“Eu dou minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,15)
Embora o Evangelho de hoje já não fale
mais de Aparições do Ressuscitado, na realidade não nos afastamos do
tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “O bom Pastor dá a sua
vida por suas ovelhas”.
A Vida é o verdadeiro tema da Páscoa. E
“a vida sempre tem razão” (Rilke). Para o evangelista João, a “vida” é,
antes de tudo, totalidade, vastidão, amplidão ilimitada e que se
expressa em infinidades de formas, todas elas habitadas pela mesma e
única Vida. Falamos da vida presente, a vida atual, uma vida carregada
de tal plenitude e de tal densidade que, com toda razão, podemos
chamá-la de “vida eterna”, e que nem mesmo a morte poderá com ela.
Mais ainda, o Deus que Jesus nos revela
O encontramos na vida, ou seja, Deus se fundiu com a vida, essa vida
que nos entra pelos sentidos. Encontramos Deus, antes de tudo, pelo que
vemos e sentimos, pelo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo
aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós.
Deus entra pelos sentidos.
Quando alguém se deixa invadir pelo
humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do
mundo, é sinal que Deus entrou pelos seus sentidos. E então justamente é
quando, de verdade, se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que
Jesus de Nazaré nos revelou. Por isso, na vida humana, é tão
determinante a sensibilidade, o afeto, a ternura, a bondade, a
compaixão, o cuidado, tudo o que gera amor, carinho e doação de uns para
com outros.
Para fazer-se presente neste mundo, Deus
não veio impor-nos uma nova doutrina e uma nova lei, mas apresentou-se
a nós na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os pobres e
que “morreu de tanto viver”. Por isso, o sinal decisivo de que alguém
crê no Deus de Jesus está na vida que leva; em outras palavras, está em
viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma
pessoa encontrou o Deus de verdade é que ela se relaciona com os outros
como Jesus se relacionou, que sente o que Jesus sentiu, que ama o que
Jesus amou. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará
jamais.
Nas comunidades cristãs precisamos viver
uma nova experiência de Jesus, reavivando nossa relação com Ele,
colocando-o no centro de nossa vida. Assim, a Vida de Jesus vai se
fazendo vida em nós. Esta relação intensa em fazer caminho com Ele se
expande na vivência de novas relações com os outros e com a realidade
que nos cerca.
Por isso, quem se percebe assim, só pode
viver o cuidado para com tudo e com todas as expressões de vida. Um
cuidado que Jesus expressa na imagem do “pastor”, imagem que não
expressa sua densidade e seu sentido para a maioria de nossos
contemporâneos, mas que continha uma extraordinária riqueza no contexto
em que Jesus a utilizava. Certamente, não somos “ovelhas” em sentido
literal, mas pessoas. Jesus, bom pastor, abre a porta da Vida e nos
permite sair para o Espaço da Liberdade e da Páscoa.
O decisivo é “escutar a voz do Pastor”
em toda sua limpidez e originalidade. Ele é a voz da Vida. Não
confundi-la e nem nos deixar distrair ou enganar por outras vozes
estranhas, que, mesmo escutadas no interior da Igreja, não comunicam sua
Boa notícia.
Todos nós “conhecemos a voz” da Vida.
Por isso, cada vez que vemos, ouvimos ou lemos algo carregado de vida,
produz-se uma ressonância em nosso interior. É uma voz que “ressoa” em
nós, embora tenha estado apagada durante muito tempo.
Em nosso contexto há muitas vozes e de
todo o tipo. São tantas que corremos o risco de ficar confusos. Algumas
delas podem apresentar-se especialmente atrativas porque parecem
encaixar perfeitamente com o que são as necessidades do ego. Há vozes
que prometem, vozes que compensam, vozes que entretém, vozes que
distraem, vozes que seduzem, vozes que inflam, vozes que assustam, vozes
que ameaçam, vozes que nos dão a razão, vozes que nos rejeitam...
Tantas vozes... e não é estranho que, em algum momento, as sigamos. No
entanto, se não são a genuína voz da Vida, não nos alimentarão; seu
encanto se revelará passageiro e, com frequência, frustrante.
Jesus fala a partir da Vida, ou melhor
ainda, como a Vida. Só pode falar a partir da Vida quem se reconhece
nela, que descobriu que a Vida é sua verdadeira identidade.
Compreende-se, assim, que quem disse “eu sou o bom pastor”, disse também
“Eu sou a vida”. Nesse sentido, a vivência pascal está focada na missão
de favorecer a vida. “Dar vida” não é algo que o ego possa fazer. A
Vida dá-se a si mesma; ela é expansiva, aberta... Necessitamos
unicamente reconhecer-nos nela, de um modo cada vez mais consciente e,
portanto, destravada, para que flua e se expresse através de nós, em
gestos concretos.
Essa é a experiência pascal da vida:
experiência da intimidade, da presença, da proximidade, da comunhão, da
aliança, da glória de Deus, em nossa própria vida. Vivemos embriagados
de vida, sentimo-nos como um peixe no oceano de Deus, dizendo um
profundo “sim” às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Como
ressuscitados, sentimos e sabemos: se Deus não pode ser encontrado no
próprio coração e no coração da vida, não será encontrado em lugar
nenhum.
Seguir o Bom Pastor e ouvir a sua voz é
deixar-se “configurar” por Ele, é movimento pelo qual cada um vai sendo
modelado à imagem d’Ele. O seguidor do Bom Pastor sente-se cativado,
envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Ele de tal
maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração,
sua existência transbordam Deus.
O olhar transparente e livre do Bom
Pastor ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar
amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar
nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos
permitam olhar e viver no contexto atual com amor, com entusiasmo e
criatividade.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós
o “pastor escondido” para que possamos ser a voz de vida que faz a
diferença e indique a todos a porta de liberdade ; todos nós temos de
ser pastores que os ajudem a encontrar o caminho e o sentido para suas
existências..
Queremos ser “bons pastores” que se
ajudem mutuamente a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo,
legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim busca e
celebrar a liberdade, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres
de boa vontade.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: revisar a
própria vida à luz da Vida Maior do Ressuscitado. Perceber o dom da
vida na sua origem, seguindo a voz do bom Pastor, para prolongar seus
gestos e o seu cuidado em favor da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
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