03º Domingo da Quaresma - Ano A
O “salvador do mundo” que traz a água que mata a sede de felicidade
A Palavra de Deus que hoje nos é proposta afirma, essencialmente, que o nosso Deus está
sempre presente ao longo da nossa caminhada pela história e que só Ele nos
oferece um horizonte de vida eterna, de realização plena, de felicidade
perfeita.
A primeira leitura mostra como Jahwéh acompanhou a caminhada dos
hebreus pelo deserto do Sinai e como, nos momentos de crise, respondeu às
necessidades do seu Povo. O quadro revela a pedagogia de Deus e dá-nos a chave
para entender a lógica de Deus, manifestada em cada passo da história da
salvação.
A segunda leitura repete, noutros termos, o ensinamento da
primeira: Deus acompanha o seu Povo em marcha pela história; e, apesar do
pecado e da infidelidade, insiste em oferecer ao seu Povo – de forma gratuita e
incondicional – a salvação.
O Evangelho também não se afasta desta temática… Garante-nos que,
através de Jesus, Deus oferece ao homem a felicidade (não a felicidade
ilusória, parcial e falível, mas a vida eterna). Quem acolhe o dom de Deus e
aceita Jesus como “o salvador do mundo” torna-se um Homem Novo, que vive do
Espírito e que caminha ao encontro da vida plena e definitiva.
LEITURA I – Ex 17,3-7
O texto que nos é proposto como
primeira leitura pertence às “tradições sobre a libertação” (cf. Ex 1-18).
Trata-se de um bloco de tradições que narram a libertação dos hebreus do Egito
(por ação de Jahwéh e do seu servo Moisés) e a caminhada pelo deserto até ao
Sinai.
O texto leva-nos até ao deserto
do Sinai. O vers. 1 do nosso texto situa o episódio de Massa/Meribá nos
arredores de Refidim, provavelmente no sul da península do Sinai (cf. Nm
33,14-15); mas Nm 20,7-11 situa-o nos arredores de Kadesh, a norte (aliás, não
é possível traçar com rigor o caminho percorrido pelos hebreus, desde o Egito
até à Terra Prometida: estamos diante de textos que provêm de “fontes”
diferentes, aqui combinados por um redator final; e essas “fontes” referem-se,
provavelmente, a viagens distintas e a grupos distintos, que em épocas
distintas atravessaram o deserto do Sinai). De qualquer forma, também não
interessa definir exatamente o enquadramento geográfico: mais do que escrever
um diário de viagem, aos catequistas de Israel interessa fazer uma catequese
sobre o Deus libertador, que conduziu o seu Povo da terra da escravidão para a
terra da liberdade.
A questão fundamental para este
grupo de fugitivos que, chefiados por Moisés, fugiu do Egito, é a questão da
sobrevivência num cenário desolado como é o deserto do Sinai. Os beduínos
conheciam diversos “truques” que lhes asseguravam a sobrevivência no deserto.
Um desses “truques” pode relacionar-se com o texto que nos é proposto… Alguns
autores garantem a existência no deserto do Sinai de rochas porosas que, quando
quebradas em certos lugares, permitem o aproveitamento da água aí armazenada.
Terá sido qualquer coisa parecida que aconteceu na caminhada dos hebreus e que
deixou um sinal na memória do Povo? É possível; mas o importante é que Israel
viu no facto um sinal da presença e do amor do Deus libertador.
Este episódio é um episódio
paradigmático, que reproduz as vicissitudes e as dificuldades da caminhada
histórica do Povo de Deus.
Desde que o Povo fugiu do Egito,
até chegar a este lugar (Massa/Meribá, segundo os autores do relato), Jahwéh
manifestou, de mil formas, o seu amor por Israel… No episódio da passagem do
mar (cf. Ex 14,15-31), no episódio da água amarga transformada em água doce
(cf. Ex 15,22-27), no episódio do maná e das codornizes (cf. Ex 16,1-20), Deus
mostrou o seu empenho em conduzir o seu Povo para a liberdade e em transformar
a experiência de morte numa experiência de vida… Jahwéh mostrou, sem margem
para dúvidas, estar empenhado na salvação do seu Povo. Depois dessas
experiências, Israel já não devia ter qualquer dúvida sobre a vontade salvadora
de Deus e sobre o seu projeto de libertação.
No entanto, não é isso que
acontece. Diante das dificuldades da caminhada, o Povo esquece tudo o que
Jahwéh já fez e manifesta as suas dúvidas sobre os objetivos de Deus. A falta
de confiança em Deus (“o Senhor está ou não no meio de nós?” - vers. 7) conduz
ao desespero e à revolta. O Povo entra em contenda com Moisés (o nome “meribá”
vem da raíz “rib” – “entrar em contencioso”) e desafia Deus a clarificar,
através de um gesto espectacular, de que lado está (o nome “massa” vem da raíz
“nsh” – “tentar”, no sentido de “provocar”). Acusam Deus de ter um projecto de
morte, apesar de Ele, tantas vezes, ter demonstrado que o seu projecto é de
vida e de liberdade. Afinal, depois de tantas provas, Israel ainda não fez uma
verdadeira experiência de fé: não aprendeu a confiar em Deus e a entregar-se
nas suas mãos.
Como é que Deus reage à
ingratidão e à falta de confiança do seu Povo? Com “paciência divina”, Deus
responde mais uma vez às necessidades do seu Povo e oferece-lhe a água que dá
vida. À pergunta do Povo (“o Senhor está ou não no meio de nós?”), Deus
responde provando que está, efetivamente, no meio do seu Povo.
Desta forma os israelitas – e os
crentes de todas as épocas – são convidados a reter esta verdade definitiva: o
Senhor é o Deus que está sempre presente na caminhada histórica do seu Povo
oferecendo-lhe, em cada passo da caminhada, a vida e a salvação.
ATUALIZAÇÃO
Refletir sobre os seguintes
dados:
• A caminhada dos hebreus pelo
deserto é, um pouco, o espelho da nossa caminhada pela vida. Todos nós fazemos,
todos os dias, a experiência de um Deus libertador e salvador, que está
presente ao nosso lado, que nos estende a mão e nos faz passar da escravidão
para a liberdade. No entanto, ao longo da travessia do deserto que é a vida,
experimentamos, em certas circunstâncias, a nossa pequenez, a nossa
dependência, as nossas limitações e a nossa finitude; as dificuldades, o
sofrimento e o desencanto fazem-nos duvidar da bondade de Deus, do seu amor, do
seu projeto para nos salvar e para nos conduzir em direção à verdadeira
felicidade. No entanto, a Palavra de Deus deste domingo garante-nos: Deus nunca
abandona o seu Povo em caminhada pela história… Ele está ao nosso lado, em cada
passo da caminhada, para nos oferecer gratuitamente e com amor a água que mata
a nossa sede de vida e de felicidade.
• Ao longo da caminhada do Povo
de Deus pelo deserto vêm ao de cima as limitações e as deficiências de um grupo
humano ainda com mentalidade de escravo, agarrado à mesquinhez, ao egoísmo e ao
comodismo, que prefere a escravidão ao risco da liberdade. No entanto, Deus lá
está, ajudando o Povo a superar mentalidades estreitas e egoístas, fazendo-o ir
mais além e obrigando-o a amadurecer. À medida que avança, de mãos dadas com
Deus, o Povo vai-se renovando e transformando, vai alargando os horizontes,
vai-se tornando um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais
santo.
• É esta, também, a experiência
que fazemos. Muitas vezes somos egoístas, orgulhosos, comodistas, “meninos
mimados” que passam a vida a lamentar-se e a acusar Deus e os outros pelos
“dói-dóis” que a vida nos faz. No entanto, as dificuldades da caminhada não são
um castigo ou uma derrota; são, tantas vezes, parte dessa pedagogia de Deus
para nos forçar a ir mais além, para nos renovar, para nos amadurecer, para nos
tornar menos orgulhosos e autossuficientes. Devíamos, talvez, aprender a
agradecer a Deus alguns momentos de sofrimento e de fracasso que marcam a nossa
vida, pois através deles Deus faz-nos crescer.
SALMO RESPONSORIAL – SALMO 94 (95)
Refrão: Se hoje ouvirdes a voz do
Senhor,
não fecheis os vossos corações.
Vinde, exultemos de alegria no
Senhor,
aclamemos a Deus nosso salvador.
Vamos à sua presença e dêmos
graças,
ao som de cânticos aclamemos o
Senhor.
Vinde, prostremo-nos em terra,
adoremos o Senhor que nos criou.
Pois Ele é o nosso Deus
e nós o seu povo, as ovelhas do
seu rebanho.
Quem dera ouvísseis hoje a sua
voz:
«Não endureçais os vossos
corações,
como em Meriba, como no dia de
Massa no deserto,
onde vossos pais Me tentaram e
provocaram,
apesar de terem visto as minhas
obras.
LEITURA II – Rom 5,1-2.5-8
Quando escreve aos Romanos, Paulo
está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para
Jerusalém. O apóstolo sentia que tinha terminado a sua missão no oriente (cf.
Rom 15,19-20) e queria levar o Evangelho a outros cantos do mundo, nomeadamente
ao ocidente. Sobretudo, Paulo aproveita a ocasião para contatar a comunidade de
Roma e para apresentar aos Romanos os principais problemas que o ocupavam
(entre os quais avultava o problema da unidade – um problema bem atual na
comunidade cristã de Roma, então afetada por alguma dificuldade de
relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou
58.
Paulo aproveita para dizer aos
Romanos e a todos os cristãos que o Evangelho deve unir e congregar todo o
crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Para desfazer algumas ideias
de superioridade (e, sobretudo, a pretensão judaica de que a salvação se
conquista pela observância da Lei de Moisés), Paulo nota que todos os homens
vivem mergulhados no pecado (cf. Rom 1,18-3,20) e que é a “justiça de Deus” que
a todos dá a vida, sem distinção (cf. Rom 3,1-5,11).
No texto que a segunda leitura
deste domingo nos propõe, Paulo refere-se à acção de Deus, por Jesus Cristo e
pelo Espírito, no sentido de “justificar” todo o homem.
Paulo parte da ideia de que todos
os crentes – judeus, gregos e romanos – foram justificados pela fé. Que
significa isto?
Na linguagem bíblica, a justiça
é, mais do que um conceito jurídico, um conceito relacional. Define a
fidelidade a si próprio, à sua maneira de ser e aos compromissos assumidos no
âmbito de uma relação. Ora, se Jahwéh se manifestou na história do seu Povo como
o Deus da bondade, da misericórdia e do amor, dizer que Deus é justo não
significa dizer que Ele aplica os mecanismos legais quando o homem infringe as
regras; significa, sim, que a bondade, a misericórdia e o amor próprios do ser
de Deus se manifestam em todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não foi
correto no seu proceder. Paulo, ao falar do homem justificado, está a falar do
homem pecador que, por exclusiva iniciativa do amor e da misericórdia de Deus,
recebe um veredicto de graça que o salva do pecado e lhe dá, de modo totalmente
gratuito, acesso à salvação. Ao homem é pedido somente que acolha, com
humildade e confiança, uma graça que não depende dos seus méritos e que se
entregue completamente nas mãos de Deus. Este homem, objeto da graça de Deus, é
uma nova criatura (cfr. Gal 6,15): é o homem ressuscitado para a vida nova (cf.
Rom 6,3-11), que vive do Espírito (cf. Rom 8,9.14), que é filho de Deus e
co-herdeiro com Cristo (cf. Rom 8,17; Gal 4,6-7).
Quais os frutos que resultam
deste acesso à salvação que é um dom de Deus?
Em primeiro lugar, a paz (vers.
1). Esta paz não deve ser entendida em sentido psicológico (tranquilidade,
serenidade), nem em sentido político (ausência de guerra), mas no sentido
teológico semita de relação positiva com Deus e, portanto, de plenitude de
bens, já que Deus é a fonte de todo o bem.
Em segundo lugar, a esperança
(vers. 2-4 – embora os versículos 3 e 4 não apareçam no texto que nos é
proposto). Trata-se desse dom que nos permite superar as dificuldades e a dureza
da caminhada, apontando a um futuro glorioso de vida em plenitude. Não se trata
de alimentar um optimismo fácil e irresponsável, que permita a evasão do
presente; trata-se de encontrar um sentido novo para a vida presente, na
certeza de que as forças da morte não terão a última palavra e que as forças da
vida triunfarão.
Em terceiro lugar, o amor de Deus
ao homem (vers. 5-8). O cristão é, fundamentalmente, alguém a quem Deus ama. A
prova desse amor está em Jesus de Nazaré, o Filho amado a quem Deus “entregou à
morte por nós quando ainda éramos pecadores”.
Como pano de fundo, o nosso texto
propõe-nos o cenário do amor de Deus. Paulo garante-nos algo que já encontrámos
na primeira leitura de hoje: Deus nunca abandona o seu Povo em caminhada pela
história… Ele está ao nosso lado, em cada passo da caminhada, para nos oferecer
gratuitamente e com amor a água que mata a nossa sede de vida e de felicidade
(a paz, a esperança, o seu amor).
ATUALIZAÇÃO
• Este texto convida-nos a
contemplar o amor de um Deus que nunca desistiu dos homens e que sempre soube
encontrar formas de vir ao nosso encontro, de fazer caminho conosco. Apesar de
os homens insistirem, tantas vezes, no egoísmo, no orgulho, na autossuficiência
e no pecado, Deus continua a amar e a fazer-nos propostas de vida. Trata-se de
um amor gratuito e incondicional, que se traduz em dons não merecidos, mas que,
uma vez acolhidos, nos conduzem à felicidade plena.
• A vinda de Jesus Cristo ao
encontro dos homens é a expressão plena do amor de Deus e o sinal de que Deus
não nos abandonou nem esqueceu, mas quis até partilhar conosco a precariedade e
a fragilidade da nossa existência, a fim de nos mostrar como nos tornarmos
“filhos de Deus” e herdeiros da vida em plenitude.
• A presença do Espírito acentua
no nosso tempo – o tempo da Igreja – essa realidade de um Deus que continua
presente e atuante, derramando o seu amor ao longo do caminho que, dia a dia,
vamos percorrendo e impelindo-nos à renovação, à transformação, até chegarmos à
vida plena do Homem Novo. É esse caminho que a Palavra de Deus nos convida a
percorrer, neste tempo de Quaresma.
• Está em moda uma certa atitude
de indiferença face a Deus, ao seu amor e às suas propostas. Em geral, os
homens de hoje preocupam-se mais com os resultados da última jornada do
campeonato de futebol, com as últimas peripécias da “telenovela das nove”, com
os investimentos na Bolsa, com as vantagens da última geração de computadores
ou com o caminho mais rápido e mais seguro para atingir o topo da carreira
profissional do que com Deus e com o seu amor. Não será tempo de redescobrirmos
o Deus que nos ama, de reconhecermos o seu empenho em conduzir-nos rumo à
felicidade plena e de aceitarmos essa proposta de caminho que Ele nos faz?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – cf. Jo 4,42.15
Escolher um dos refrães:
Refrão 1: Louvor e glória a Vós,
Jesus Cristo, Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor,
Filho do Deus vivo.
Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus
Cristo, Rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis
são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e
o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Senhor, Vós sois o Salvador do
mundo:
dai-nos a água viva, para não
termos sede.
EVANGELHO – Jo 4,5-42
O Evangelho deste domingo
situa-nos junto de um poço, na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a
região central da Palestina – uma região heterodoxa, habitada por uma raça de
sangue misturado (de judeus e pagãos) e de religião sincretista.
Na época do Novo Testamento,
existia uma animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente,
a divisão começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e
foi deportada cerca de 4% da população samaritana. Na Samaria instalaram-se,
então, colonos assírios que se misturaram com a população local. Para os
judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2 Re
17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando,
após o regresso do Exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf. Esd
4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém (ano 437 a.C.) e denunciaram os
casamentos mistos. Tiveram, então, de enfrentar a oposição dos samaritanos na
reconstrução da cidade (cf. Ne 3,33-4,17). No ano 333 a.C., novo elemento de
separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim; no entanto,
esse Templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde, as
picardias continuaram: a mais famosa aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando
os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa,
espalhando ossos humanos nos átrios.
Os judeus desprezavam os
samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e
consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé jahwista; e os samaritanos
pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.
A cena passa-se à volta do “poço
de Jacob”, situado no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, não longe da
cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar). Trata-se de
um poço estreito, aberto na rocha calcária, e cuja profundidade ultrapassa os
30 metros. Segundo a tradição, teria sido aberto pelo patriarca Jacob… Os dados
arqueológicos revelam que o “poço de Jacob” serviu os samaritanos entre o ano
1000 a.C. e o ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair dele água).
O “poço” acaba por
transformar-se, na tradição judaica, num elemento mítico. Sintetiza os poços
abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar do rochedo no deserto
(primeira leitura de hoje); mas, sobretudo, torna-se figura da Lei (do poço da
Lei brota a água viva que mata a sede de vida do Povo de Deus), que a tradição
judaica considerava observada já pelos patriarcas, antes de ser dada ao Povo
por Moisés.
O Evangelho segundo São João
apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um
Homem Novo. No chamado “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta
– recorrendo aos “sinais” da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53),
da luz (cf. Jo 8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo
11,1-56) – um conjunto de catequeses sobre a ação criadora do Messias.
O nosso texto é, exatamente, a
primeira catequese do “Livro dos Sinais”: através do “sinal” da água, o autor
vai descrever a ação criadora e vivificadora de Jesus.
No centro da cena, está o “poço
de Jacob”. À volta do “poço” movimentam-se as personagens principais: Jesus e a
samaritana.
A mulher (aqui apresentada sem
nome próprio) representa a Samaria, que procura desesperadamente a água que é
capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da “mulher”.
Haverá neste episódio uma referência ao Deus/esposo que vai ao encontro do
povo/esposa infiel para lhe fazer descobrir o amor verdadeiro? Tudo indica que
sim (aliás, o profeta Oseias, o grande inventor desta imagem matrimonial para
representar a relação Deus/Povo, pregou aqui, na Samaria).
O “poço” representa a Lei, o
sistema religioso à volta do qual se consubstanciava a experiência religiosa
dos samaritanos. Era nesse “poço” que os samaritanos procuravam a água da vida
plena. No entanto: o “poço” da Lei correspondia à sede de vida daqueles que o
procuravam? Não. Os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do
“poço” da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas (por
isso, Jesus faz referência aos “cinco maridos” que a mulher já teve: há aqui,
provavelmente, uma alusão aos cinco deuses dos samaritanos de que se fala em 2
Re 17,29-41).
Estamos, pois, diante de um
quadro que representa a busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei?
Noutros deuses? A mulher/Samaria dá conta da falência dessas “ofertas” de vida:
elas podem “matar a sede” por curtos instantes; mas quem procura a resposta
para a sua realização plena nessas propostas voltará a ter sede.
É aqui que entra a novidade de
Jesus. Ele senta-se “junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e
propõe à mulher/Samaria uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede
de vida eterna (vers. 10-14). Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os
que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.
Qual é a água que Jesus tem para
oferecer? É a “água do Espírito” que, no Evangelho de João, é o grande dom de
Jesus. Na conversa com Nicodemos, Jesus já havia avisado que “quem não nascer
da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” – Jo 3,5; e quando
Jesus se apresenta como a “água viva” que matará a sede do homem, João tem o
cuidado de explicar que Ele se referia ao Espírito, que iam receber aqueles que
acreditassem n’Ele (cf. Jo 7,37-39). Esse Espírito, uma vez acolhido no coração
do homem, transforma-o, renova-o e torna-o capaz de amar Deus e os outros.
Como é que a mulher/Samaria
responde ao dom de Jesus? Inicialmente, ela fica confusa. Parece disposta a
remediar a situação de falência de felicidade que caracteriza a sua vida, mas
ainda não sabe bem como: essa vida plena que Jesus está a propor-lhe significa
que a Samaria deve abandonar a sua especificidade religiosa e ceder às
pretensões religiosas dos judeus, para quem o verdadeiro encontro com Deus só
pode acontecer no Templo de Jerusalém e na instituição religiosa judaica
(“nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se
deve adorar”)?
No entanto, Jesus nega que se
trate de escolher entre o caminho dos judeus e o caminho dos samaritanos. Não é
no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus
está… O que se trata é de acolher a novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e
aceitar a sua proposta de vida (isto é, aceitar o Espírito que Ele quer
comunicar a todos os homens).
Dessa forma – e só dessa forma –
desaparecerá a barreira de inimizade que separa os povos – judeus e
samaritanos. A única coisa que passa a contar é a vida do Espírito que encherá
o coração de todos, que a todos ensinará o amor a Deus e aos outros e que fará
de todos – sem distinção de raças ou de perspectivas religiosas – uma família
de irmãos.
A mulher/Samaria responde à
proposta de Jesus abandonando o cântaro (agora inútil), e correndo a anunciar
aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto refere, ainda, a
adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a
“confissão da fé”: Jesus é reconhecido como “o salvador do mundo” – isto é,
como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vers. 28-41).
O nosso texto define, portanto, a
missão de Jesus: comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que
Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a
capacidade de amar sem medida. Eleva, assim, esses homens que buscam a vida
plena e definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as
obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão, os
seguintes pontos:
• A modernidade criou-nos grandes
expectativas. Disse-nos que tinha a resposta para todas as nossas procuras e
que podia responder a todas as nossas necessidades. Garantiu-nos que a vida
plena estava na liberdade absoluta, numa vida vivida sem dependência de Deus;
disse-nos que a vida plena estava nos avanços tecnológicos, que iriam tornar a
nossa existência cómoda, eliminar a doença e protelar a morte; afirmou que a
vida plena estava na conta bancária, no reconhecimento social, no êxito
profissional, nos aplausos das multidões, nos “cinco minutos” de fama que a
televisão oferece… No entanto, todas as conquistas do nosso tempo não conseguem
calar a nossa sede de eternidade, de plenitude, dessa “mais qualquer coisa” que
nos falta para sermos, realmente, felizes. A afirmação essencial que o
Evangelho de hoje faz é: só Jesus Cristo oferece a água que mata
definitivamente a sede de vida e de felicidade do homem. Eu já descobri isto,
ou a minha procura de realização e de vida plena faz-se noutros caminhos? O que
é preciso para conseguirmos que os homens do nosso tempo aprendam a olhar para
Jesus e a tomar consciência dessa proposta de vida plena que Ele oferece a
todos?
• Essa “água viva” de que Jesus
fala faz-nos pensar no batismo. Para cada um de nós, esse foi o começo de uma
caminhada com Jesus… Nessa altura acolhemos em nós o Espírito que transforma,
que renova, que faz de nós “filhos de Deus” e que nos leva ao encontro da vida
plena e definitiva. A minha vida de cristão tem sido, verdadeiramente, coerente
com essa vida nova que então recebi? O compromisso que então assumi é algo
esquecido e sem significado, ou é uma realidade que marca a minha vida, os meus
gestos, os meus valores e as minhas opções?
• Atentemos no pormenor do
“cântaro” abandonado pela samaritana, depois de se encontrar com Jesus… O
“cântaro” significa e representa tudo aquilo que nos dá acesso a essas
propostas limitadas, falíveis, incompletas de felicidade. O abandono do
“cântaro” significa o romper com todos os esquemas de procura de felicidade
egoísta, para abraçar a verdadeira e única proposta de vida plena. Eu estou
disposto a abandonar o caminho da felicidade egoísta, parcial, incompleta, e a
abrir o meu coração ao Espírito que Jesus me oferece e que me exige uma vida
nova?
• A samaritana, depois de encontrar
o “salvador do mundo” que traz a água que mata a sede de felicidade, não se
fechou em casa a gozar a sua descoberta; mas partiu para a cidade, a propor aos
seus concidadãos a verdade que tinha encontrado. Eu sou, como ela, uma
testemunha viva, coerente, entusiasmada dessa vida nova que encontrei em Jesus?
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