A VIDA EM COMUNIDADE
*
COMUNIDADE NÃO É UM IDEAL HUMANO, MAS UMA REALIDADE DIVINA
É a bondade do Senhor que nos permite
viver, não só por algumas semanas, segundo um ideal, de acreditar naquelas
felizes experiências, de estado entusiasmante de êxtase, que nos coloca num
estado de embriaguez. O Senhor não é Senhor de emoções, mas da verdade. Só a
comunidade que se decepciona com todas as manifestações agradáveis relacionadas
à vida comunitária, começa a ser aquilo que deve ser diante de Deus, e a
firmar-se na fé ao entender as promessas que lhe foram feitas. Quanto mais cedo
chega, para o indivíduo e para a comunidade , a hora dessa decepção, tanto
melhor para todos...
Todo e qualquer ideal humano que venha a
mover uma comunidade cristã, impede a verdadeira comunhão e deve cair por
terra, para que a comunidade cristã possa verdadeiramente viver. Quem ama o seu
ideal de comunidade cristã mais que a comunidade mesma, destruirá toda e
qualquer possibilidade de comunhão cristã, por mais sincera, séria, e devota
sejam as suas intenções pessoais.
Quem na sua fantasia cria para si uma
imagem de comunidade, exige de Deus, do próximo e de si mesmo a sua realização.
Ele entra a fazer parte da comunidade de cristãos com motivações particulares,
redige para si uma lei e julga segundo esta os irmãos e até Deus mesmo. Ele
assume no convívio com os irmãos, uma postura rígida, tornando-se quase como
que um juiz vivente de todos os outros. Age como se fosse ele a criar a comunidade
cristã, como se o seu ideal devesse criar a comunhão entre os irmãos. Considera
como fracasso tudo aquilo que não corresponde à sua vontade...
No entanto, Deus já colocou uma vez para
sempre o único fundamento da nossa comunhão. Deus nos uniu em um só corpo em Jesus Cristo, muito
antes de entrarmos a fazer parte de uma comunidade com outros cristãos.
Agradeçamos a Deus porque nos deu irmãos que vivem na escuta de seu chamado e
do seu perdão...
...Alí onde os nevoeiros matutinos de
nossas ilusões se levantam, é que começa a luminosa jornada da comunhão cristã.
Com a comunidade cristã acontece o mesmo
que com a santificação dos cristãos. Ela é um dom de Deus, ao qual não temos
direito. Somente Deus sabe em que situação se encontra nossa comunhão, e nossa
santificação. Aquilo que parece pobre e frágil para nós, pode ser grande e
maravilhoso para Deus. Assim como o cristão não é para ficar constantemente
medindo o pulsar de sua vida espiritual, assim também a comunidade cristã não
nos é dada para que fiquemos medindo sua temperatura a todo o instante. Quanto
maior é a gratidão com que recebemos todos os dias o que nos é dado, com tanto
mais certeza e regularidade nossa comunhão crescerá dia após dia conforme a
benevolência de Deus.
Comunhão cristã não é um ideal que devemos
esforçar-nos para realizar. É uma realidade criada por Deus, em Cristo, da qual
devemos participar.
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COMUNHÃO ESPIRITUAL E COMUNHÃO PSÍQUICA
Por se fundamentar unicamente em Jesus Cristo, a
comunhão cristã é uma realidade espiritual e não psíquica. Nisso ela se
distingue fundamentalmente de todas as demais comunhões. Pneumático =
“espiritual” é como a Bíblia chama as coisas criadas só pelo Espírito Santo,
que implanta Jesus Cristo em nossos corações como Senhor e Salvador. Psíquico =
“anímico” é como a Escritura denomina as coisas que procedem dos instintos, das
forças e faculdades naturais da alma humana.
A ação humana nas suas origens, é movida
tanto por instintos nobres e piedosos, como por instintos desordenados. Na
comunhão espiritual o cristão vive o amor de serviço fraterno, o ágape. Na
comunhão psíquica arde o amor dos ímpios instintos, do Eros. No primeiro reina
o serviço voltado ao irmão, no segundo, o gozo; num a humilde submissão ao
irmão, no outro a soberba sujeição do irmão aos seus próprios desejos.
Existe um “amor psíquico” praticado em
relação ao próximo. Esse é capaz de cumprir os sacrifícios mais incríveis. No
entanto, é justamente desse amor que o apóstolo se refere ao dizer: “Mesmo que distribua
todos os meus bens aos pobres, mesmo que entregue o meu corpo às chamas” – isto
é, se cumprisse as maiores ações de amor com a máxima dedicação - “se me falta
a caridade (ou seja, o Amor de Cristo), nada lucro com isso” (!Cor 13,3). O
Amor psíquico ama o próximo em si mesmo, o amor espiritual ama o próximo por
Cristo. Portanto, o amor psíquico deseja o outro, a comunhão com ele, o seu
amor, mas não o serve, se aproxima dele com o intuito de dominá-lo ou para
obter alguma coisa para si. O amor psíquico não consegue amar o inimigo, ou
seja, aquele que se opõe com seriedade e tenacidade. Isso porque o amor
psíquico por natureza é amor que deseja obter alguma coisa para si. E quando
não puder mais obter o gozo esperado, este se transformará em ódio, desprezo e
calúnia.
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O AMOR ESPIRITUAL COMO FUNDAMENTO DA COMUNIDADE
Ao contrário do amor psíquico que ama a si
mesmo, o amor espiritual, vem de Cristo e serve só a Ele. Neste, Cristo está
entre eu e o outro. O amor espiritual não deseja nada para si, pensa somente em
servir, ama tanto o inimigo como o irmão. E o amor psíquico jamais compreenderá
o amor espiritual pois este nos vem do alto e assim é incompreensível para o
amor terreno.
Como conseqüência do amor espiritual eu
devo deixar livre o outro e não tentar influenciá-lo em suas decisões, e nem
dominá-lo com o meu amor. Sendo livre em relação a mim, o outro deve ser amado
assim como é realmente, ou seja, um homem pelo qual Cristo conquistou a
remissão dos pecados e para quem preparou a vida eterna. Isso é bem diferente
do que propõe o amor psíquico, que cria uma imagem própria do outro, daquilo
que ele é, e no qual deve se transformar. Ou seja, toma a vida do próximo em
suas próprias mãos e o forja de acordo com suas idéias. Já o amor espiritual
reconhece a verdadeira imagem do próximo em Jesus Cristo, e em
tudo que diz ou faz, o mantém sempre vinculado a Cristo. Não suscitará emoções
no seu íntimo para influenciá-lo pessoalmente, mas a partir do contato com a
Palavra de Deus sabe deixá-lo livre, para que Cristo possa agir nele. Assim,
ele falará mais com Cristo sobre o irmão do que com o irmão sobre Cristo.
O amor psíquico vive do desejo obscuro
incontrolado e incontrolável; o amor espiritual vive na clareza do serviço
ordenado através da verdade. O amor psíquico produz escravidão humana,
dependência, constrangimento; o amor espiritual cria a liberdade dos irmãos sob
a Palavra. O amor psíquico germina flores artificiais de estufa; o amor
espiritual produz os frutos que se desenvolvem sob o céu aberto de Deus, sob
chuva, tempestade e sol, sadios, como agrada a Deus.
Para toda forma de convivência cristã é
questão de vida ou morte suscitar a tempo a capacidade de discernir entre ideal
humano e realidade divina, entre comunhão espiritual e comunhão psíquica. É
questão de vida ou morte de uma comunidade cristã saber, quanto antes, julgar
este ponto. Todo princípio de seleção com conseqüente separação, que não é
determinado por um trabalho comum, é um verdadeiro perigo para uma comunidade
cristã. E devemos estar atentos, pois a exclusão da comunidade de quem é fraco
ou simples ou aparentemente inútil pode comportar na exclusão de Cristo, que
bate à nossa porta na pessoa do irmão pobre.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que a
mistura de ideal e realidade, do psíquico e espiritual seja mais provável em
uma comunhão, cuja estrutura tenha vários níveis, ou seja, onde o psíquico por
si já tenha uma importância central para a constituição da comunhão, como por
exemplo: no casamento, na família, no círculo de amigos, e que o espiritual se
associe aos fatores psíquicos-físicos como mais um fator. De acordo com essa
idéia, o perigo de confundir e misturar as duas esferas existiria somente nesse
tipo de comunhão, enquanto dificilmente poderia ocorrer numa comunhão puramente
espiritual. Pensando dessa forma, porém, cometemos um grande engano. De acordo
com a experiência, é fácil de constatar, que acontece exatamente o contrário.
Um casamento, uma família e uma amizade conhecem bem os limites das forças que
formam sua comunhão; se é sadia, sabe muito bem onde é o limite do psíquico e
onde começa o espiritual. Tem consciência do contraste entre comunhão
psíquica-física e comunhão espiritual. Ao contrário, exatamente onde se reúne
uma comunidade estritamente espiritual é que o perigo está muito mais perto, de
que elementos psíquicos sejam introduzidos e misturados nesta comunhão. Uma
vida em comunhão puramente espiritual não é apenas perigosa, como também um
fenômeno totalmente anormal.
Quando a vida cotidiana com todas as suas
exigências às pessoas não se projetar para dentro da comunhão espiritual, aí se
exige vigilância e sobriedade especiais. Por essa razão – a experiência o
mostra – é justamente em retiros de curta duração em que se propaga com maior
facilidade o elemento psíquico. Nada mais fácil do que provocar o êxtase da
comunhão em poucos dias de vida em comunhão, e nada mais funesto do que isso
para a comunhão de vida fraterna, sadia e sóbria no dia-a-dia.
Provavelmente não há pessoa cristã a quem
Deus não tenha presenteado, pelo menos uma vez em sua vida, com a sublime
experiência da comunhão cristã autêntica. Porém tal experiência, neste mundo,
não passa de um gracioso adicional ao pão nosso da cada dia de comunhão cristã.
Não temos direito a tais experiências, e não vivemos junto com outras pessoas
cristãs só por causa de tais experiências. Não é a experiência da fraternidade
cristã que nos mantém unidos, mas a fé firme segura na fraternidade. Que Deus
agiu em todos nós e quer continuar agindo é o que aceitamos, na fé, como o
maior presente de Deus.
“Como é bom, como é agradável habitar
todos juntos como irmãos!” (Salmo 133,1). Assim a Sagrada Escritura louva a
vida em comunhão sob a Palavra. Em uma interpretação correta da palavra “unidos”,
podemos agora dizer: “vivam unidos os irmãos em Cristo” , pois unicamente Jesus
Cristo é nossa união. “Ele é a nossa paz” (Efésios 2,14). Somente através dele
temos acesso uns aos outros, alegramo-nos e temos comunhão uns com os outros.
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A SOLIDÃO NA COMUNIDADE FRATERNA
“A ti convém o louvor em Sião, ó Deus”
(Salmo 65,2). Muitas pessoas procuram a comunhão por medo da solidão. Por não
saberem mais permanecer só, são impelidas a procurar a companhia de outras
pessoas. Também cristãos, que não conseguem lidar consigo mesmos, que fizeram
más experiências consigo mesmos, esperam encontrar ajuda na comunhão com outras
pessoas. Na maioria dos casos, porém, ficam frustrados e passam a acusar a
comunidade de coisas das quais eles próprios são os culpados. A comunidade
cristã não é um sanatório espiritual. Quem se associa à comunidade cristã por
está fugindo de si mesmo, abusa dela, usando-a para conversação e divertimento;
por mais espiritual que isso possa parecer. Na realidade, não busca a comunhão,
mas o êxtase que lhe permite esquecer, por alguns instantes, a solidão, e que,
por isso mesmo, causa o isolamento fatal da pessoa. O resultado de semelhantes
tentativas de cura são a perca de contato com a Palavra e de toda esperiência
autêntica, e por fim a resignação e a morte espiritual.
A pessoa que não suporta a solidão deve
tomar cuidado na comunidade. Ela só causará dano à si mesma e à comunidade.
Sozinho estavas diante de Deus quando ele te chamou; sozinho tiveste que seguir
o chamado; sozinho tiveste que tomar sobre ti a cruz, lutar e orar; sozinho
morrerás e prestarás contas a Deus. Não podes fugir de ti mesmo, pois o próprio
Deus te separou.
E
o contrário também é verdadeiro:
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QUEM NÃO SABE VIVER NA COMUNIDADE, CUIDE-SE QUANDO ESTIVER SÓ
É na
comunidade que foste chamado, e o chamado não se dirigiu a ti somente; levas a
tua cruz na comunidade dos eleitos, nela lutas e reza. Jamais estarás sozinho,
e inclusive na morte e no dia derradeiro serás apenas um membro da grande
comunidade de Jesus Cristo. Se desprezares a comunhão dos irmãos, rejeitas o
chamado de Jesus e tua vida solitária apenas te acarretará desgraça.
Nós reconhecemos: somente podemos ficar
sozinhos se estivermos inseridos na comunidade, e somente quem está sozinho
pode viver em
comunhão. Ambas as coisas caminham juntas. Somente na
comunidade aprendemos a estar sozinhos no sentido correto; e somente na solidão
aprendemos a viver de modo correto na comunidade. Uma coisa não precede a
outra: ambas começam juntas, isto é, com o chamado de Jesus Cristo.
Ambas tomadas isoladamente nos colocam
diante de profundos abismos e graves perigos. Quem deseja comunhão sem solidão,
precipita-se no abismo vazio das palavras e emoções; quem procura a solidão sem
a comunidade, perece no abismo da vaidade, do amor próprio e do desespero.
Quem não suporta a solidão que tome cuidado
na comunidade. Quem não está inserido na comunidade tema a solidão.
O dia em comunhão da comunidade cristã é
acompanhado do dia solitário de cada pessoa. E não pode ser diferente. Sem o
dia em solidão, o dia em comunhão é infrutífero tanto para a comunidade como
para a pessoa.
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NECESSIDADE E FORÇA DO SILÊNCIO
A característica da solidão é o silêncio,
como a palavra é a característica da comunhão. Entre silêncio e palavra existe
a mesma relação interior e a mesma distinção como entre solidão e comunhão. Uma
não pode existir sem a outra. A palavra correta nasce do silêncio, e o silêncio
correto nasce da palavra.
Silenciar não significa ficar mudos, como
falar não significa tagarelar. O permanecer mudos não cria a solidão e o
tagarelar não cria comunhão. “Silêncio é o excesso, a embriaguez e o sacrifício
da palavra. O mutismo, porém, é impuro, como coisa mutilada, não sacrificada...
Zacarias permaneceu mudo, em vez de permanecer em silêncio. Se tivesse
aceitado a revelação, talvez não tivesse saído mudo do templo, mas somente
silencioso” (Ernest Hello). A palavra que cria e reata a comunhão vem
acompanhada do silêncio. “Há tempo de calar e tempo de falar” (Ecl 3,7). Da
mesma forma como o cristão reserva algumas horas por dia para a palavra,
especialmente para a devoção e a oração em comum, também são necessários ao
longo do dia certos períodos de silêncio para a escuta da Palavra. São
privilegiados sobretudo os momentos antes e depois da escuta da Palavra. A
Palavra não atinge os homens barulhentos, mas aqueles que silenciam. O silêncio
no tempo é o sinal da santa presença de Deus na sua Palavra.
Existe uma indiferença, ou melhor, uma
rejeição, que vê no silêncio o desprezo da revelação de Deus na Palavra. Nesse
caso o silêncio é entendido erroneamente como ato solene, quase um místico
elevar-se além da Palavra. Não se reconhece mais no silêncio a sua essencial
relação com a Palavra,o humilde emudecer do indivíduo diante da palavra de
Deus. Silenciamos antes de escutar a Palavra, porque os nossos pensamentos já
estão orientados para a Palavra, como um menino silencia, quando entra no
quarto do pai. Silenciamos depois da escuta da Palavra, porque esta nos fala
ainda, vive e mora em
nós. Silenciamos de manhã cedo, porque Deus deve ter a
primeira palavra, e silenciamos antes de deitar-se, porque a última palavra
pertence a Deus. Silenciamos só por amor à Palavra, isto é, para honrá-la e
recebê-la como se deve. Silenciar, enfim, não quer dizer outra coisa que está à
espera da palavra de Deus e regressar abençoados por ela. Todos sabemos por
experiência própria que é necessário aprender a silenciar em um tempo em que
predomina o falar, e que silenciar de verdade, aquietar-se, frear a língua é
apenas conseqüência sóbria do silêncio espiritual.
Silenciar antes de ouvir a Palavra terá
reflexos para o dia todo. Se aprendermos a silenciar antes de ouvir a Palavra,
aprenderemos também a usar retamente do silêncio e da palavra ao longo do nosso
dia. Existe um silêncio proibido, presunçoso, arrogante, ofensivo. Daí já se
pode deduzir que não é deste silenciar que se trata. O silêncio do cristão é o
silêncio da escuta humilde,e que, por causa da humildade, pode ser interrompido
a qualquer momento. É o silêncio vinculado à Palavra. Era isso que Tomás Kempis
quis dizer ao afirmar: “ninguém fala com maior segurança do que aquele que
silencia freqüentemente”. O silêncio encerra um maravilhoso poder de
esclarecimento, purificação, de concentrar-se no essencial. Silenciar antes de
escutar a Palavra, nos leva a ouvir corretamente e nos capacita, assim, a dizer
a Palavra de Deus correta na hora certa. Muitas coisas inúteis são caladas, e
as coisas essenciais que verdadeiramente ajudam, podem ser expressar em poucas
palavras.
No caso em que uma comunidade vive num
espaço muito limitado, não havendo condições de proporcionar a cada um o
silêncio de que precisa, é necessário estabelecer períodos de silêncio
absoluto. Depois de um tempo de silêncio, encaramos o outro de maneira
diferente e nova.. Muitas comunidades só poderão garantir momentos de
recolhimento silencioso a seus membros se instituírem uma ordem rigorosa nesse
sentido, e assim poderão preservar a si mesmos de muitos danos.
Não queremos aqui somente discorrer sobre
os maravilhosos frutos que, na solidão e no silêncio, são concedidos ao
cristão. Correríamos o risco de enveredarmos por atalhos perigosos. Além disso,
teríamos que enumerar também algumas experiências obscuras que podem surgir do
silêncio. Ele pode ser um deserto terrível, com toda a sua desolação e pavor.
Pode também ser um paraíso da auto-ilusão, o que não é melhor. Portanto, seja
como for: que ninguém espere do silêncio outra coisa senão o confronto singelo
com a Palavra de Deus, por amor a qual se recolheu ao silêncio. Esse encontro,
porém, lhe será presenteado. O cristão não deve estabelecer nenhuma condição
quanto ao que pretende ou espera desse encontro. Deve aceitá-lo assim como ele
acontecer, e seu silêncio será ricamente recompensado.
*
O SERVIÇO FRATERNO
Na comunidade cristã, tudo depende de que
cada pessoa se transforme num elo indispensável de uma corrente. A corrente
será inquebrantável só quando o menor elo engrenar com firmeza também. Uma
comunidade que tolera a existência de membros que não são aproveitados, irá à
ruína através deles. Será, pois, conveniente que cada pessoa receba uma tarefa
determinada dentro da comunidade, para que, em momentos de dúvida, saiba que
também ela não é inútil e inaproveitável. Toda comunidade cristã deve saber que
não apenas os fracos necessitam dos fortes, mas que também os fortes necessitam
dos fracos. A exclusão dos fracos é a morte da comunhão... Quem, alguma vez em
sua vida, experimentou a misericórdia de Deus, dali por diante só desejará
servir. O soberbo trono de juiz já não o atrai. Prefere ficar embaixo, junto
com os miseráveis e os pequenos, pois foi lá que Deus o encontrou. “Tende a
mesma estima uns pelos outros, sem pretensões de grandeza, mas sentindo-vos
solidários com os mais humildes” (Romanos 12,16).
Quem quer aprender a servir precisa,
primeiramente, aprender a pensar pequeno de si mesmo. “Não tenha de si mesmo um
conceito mais elevado do que convém” (Romanos 12,3). “Conhecer bem a si mesmo e
aprender a ter-se em pequena conta, eis a suprema e mais útil tarefa. Não ter a
si mesmo em alto conceito e ter sempre a melhor opinião sobre o outro, isso é
grande sabedoria e perfeição” (Tomás Kempis). “Não vos deis ares de sábio”
(Romanos 12,16b). somente quem vive do perdão de seus pecados em Jesus Cristo saberá
pensar pequeno de si mesmo, saberá que sua sabedoria estava no fim quando Jesus
lhe perdoou, lembrar-se-á da sabedoria dos primeiros seres humanos que queriam
conhecer o bem e o mal, e que pereceram nessa sabedoria. ...Quem quiser servir
ao irmão na comunidade deverá descer às profundezas da humildade.
Como é realizado, pois, o autêntico serviço
fraternal na comunidade cristã? Em nossos dias, estamos levemente inclinados a
responder rapidamente que o único serviço real que podemos prestar ao próximo é
o serviço da Palavra de Deus. É bem verdade que nenhum serviço se compara a
esse e que todos os demais estão orientados para ele. Contudo, a comunidade
cristã não se constitui só de pregadores da Palavra. Tal abuso poderia se
tornar monstruoso se aqui fosse revelada uma série de outras coisas.
- O primeiro serviço que alguém deve ao
outro na comunidade é ouvi-lo. Assim como o amor a Deus começa quando ouvimos a
sua Palavra, assim também o amor ao irmão começa quando aprendemos a escutá-lo.
É prova de amor de Deus para conosco que não apenas nos dá a sua Palavra, mas
também nos empresta o seu ouvido. Portanto, é realizar a obra de Deus no irmão
quando aprendemos a ouvi-lo. Cristãos, e de modo especial os pregadores, sempre
acham que têm que “oferecer” algo quando se encontram na companhia de outras
pessoas, como se isso fosse seu único serviço. Esquecem que ouvir pode ser um
serviço maior do que falar. Muitas pessoas procuram um ouvido atento, e não o
encontram entre os cristãos, porque esses falam também quando deveriam ouvir.
Porém, quem não consegue mais ouvir o irmão, em breve também não conseguirá
mais ouvir a Deus. Estará sempre falando, também perante Deus. Aqui começa a
morte da vida espiritual, e no fim restará somente o palavreado piedoso, a
condescendência clericalesca que sufoca em palavras piedosas. Quem não sabe
ouvir por longo tempo e com paciência, jamais se comunicará de fato com seu
interlocutor e nunca o entenderá, e por fim nem sequer se dará conta disso.
Quem considera seu tempo valioso demais para gastá-lo em ouvir, nunca terá
realmente tempo nem para Deus nem para o próximo. Terá tempo só para si mesmo,
para suas próprias palavras e planos.
- O segundo serviço que devemos prestar uns
aos outros numa comunidade cristã é colocarmo-nos à disposição para ajudar de
maneira prática. Pensa-se, a princípio, na ajuda simples em coisas pequenas e
externas. Existem muitas delas em toda a vida em comunidade. Não há
serviço que seja demasiadamente modesto para alguém. Quem alega não ter tempo a
perder com a ajuda externa em coisas pequenas, apenas revela que, na maioria
das vezes, dá importância excessiva para seu próprio trabalho. Temos que nos
dispor e permitir que Deus nos interrompa. Constantemente, a cada dia, Deus
interferirá em nossos caminhos e planos, colocando à nossa frente pessoas com
suas exigências e solicitações. Podemos passar por elas, ocupados com os
assuntos importantes do dia, à semelhança do sacerdote na parábola do bom
samaritano, quem sabe lendo a Bíblia. Quando procedemos dessa forma, passamos
ao largo do sinal da cruz erigido de maneira visível em nosso caminho e que
quer nos mostrar que é o caminho de Deus que interessa e não o nosso.
É um fato singular que justamente cristãos
e teólogos muitas vezes consideram seu trabalho tão importante e urgente que
não permitem que nada no mundo os interrompa. Pensam que assim prestam um
serviço a Deus e, na realidade, desprezam o “caminho tortuoso e, não obstante,
reto de Deus” (Gottfried Arnold). Não querem saber do caminho humano
constantemente entrecruzado! No entanto, faz parte da escola da humildade não
poupar nossas mãos quando se trata de prestar serviço, e que não assumamos o
poder sobre nosso tempo, mas permitamos que Deus o preencha. No convento, o
voto de obediência prestado ao abade priva o monge de dispor de seu tempo. Na
vida em comunhão evangélica, o voto monástico é substituído pelo serviço
espontâneo ao irmão. Somente quando não se poupam as mãos no serviço de amor e
de misericórdia na disposição diária de ajudar, pode a boca anunciar com
alegria e credibilidade a Palavra do amor e da misericórdia de Deus.
Em terceiro lugar mencionamos o serviço de
carregar o outro. “Carregai o peso uns dos outros, e assim cumprireis a Lei de
Cristo” (Gálatas 6,2). Portanto, a lei de Cristo é carregar pesos. Carregar é
sofrer. O irmão é um fardo para o cristão, justamente para o cristão. Para o
pagão, o outro nem chega a se tornar um fardo. Ele evita qualquer encargo por
causa dele, porém o cristão tem que carregar o fardo do irmão. Tem que suportar
o irmão. O outro só será irmão quando se tornar um fardo, e só então deixará de
ser objeto dominado. Tão pesado foi o fardo da humanidade ao próprio Deus que
sob seu peso acabou na cruz. No corpo de Jesus Cristo, Deus de fato foi
afligido pela humanidade. Carregou-a, porém, como a mãe leva uma criança, como
o pastor põe no ombro a ovelha perdida. Deus aceitou os seres humanos e eles o
esmagaram. Deus, porém, ficou com eles, e eles com Deus. Suportando as pessoas,
Deus manteve comunhão com elas. Essa é a lei de Cristo cumprida na cruz. Os
cristãos tomam parte nessa lei. Devem suportar e carregar o irmão e, o que é
mais importante, agora podem suportá-lo sob a lei de Cristo cumprida.
Antes de mais nada é a liberdade do outro,
que se torna um fardo para o cristão. Ela atenta contra a sua autonomia, e
mesmo assim ele precisa respeitá-la. Ele poderia livrar-se desse fardo, não o
libertando, ao contrário, violentando-o, embutindo nele a sua imagem. Se,
porém, permite que Deus crie nele sua imagem, então reconhece sua liberdade e
passa a carregar ele mesmo o fardo de tal liberdade da outra criatura. A
liberdade alheia inclui tudo o que entendemos sob natureza, individualidade,
predisposição, inclusive as fraquezas e as esquisitices que tanto exigem nossa
paciência, tudo o que provoca o grande número de atritos, diferenças e
conflitos entre mim e o irmão. Levar o fardo do outro significa aqui suportar a
realidade do outro em sua condição de criatura, aceitá-la, e. sofrendo-a,
chegar ao ponto de alegrar-se com ela. ...Decerto é sobre esse suportar o outro
em sua liberdade que fala a Escritura ao admoestar: “Suportando-vos uns aos
outros” (Colossenses 3,13); “ Com toda humildade e mansidão, com longanimidade,
suportando-vos uns aos outros com amor, procurando conservar a unidade do
Espírito pelo vínculo da paz” (Efésios 4,2).
À liberdade do outro junta-se o abuso dela
no pecado que, no irmão, se torna um fardo para o cristão. Suportar o pecado do
irmão é mais difícil que suportar a sua liberdade, pois com o pecado é rompida
a comunhão com Deus e com os irmãos. É nesse ponto que o cristão sofre o
rompimento da comunhão no outro, estabelecida em Jesus Cristo. Por
outro lado, é nesse suportar que também se revela toda a graça de Deus. Não
precisar desprezar o pecador, mas poder suportá-lo significa não precisar dá-lo
por perdido, mas poder aceitá-lo e manter com ele a comunhão por meio do perdão
dos pecados. “Irmãos, caso alguém seja apanhado em falta, vós, os espirituais,
corrigi esse tal com espírito de mansidão” (Gálatas 6,1). Do mesmo modo como
Cristo nos suportou e aceitou como pecadores, assim também nós podemos suportar
e aceitar pecadores n comunhão de Cristo, através do perdão dos pecados.
Podemos suportar os pecados do irmão, não precisamos julgar. Para o cristão
isto é graça; pois qual o pecado que ocorre na comunidade que não obriga o
cristão a examinar e acusar a si mesmo por causa de sua própria infidelidade na
oração e intercessão, da falta de serviço fraternal, de admoestação entre
irmãos e de consolação, incluindo seu pecado pessoal, sua indisciplina com a
qual prejudicou a si, à comunidade e aos irmãos? Porque todo o pecado
individual pesa sobre a comunidade toda e a acusa, por isso a comunidade se
regozija em todo sofrimento que lhe é causado pelo irmão, e sob todo fardo que
por causa disso cai sobre ela, por ser considerada digna de suportar pecado e
de perdoá-lo.
Perdoar é um serviço que nós prestamos
mutuamente todos os dias. Acontece sem palavras na intercessão de uns pelos
outros; e todo membro da comunidade que não se cansa desse serviço, pode ter
certeza de que também a ele os irmãos prestarão esse serviço. Quem carrega
sabe-se carregado, e somente com essa força poderá carregar.
Onde estes três serviços, ouvir, servir,
suportar, são realizados de forma fiel, lá pode acontecer também o serviço mais
elevado e sublime: servir com a Palavra de Deus.
Pe.Emílio
Carlos+
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