamados a pôr na fidelidade de Deus, Nele está nossa força e
nossa paz. “nossa alma espera pelo Senhor, é ele o nosso auxílio e o nosso
escudo. Senhor, esteja sobre nós a tua graça, do modo como em ti esperamos”.
No evangelho (Mt 17, 1-9), Jesus, por livre escolha de
amor, chama Pedro, Tiago e João e os leva consigo sobre uma alta montanha, para
que se tornem testemunhas de sua sorte de messias sofredor e glorioso, que há
de transformar o mundo através do amor crucificado. Jesus, diante dos
discípulos, antecipa sua páscoa. Eles são introduzidos no mistério de Jesus e
apreendem que o caminho deles não será diferente da sorte do mestre.
Paulo lembra a Timóteo (2Tm 1, 8b-10) que Deus nos
chamou à salvação e à santidade não por nossos méritos, mas por sua livre e
gratuita escolha, manifestada em Cristo.
É Deus que, na sua liberdade e condescendência, escolhe
e chama as pessoas para fazê-las seus parceiros na aventura da vida. É ele que
inicia, permanecendo como protagonista, o caminho de renovação pascal em que o
cristão entrou, por graça, através do Batismo.
Ao narrar a estadia de Jesus no deserto, depois do
batismo, e seu combate vitorioso contra o demônio (1º Domingo da Quaresma),
Mateus destaca que Jesus estava atuando como o “novo Moisés”. Moisés guiou o
povo de Israel rumo à terra prometida e mediou a aliança entre Deus e o povo.
Jesus guia o novo povo de Deus, peregrino na história para uma relação com Deus
mais autêntica na fidelidade e na liberdade, estabelecendo, no sacrifício de si
mesmo, a aliança nova e definitiva.
A presença, ao lado de Jesus, de Moisés, o legislador, e
de Elias, o primeiro dos profetas de Israel, indica que o Antigo Testamento
agora encontra seu cumprimento em Jesus morto e ressuscitado.
A voz do Pai proclama Jesus “O Filho amado no qual eu
coloco todo o meu agrado”. A ele é preciso “escutar” (Mt 17,5) e seguir. A voz
do Pai confirma a proclamação da condição divina de Jesus, feita no batismo no
Jordão (cf. Mt 3,17), e antecipa a glorificação de Jesus através da cruz na
ressurreição e sua vinda gloriosa no fim dos tempos.
3. Atualizando a
Palavra
O evento da transfiguração se encontra no centro da
vicissitude humana e messiânica de Jesus, quase síntese do dinamismo de seu
mistério pascal. Define sua identidade de filho amado do Pai e de Messias
sofredor, solidário com a condição humana, que derrama a vida nova na
ressurreição.
Desta maneira, indica e abre também para nós o caminho a
seguir. Ao discípulo não é dado um caminho diferente daquele do mestre, seja no
desafio da fé, seja na partilha da glória.
A Igreja, diante de Jesus transfigurado, se põe em
atitude de adoração e de temor, como os três discípulos. Ela nos convida a
permanecer nesta mesma atitude, desde o início do caminho quaresmal, que nos
conduzirá a entrar mais profundamente, junto com o próprio Jesus, na graça da
nossa transfiguração pascal.
Este processo de transfiguração nos acompanhará até a
morte, alimentado pela dupla mesa da Palavra e da Eucaristia, pela oração
confiante, pela purificação de nosso coração, pela esperança suscitada pelo
Espírito Santo.
São Leão Magno observa que a principal finalidade da
transfiguração era afastar dos discípulos o escândalo da cruz: “Segundo um
desígnio não menos previdente, dava-se um fundamento solido à esperança da
santa Igreja, de modo que todo o corpo de Cristo pudesse conhecer a
transfiguração com que ele também seria enriquecido, e os seus membros pudessem
contar com a promessa da participação naquela glória que primeiro resplandecera
na cabeça” (Sermão 51, 3; LH, 2º Domingo da Quaresma).
O convite de Jesus aos discípulos os fará levantarem-se,
tomarem novamente o caminho da vida sem medo – embora não consigam ainda
entender – e guardarem, em silêncio, no próprio coração, a excepcional
experiência sublinha a fragilidade humana escolhida por Deus como hábito
cotidiano para si pelos seus.
A exigência do silêncio e da adoração diante do mistério
de Deus penetra nossas vidas e nos doa uma capacitação de ver, de julgar e de
escolher diferente da mentalidade comum. O que nos é doado por graça é
inexprimível, fruto de sabedoria divina e loucura para o mundo. “O reino de
Deus”, proclama Jesus, “não vem
ostensivamente. Nem se poderá dizer: ‘Está aqui’ ou ‘Está ali’, pois o reino de
Deus está no meio de vós” (Lc 17, 20-21).
Pelo contrário, ao viver na mentalidade da imagem e da
aparência, temos muitas vezes, urgência para que, apenas iniciando a descobrir
ou a operar pela graça de Deus, alcance logo seu cumprimento. Temos pressa de
fazer que “todo mundo veja” o que estamos fazendo. Essa inquietação é verdadeiro
desejo de crescer no Senhor o autêntico zelo apostólico? Deixemos que a palavra
de Jesus e esta pergunta desçam em nossa consciência?
Os tempos de Deus não são os tempos dos homens. A
inquietação dos homens para esclarecer o que acontece, dominar ou possuir,
acaba por empurrá-lo a queimar etapas, a acelerar os tempos. As irrupções de
Deus na vida de Abraão, e Moisés, de Elias, de Jesus, de Maria... surpreendem,
porém, com suas novidades, abrem gestações que amadurecem segundo os tempos e
passagens escolhidos pelo próprio Deus, até chegar à plena entrega na liberdade
do amor.
4. Ligando a Palavra
com ação litúrgica
Esta perspectiva exaltante é graça e vocação. É objeto
do desejo mais profundo e constante da Igreja, esposa de Cristo, seu esposo e
corpo vivo dele, sua cabeça.
A antífona de entrada da missa exprime esta tensão que
marca o coração de cada pessoa, consciente ou inconscientemente, à procura do
sentido profundo da vida, através da fé ou através de outras formas de busca
espiritual. “Meu coração se lembra de ti:
‘Buscai minha face!’ Tua face, Senhor, eu busco. Não me escondas teu rosto” (Sl
27, 8-9).
Na sociedade secularizada, às vezes, esta procura
existencial fica escondida, mas fica ali. É graça de Deus. “Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não
repousa em ti” (S. Agostinho, Confissões, 1,1). Esta antífona dá o tom
profundo da celebração do domingo e de toda a Quaresma. O canto de entrada hoje
deve valorizar esta tensão interior que caracteriza a liturgia e o caminho
espiritual cristão.
Igual anseio constitui a alma central da invocação da
Igreja, na oração do dia: “Ó Deus, que
nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa
palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da
vossa glória”.
A atitude de escuta é constitutiva da vida do cristão,
como “discípulos de Jesus”, Palavra vivente que o Pai nos convida a escutar e
seguir: “Este é o meu Filho, o Eleito. Escutai-o!”. O cuidado de aplicar-se com
abertura de coração e perseverança, deveria ser elemento ainda mais fundamental
no tempo da Quaresma. Este anseio assinala a proximidade de Deus a seu povo
peregrino na fé, antecipa, profeticamente, sua sorte final de plena
participação na glória eterna do Senhor.
Até que não tenhamos passado através da morte do “homem
velho”, autocentrado, graças à “transfiguração” operada pela Páscoa e pela ação
do Espírito, não conseguimos nos afinar com o coração de Deus. O “homem novo”,
capaz de entender as coisas de Deus e de agir com os critérios do Espírito,
nasce nas dores do parto da nova criação, que envolve a pessoa e a criação, na
mesma dor e na mesma esperança (cf. Rm 8, 22-25).
Estamos assistindo, a cada dia, a processos arrasadores
de “desfiguração” da dignidade das pessoas, visíveis nos rostos delas, assim
como nas relações interpessoais, e mesmo na exploração da natureza, sob a
violência dos homens e das instituições. É a transfiguração da realidade em
sentido contrário.
Graças a Deus, também assistimos, contudo, ao testemunho
de transformação interior de pessoas, visível na vida e na face de homens e
mulheres de Deus. Eles irradiam serenidade, força, paz e luz, quase um doce
sorriso permanente que cura e alivia. Quem pode esquecer o sorriso luminoso de
madre Teresa de Calcutá, brotando das profundas rugas de seu pequeno rosto,
familiarizado com as dores de tantas crianças e marginalizados e irradiante
esperança e cura?
Quem não guarda em si, com admiração e alegria, a imagem
simples e irradiante de paz das Bem-aventuradas Nhá-Chica e Irmã Dulce, ou de
algum vizinho ou vizinha de nossa casa? Estas pessoas são o Senhor, encarnado
de maneira sempre nova e transfigurado, no meio de nós. Elas nos indicam o
caminho a seguir. Elas se tornam reintegradas na unidade do espírito e do
corpo, nos sentidos e nas relações. São a celebração vivente da Transfiguração
e da Páscoa, tendo percorrido com humildade e perseverança, o caminho
purificador da Quaresma existencial.
Com o apóstolo, cantemos nossa esperança: “Todos nós,
porém, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor e, segundo esta
imagem, somos transformados, de glória em glória, pelo Espírito do Senhor”
(2Cor 3,18).
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