A perfeição cristã
Costuma-se dizer que a espiritualidade antiga era uma espiritualidade de busca da perfeição. Perfeição pessoal, particular, busca de um aprimoramento de si mesmo. E mesmo que esse aprimoramento fosse na área das virtudes, da santidade, da união com Deus, em última instância essa busca da perfeição seria uma busca de si mesmo. Portanto uma espiritualidade privativa, particular, sem uma perspectiva essencial de abertura para os outros. Essa “apreciação” acerca da espiritualidade antiga não faz jus à busca da perfeição cristã na grande Tradição do Ocidente cristão.
O adjetivo “cristã” se refere a Jesus Cristo. Se quisermos saber o que é a perfeição cristã, devemos entendê-la também a partir da referência a Jesus Cristo e ao seu seguimento.
A palavra perfeição vem do latim “perfectio” que, por sua vez, vem do verbo “perficere” que significa levar algo à consumação, fazer algo do princípio até o fim. Perfeição compõe-se de duas palavras: “per” e “facere”. “Per” significa através, atravessando do início até o fim, de lado a lado, de uma extremidade à outra; indica, pois, a continuidade de uma ação e sua persistência até o fim. “Facere” significa fazer.”Perfeição” é a ação de fazer, do princípio até o fim. É “per-fazer”.
Usualmente entendemos por fazer, fabricar, construir e hoje também agir, acionar, agenciar. No entanto, no seu sentido mais elementar e arcaico, fazer significa colocar a modo de fundação, isto é, fundar, edificar desde as bases, alicerçar. E representamos o processo da construção como colocar uma camada em cima da outra, assim a modo de acréscimo sucessivo. Essa maneira estática de representar a construção não nos dá o caráter próprio do verbo fazer.
Para captar o próprio do fazer como fundar, coloquemo-nos na situação de um São Cristóvão, naquele exato momento em que, ao carregar o Menino Deus nos ombros para transportá-lo à outra margem, começa a afundar e é obrigado a, com todo o cuidado e com toda a força de que dispõe, dar um passo após o outro, firmando-se cada vez com toda a atenção e diligência para não escorregar.
Nessa situação insólita, sintamos a sola dos pés. Colada ao leito do rio, seja ele areia ou pedra lisa, ela é o alicerce. Na medida em que o peso de cima aumenta, a sola dos pés suporta (“sub-porta”), isto é, carrega a partir de baixo o peso que vem de cima. Essa reação é como acréscimo, como crescimento, aumento do esforço de sustentação, que brota de baixo, a partir da sola dos pés e sobe por todo o corpo. A cada movimento do andar, passo por passo, é necessário colocar, pôr, na medida cada vez certa, a partir de si com toda a atenção, a força de sustentação como resposta, ao peso que vem de cima como percussão.
Esse modo de ser que, ao pôr-se, lança-se como o todo e, com o risco de perder-se, firma-se, toma pé, a partir de e na possibilidade ali presente, chama-se fundar. Esse modo de ser é o fazer no seu sentido e originário. Fundar é, portanto, fazer-se, perfazer-se. O “per-fazer-se” da espiritualidade é fazer nesse sentido de fundar-se, colocar-se, pôr-se de pé, alicerçar-se.
A essência da Espiritualidade cristã é o seguimento de Jesus Cristo, que diz: “Se queres ser perfeito, segue-me” (Mt 19, 21). Pôr-se de pé para ir, para caminhar, para seguir já é o primeiro passo do caminhar.
Esse primeiro passo, quando é pôr-se de pé no sentido de colocar-se como a fundação, não é o primeiro de toda uma série de passos. É o lance do todo. É, portanto, um salto. É por isso que Jesus, quando nos convida a nos aviarmos no seguimento, diz “vende tudo e dá aos pobres”. Dar aos pobres é não mais receber de volta. É salto.
Perfeição é, pois, a permanência na dinâmica do fazer, compreendido como pôr-se, colocar-se a modo da fundação num salto. Perfeição é, pois, a ação originária da vida.
Se isto é perfeição, talvez a assim chamada espiritualidade da perfeição, uma vez devidamente compreendida, nada tem a ver com o humanismo particularista e privativo, mas tudo a ver com o modo de ser e modo de agir da decisão de seguimento de Jesus Cristo.
D. Fernando Mason
A†Ω
Nenhum comentário:
Postar um comentário