A Palavra de Deus
dirige-se a todos sem exceção
03º Domingo do Tempo Comum - Ano
C
A liturgia deste domingo coloca no centro da nossa reflexão a
Palavra de Deus: ela é, verdadeiramente, o centro à volta do qual se constrói a
experiência cristã. Essa Palavra não é uma doutrina abstrata, para deleite dos
intelectuais; mas é, primordialmente, um anúncio libertador que Deus dirige a
todos os homens e que encarna em Jesus e nos cristãos.
Na primeira leitura, exemplifica-se como a Palavra deve estar no
centro da vida comunitária e como ela, uma vez proclamada, é geradora de
alegria e de festa.
No Evangelho, apresenta-se Cristo como a Palavra que se faz pessoa
no meio dos homens, a fim de levar a libertação e a esperança às vítimas da
opressão, do sofrimento e da miséria. Sugere-se, também, que a comunidade de
Jesus é a comunidade que anuncia ao mundo essa Palavra libertadora.
A segunda leitura apresenta a comunidade gerada e alimentada pela
Palavra libertadora de Deus: é uma família de irmãos, onde os dons de Deus são
repartidos e postos ao serviço do bem comum, numa verdadeira comunhão e solidariedade.
LEITURA I – Ne 8,2-4a.5-6.8-10
O Livro de Neemias (com o de
Esdras com o qual, inicialmente, formava uma unidade) pertence ao período que
se segue ao regresso dos exilados judeus da Babilônia.
Estamos nos séculos V/IV a.C.;
para os habitantes de Jerusalém, é ainda um tempo de miséria e desolação, com a
cidade sem muralhas e sem portas, uma sombra negra da cidade bela que tinha
sido. Neemias, um alto funcionário do rei Artaxerxes, entristecido pelas
notícias recebidas de Jerusalém, obtém do rei autorização para se instalar na
capital judia. Neemias vai começar a sua atividade com a reconstrução da
muralha (cf. Ne 3-4) e com o combate às injustiças cometidas pelos ricos contra
os pobres (cf. Ne 5). Depois, procura restaurar o culto (cf. Ne 8-9).
É neste contexto de preocupação
com a restauração do culto que podemos situar o trecho que nos é proposto:
Neemias reúne todo o Povo “na praça que fica diante da Porta das Águas”, a fim
de escutar a leitura da Lei. Trata-se de recordar ao Povo o compromisso
fundamental que Israel assumiu com o seu Deus: só assim será possível preparar
esse futuro novo que Neemias sonha para Jerusalém e para o Povo de Deus.
A questão fundamental sugerida
pelo texto tem a ver com a importância que a Palavra de Deus deve assumir na
vida de uma comunidade. Todos os pormenores apontam nesse sentido.
Em primeiro lugar, o autor do
texto sublinha a convocação de toda a comunidade para escutar a Palavra: os
homens, as mulheres e as crianças em idade “de compreender”. A Palavra de Deus
dirige-se a todos sem exceção, a todos interpela e questiona.
Em segundo lugar, atente-se na
questão dos preparativos: há um estrado de madeira feito de propósito que
coloca o leitor em plano superior; depois, o Livro da Lei é aberto de forma
solene e todos se levantam, em atitude de respeito e veneração pela Palavra… É
o exemplo de uma comunidade onde a Palavra de Deus está no centro e onde tudo
se conjuga em função do lugar especial que a Palavra ocupa na vida da
comunidade.
Em terceiro lugar, temos a
descrição do rito: a Palavra é aclamada pela assembleia; depois, os levitas
lêem clara e distintamente; finalmente, explicam ao povo a Palavra, de modo
acessível, “de maneira que se pudesse compreender a leitura”. Temos aqui um
autêntico manual de como deve processar-se uma verdadeira “celebração da
Palavra”.
Em quarto lugar, temos a resposta
do Povo: confrontados com a Palavra, choram. A atitude do Povo revela,
certamente, uma comunidade que se deixa interpelar pela Palavra, que confronta
a sua vida com a Palavra proclamada e que sente, na sequência, a urgência da
conversão. A Palavra é eficaz e provoca a transformação da vida.
Finalmente, tudo termina numa
grande festa: o dia “consagrado ao Senhor” é um dia de alegria e de festa para
a comunidade que se alimentou da Palavra.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as
seguintes questões:
• Que lugar ocupa a Palavra de
Deus na vida de cada um de nós e na vida das nossas comunidades? A Palavra é o
centro à volta do qual tudo se articula? Encontramos espaço para ler, para
refletir, para partilhar a Palavra?
• Aqueles a quem é confiada a
missão de proclamar a Palavra: preparam convenientemente o ambiente? Proclamam
a Palavra clara e distintamente? Refletem a Palavra e explicam-na de forma
acessível, de forma que ela toque a assembleia que escuta? Têm a preocupação de
adaptá-la à vida?
• Nas nossas assembleias
comunitárias, a Palavra é acolhida com veneração e respeito, ou aproveitamos o
momento em que ela é proclamada para acender velinhas ao santo da nossa
devoção, para rezar o terço ou para “controlar” quem está ao nosso lado?
• A Palavra interpela-nos,
leva-nos à conversão, à mudança de vida, ou a Palavra é só para os outros
(“grande recado que o padre está a mandar à dona…”)?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 B (19)
Refrão: As vossas palavras,
Senhor,
são espírito e vida.
A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.
Os preceitos do Senhor são rectos
e alegram o coração;
os mandamentos do Senhor são
claros
e iluminam os olhos.
O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
os juízos do Senhor são
verdadeiros,
todos eles são rectos.
Aceitai as palavras da minha boca
e os pensamentos do meu coração
estejam na vossa presença:
Vós, Senhor, sois o meu amparo e
redentor.
LEITURA II – 1 Cor 12,12-30
A segunda leitura vem na
sequência da que lemos no domingo passado. Paulo está preocupado porque, na
Igreja de Corinto, os “carismas” (dons de Deus para benefício de toda a
comunidade), utilizados em benefício próprio, geravam individualismo, divisão,
luta pelo poder, desprezo pelos que aparentemente não possuíam dons especiais.
É uma situação intolerável: aquilo que devia beneficiar todos é usurpado por
alguns e está a pôr em causa a unidade e a comunhão desta Igreja.
Para tornar mais clara a
mensagem, Paulo utiliza uma comparação muito conhecida no mundo greco-romano
(onde é usada para falar dos deveres comunitários): a fábula do corpo e dos
seus membros.
Paulo compara a comunidade cristã
a um corpo. Esse corpo é constituído por uma pluralidade diversificada de
membros, cada um com a sua tarefa, isto é, com o seu “carisma” peculiar. Não
basta que os membros sejam vários: é preciso que sejam variados, que sejam
distintos: é a riqueza da variedade que permite a sobrevivência de todo o
conjunto. Além disso, são membros que necessitam uns dos outros e que se
preocupam uns com os outros. A unidade fundamental deve, pois, ir de mãos dadas
com o pluralismo carismático e com a preocupação pelo bem comum.
No entanto, o mais interessante e
mais original (a fábula em si não é original) é a identificação deste corpo com
Cristo: a comunidade cristã é o corpo de Cristo (vós sois corpo de Cristo e
seus membros” – vers. 27). É também esta identificação com Cristo a parte mais
questionadora da parábola… Neste corpo tem de manifestar-se o Cristo total.
Ora, pode Cristo estar dividido? Pode o corpo de Cristo identificar-se com
conflitos e rivalidades? É possível que o corpo de Cristo dê ao mundo um
testemunho de egoísmo, de individualismo, de orgulho, de auto-suficiência, de
desprezo pelos pobres e débeis?
O corpo de Cristo (a Igreja) é,
pois, uma comunidade de irmãos, que de Cristo recebem e partilham a vida que os
une; sendo uma pluralidade de membros, com diversas funções, respeitam-se,
apoiam-se, são solidários uns com os outros e amam-se. Palavras-chave para
definir a teia de relações que liga este corpo de Cristo são “solidariedade”,
“participação”, “co-responsabilidade”.
Na parte final do texto, Paulo
apresenta uma espécie de hierarquia dos “carismas”. Obviamente, os “carismas”
apresentados em primeiro lugar são os que dizem respeito à Palavra, ao anúncio
da Boa Nova (“apóstolos”, “profetas”, “doutores”). Isso significa que o corpo
de Cristo é, verdadeiramente, a comunidade que nasce da Palavra e que se
alimenta da Palavra: tudo o resto passa para segundo plano, diante da Palavra
criadora e vivificadora que Deus dirige à comunidade.
No entanto, também aqui não
podemos esquecer o que Paulo disse atrás: todos os membros do corpo desempenham
funções importantes para o equilíbrio e harmonia do conjunto e para a
consecução do bem comum.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha,
considerar os seguintes elementos:
• A Igreja é o corpo de Cristo
onde se manifesta, na diversidade de membros e de funções, a unidade, a
partilha, a solidariedade, o amor, que são inerentes à proposta salvadora que
Cristo nos apresentou. A nossa comunidade cristã é, para nós, uma família de
irmãos, que vivem em comunhão, que se respeitam e que se amam, ou é o campo
onde se enfrentam as invejas e os interesses egoístas e mesquinhos?
• Usamos os “carismas” que Deus
nos confia para o serviço dos irmãos e para o crescimento do corpo, ou para a
nossa promoção pessoal e social?
• Nesse corpo, os vários membros
vivem em inter-dependência. É efectiva a nossa solidariedade com os membros da
comunidade? Os dramas e os sofrimentos, as alegrias e as esperanças dos nossos
irmãos são sentidos por todos os membros desse corpo?
• Sentimo-nos co-responsáveis na
construção dessa comunidade da qual somos membros e desempenhamos, com sentido
de responsabilidade, o nosso papel, ou remetemo-nos a uma situação de
passividade e de comodismo, esperando que sejam os outros a fazer tudo?
ALELUIA – Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar a
boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a redenção.
EVANGELHO – Lc 1,1-4;4,14-21
O Evangelho de hoje é constituído
por dois textos diferentes.
No primeiro (1,1-4), temos um
prólogo literário onde Lucas, imitando o estilo dos escritores helénicos da
altura, apresenta o seu trabalho: trata-se de uma investigação cuidada dos
“factos que se realizaram entre nós”, a fim de que os crentes de língua grega
(a quem o Evangelho de Lucas se dirige) verifiquem “a solidez da doutrina em
que foram instruídos”. Estamos na década de 80 quando, desaparecidas já as
“testemunhas oculares” de Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com uma
série de heresias e de desvios doutrinais, que põem em causa a identidade
cristã. Era, pois, necessário, recordar aos crentes as suas raízes e a solidez
dessa doutrina recebida de Jesus, através do testemunho legítimo que é a
tradição transmitida pelos apóstolos.
Na segunda parte (4,14-21),
apresenta-se o início da pregação de Jesus, que Lucas coloca em Nazaré. O cenário de
fundo é o do culto sinagogal, no sábado. O serviço litúrgico celebrado na
sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas, com o
respectivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade ou,
como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo seu saber na explicação da
Palavra de Deus. O centro do relato está na proclamação de um texto do
Trito-Isaías (cf. Is 61,1-2) que descreve como é que o Messias concretizará a
sua missão.
A finalidade da obra de Lucas é,
como dissemos, recordar aos crentes das comunidades de língua grega as suas
raízes e a sua referência a Jesus. Neste texto em concreto, Lucas vai
apresentar o programa que Jesus Se propõe realizar no meio dos homens, como uma
proposta de libertação dirigida a todos os oprimidos.
O ponto de partida é a leitura do
texto de Is 61,1-2. Esse texto apresenta o profeta anónimo que, em Jerusalém,
consola os exilados, como um “ungido de Deus”, que possui o Espírito de Deus; a
sua missão consiste em gritar a “boa notícia” de que a libertação chegou ao
coração e à vida de todos os prisioneiros do sofrimento, da opressão, da
injustiça, do desânimo, do medo. O que é mais significativo, no entanto, é a “atualização”
que Jesus faz desta profecia: Ele apresenta-Se como o “profeta” que Deus ungiu
com o seu Espírito, a fim de concretizar essa missão libertadora.
O projeto libertador de Deus em
favor dos homens prisioneiros do egoísmo, da injustiça e do pecado começa,
portanto, a cumprir-se na ação de Jesus (“cumpriu-se hoje mesmo esta passagem
da Escritura que acabais de ouvir” – vers. 21). Na sequência, Lucas vai
descrever a atividade de Jesus na Galileia como o anúncio (em palavras e em
gestos) de uma “boa notícia” dirigida preferencialmente aos pobres e
marginalizados (aos leprosos, aos doentes, aos publicanos, às mulheres),
anunciando-lhes que chegou o fim de todas as escravidões e o tempo novo da vida
e da liberdade para todos.
Lucas anuncia também, neste texto
programático, o caminho futuro da Igreja e as condições da sua fidelidade a Cristo.
A comunidade crente toma consciência, através deste texto, de que a sua missão
é a mesma de Cristo e consiste em levar a “boa notícia” da libertação aos mais
pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito para levar a
cabo esta missão, a Igreja cumpre o seguimento de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, podem considerar-se
os seguintes elementos:
• No Evangelho de Lucas e neste
texto em particular, Jesus manifesta de forma bem nítida a consciência de que
foi investido do Espírito de Deus e enviado para pôr cobro a tudo o que rouba a
vida e a dignidade do homem. A nossa civilização, há vinte e um séculos que
conhece Cristo e a essência da sua proposta. No entanto, o nosso mundo continua
a multiplicar e a refinar as cadeias opressoras. Porque é que a proposta
libertadora de Jesus ainda não chegou a todos? Que situações hoje, à minha
volta, me parecem mais dramáticas e exigem uma ação imediata (pensar na
situação de tantos imigrantes de leste ou das ex-colônias; pensar na situação
de tantos idosos, sem amor e sem cuidados, que sobrevivem com pensões de
miséria; pensar nas crianças de rua e nos sem abrigo que dormem nos recantos
das nossas cidades; pensar na situação de tantas famílias, destruídas pela
droga e pelo álcool…)?
• A fidelidade ao “caminho”
percorrido por Cristo é a exigência fundamental do ser cristão. Ao longo dos
séculos, tem sido a defesa da dignidade do homem a preocupação fundamental da
Igreja de Jesus? Preocupa-nos a libertação dos nossos irmãos escravizados? Que
posso eu fazer, em concreto, para continuar no meio deles a missão libertadora
de Cristo?
• Repare-se, neste texto, como
Jesus “atualiza” a Palavra de Deus proclamada e a torna um anúncio de
libertação que toca de muito perto a vida dos homens. Os que proclamam a Palavra,
que a explicam nas homilias, têm esta preocupação de a tornar uma realidade
“tocante” e um anúncio verdadeiramente transformador e libertador, que atinge a
vida daqueles que os escutam?
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