04º Domingo da Quaresma - Ano C
Um amor que respeita absolutamente as decisões .
A liturgia de hoje convida-nos à
descoberta do Deus do amor, empenhado em conduzir-nos a uma vida de comunhão
com Ele.
O Evangelho apresenta-nos o
Deus/Pai que ama de forma gratuita, com um amor fiel e eterno, apesar
das escolhas erradas e da irresponsabilidade do filho rebelde. E esse amor lá
está, sempre à espera, sem condições, para acolher e abraçar o filho que decide
voltar. É um amor entendido na linha da misericórdia e não na linha da justiça
dos homens.
A segunda leitura convida-nos
a acolher a oferta de amor que Deus nos faz através de Jesus. Só reconciliados
com Deus e com os irmãos podemos ser criaturas novas, em quem se manifesta o
homem Novo.
A primeira leitura, a
propósito da circuncisão dos israelitas, convida-nos à conversão, princípio de
vida nova na terra da felicidade, da liberdade e da paz. Essa vida nova do
homem renovado é um dom do Deus que nos ama e que nos convoca para a
felicidade.
LEITURA I – Jos 5,9a.10-12
O livro de Josué narra a entrada
e a instalação do Povo de Deus na Terra Prometida. Recorrendo ao gênero épico
(relatos enfáticos, exagerados, maravilhosos) e apresentando idealmente a
tomada de posse da Terra como um passeio triunfal do Povo com Deus à frente, os
autores deuteronomistas vão sublinhar a ação maravilhosa de Jahwéh que, através
do seu poder, cumpre as promessas feitas aos antepassados e entrega a Terra
Prometida ao seu Povo. Não é um livro muito preciso do ponto de vista
histórico; mas é uma extraordinária catequese sobre o amor de Deus ao seu Povo.
No texto que a liturgia de hoje
nos propõe, os israelitas, vindos do deserto, acabaram de atravessar o rio
Jordão. Estão em Guilgal, um lugar que não foi ainda localizado, mas que devia
situar-se não longe do Jordão, a nordeste de Jericó. Aproxima-se a celebração
da primeira Páscoa na Terra Prometida e só os circuncidados podem celebrar a
Páscoa (cf. Ex 12,44.48); por isso, Josué faz o Povo passar pelo rito da
circuncisão, sinal da aliança de Deus com Abraão e, portanto, sinal de pertença
ao Povo eleito de Jahwéh (cf. Gn 17,10-11). É neste contexto que aparecem as
palavras de Deus a Josué referidas na primeira leitura.
O rito da circuncisão, destinado
a todos “os que nasceram no deserto, durante a viagem, depois do êxodo” (Jos
5,5), terminou e todos fazem, agora, parte do Povo de Deus. É um Povo renovado,
que dessa forma reafirmou a sua ligação ao Deus da aliança.
O rito levado a cabo por Josué
faz-nos pensar numa espécie de “conversão” coletiva, que põe um ponto final no
“opróbrio do Egito” e assinala um “tempo novo” para o Povo de Deus.
A questão central deste texto
gira à volta da vida nova que começa para o Povo de Deus. A Páscoa, celebrada
nessa terra livre, marca o início dessa nova etapa. Israel é, agora, um Povo
novo, o Povo eleito, comprometido com Jahwéh, definitivamente livre da
escravidão, que inicia uma vida nova nessa Terra de Deus onde “corre o leite e
o mel”.
ATUALIZAÇÃO
Refletir a partir das seguintes
questões:
• Somos convidados, neste tempo
de Quaresma, a uma experiência semelhante à que fez o Povo de Deus de que fala
a primeira leitura: é preciso pôr fim à etapa da escravidão e do deserto, a fim
de passar, decisivamente, à vida nova, à vida da liberdade e da paz. E a
circuncisão? A circuncisão física é um rito externo, que nada significa… O que
é preciso é aquilo a que os profetas chamaram a “circuncisão do coração” (Dt
10,16; Jr 4,4; cf. Jr 9,25): trata-se da adesão plena da pessoa a Deus e às
suas propostas; trata-se de uma verdadeira transformação interior que se chama
“conversão”. O que é que é preciso “cortar” na minha vida ou na vida da minha
comunidade cristã (ou religiosa) para que se dê início a essa nova etapa? O que
é que ainda nos impede de celebrar um verdadeiro compromisso com o nosso Deus?
• A partir dessa “circuncisão do
coração”, podemos celebrar com verdade a vida nova, a ressurreição. A
celebração da Páscoa será, dessa forma, o anúncio e a preparação dessa Páscoa
definitiva (a Páscoa escatológica), que nos trará a vida plena.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33 (34)
Refrão: Saboreai e vede como o
Senhor é bom.
A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na
minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.
Enaltecei comigo ao Senhor
e exaltemos juntos o seu nome.
Procurei o Senhor e Ele
atendeu-me,
libertou-me de toda a ansiedade.
Voltai-vos para Ele e ficareis
radiantes,
o vosso rosto não se cobrirá de
vergonha.
Este pobre clamou e o Senhor o
ouviu,
salvou-o de todas as angústias.
LEITURA II – 2 Cor 5,17-21
Por volta de 56/57, chegam a
Corinto missionários itinerantes que se apresentam como apóstolos e criticam Paulo,
lançando a confusão. Provavelmente, trata-se ainda desses “judaizantes” que
queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei de Moisés (embora
também possam ser cristãos que condenam a severidade de Paulo e que apoiam o
laxismo da vida dos coríntios). De qualquer forma, Paulo é informado de que a
validade do seu ministério está a ser desafiada e dirige-se a toda a pressa
para Corinto, disposto a enfrentar o problema. O confronto é violento e Paulo é
gravemente injuriado por um membro da comunidade (cf. 2 Cor 2,5-11;7,11). Na
sequência, Paulo abandona Corinto e parte para Éfeso. Passado algum tempo,
Paulo envia Tito a Corinto, a fim de tentar a reconciliação. Quando Tito
regressa, traz notícias animadoras: o diferendo foi ultrapassado e os coríntios
estão, outra vez, em comunhão com Paulo. É nessa altura que Paulo, aliviado e
com o coração em paz, escreve esta Carta aos Coríntios, fazendo uma tranquila
apologia do seu apostolado.
O texto que nos é proposto está
incluído na primeira parte da carta (2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo analisa as
suas relações com os cristãos de Corinto. Neste texto em concreto, transparece
essa necessidade premente de reconciliação que vai no coração de Paulo.
A palavra-chave desta leitura é
“reconciliação” (das dez vezes que Paulo utiliza o verbo “reconciliar” e o
substantivo “reconciliação”, cinco correspondem a esta passagem). Transparece,
portanto, aqui, a angústia de Paulo pelo “distanciamento” dos seus queridos
filhos de Corinto e a sua vontade de refazer a comunhão com eles.
Mas, para além da reconciliação
entre os coríntios e Paulo, é necessária a reconciliação entre os coríntios e
Deus. Daí a ardente chamada do apóstolo a que os coríntios se deixem
reconciliar com Deus. “Em Cristo”, Deus ofereceu aos homens a reconciliação;
aderir à proposta de Cristo é acolher a oferta de reconciliação que Deus fez.
Ser cristão implica, portanto, estar reconciliado com Deus (isto é, aceitar
viver com Ele uma relação autêntica de comunhão, de intimidade, de amor) e com
os outros homens. Isto significa, na prática, ser uma criatura nova, um homem
renovado.
É desta reconciliação que Paulo
se fez “embaixador” e arauto; o ministério de Paulo passa por pedir aos
coríntios que se reconciliem com Deus e que nasçam, assim, para a vida nova de
Deus. É evidente que esta chamada não é só válida para os cristãos de Corinto,
mas serve para os cristãos de todos os tempos: os homens têm necessidade de
viver em paz uns com os outros; mas dificilmente o conseguirão, se não viverem
em paz com Deus.
O texto termina (vers. 21) com
uma referência à eficácia reconciliadora da morte de Cristo: pela cruz, Deus
arrancou-nos do domínio do pecado e transformou-nos em homens novos. Que quer
isto dizer? Ao ser morto na cruz pela Lei, Cristo mostrou como a Lei só produz
morte, desqualificou-a e afastou-nos dela, permitindo-nos o verdadeiro encontro
com Deus; e pela cruz, Jesus ensinou-nos o amor total, o amor que se dá,
libertando-nos do egoísmo que impede a reconciliação com Deus e com os irmãos.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e atualizar a
Palavra, considerar as seguintes questões:
• Ser cristão é, antes de mais,
aceitar essa proposta de reconciliação que Deus nos faz em Jesus. Significa
que Deus, apesar das nossas infidelidades, continua a propor-nos um projeto de
comunhão e de amor. Como é que eu respondo a essa oferta de Deus: com uma vida
de obediência aos seus projetos e de entrega confiada nas suas mãos, ou com
egoísmo, auto-suficiência e fechamento ao Deus da comunhão?
• É “em Cristo” – e, de forma
privilegiada, na cruz de Cristo – que somos reconciliados com Deus. Na cruz,
Cristo ensinou-nos a obediência total ao Pai, a entrega confiada aos projetos
do Pai e o amor total aos homens nossos irmãos. Dessa lição decisiva deve
nascer o Homem Novo, o homem que vive na obediência aos projectos de Deus e no
amor aos outros. É desta forma que eu procuro viver?
• A comunhão com Deus exige a
reconciliação com os outros meus irmãos. Não é uma conclusão a que Paulo dê um
relevo explícito neste texto, mas é uma perspectiva que está implícita em todo
o discurso. Como me situo face a esta obrigatoriedade (para o cristão) de me
reconciliar com os que me rodeiam?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Lc
15,18
Refrão 1: Louvor e glória a Vós,
Jesus Cristo Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus
Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor,
Filho do Deus vivo.
Refrão 4: Louvor a Vós, Jesus
Cristo, rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis
são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e
o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Vou partir, vou ter com meu pai e
dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra
ti.
EVANGELHO – Lc 15,1-3.11-32
Continuamos no “caminho de
Jerusalém”, esse caminho espiritual que Jesus percorre com os discípulos,
preparando-os para serem as testemunhas do Reino diante de todos os homens.
Todo o capítulo 15 é dedicado ao
ensinamento sobre a misericórdia: em três parábolas, Lucas apresenta uma
catequese sobre a bondade e o amor de um Deus que quer estender a mão a todos
os que a teologia oficial excluía e marginalizava. O ponto de partida é a
murmuração dos fariseus e dos escribas que, diante da avalanche de publicanos e
pecadores que escutam Jesus, comentam: “este homem acolhe os pecadores e come
com eles”. Acolher os publicanos e pecadores é algo de escandaloso, na
perspectiva dos fariseus; no entanto, comer com eles, estabelecer laços de
familiaridade e de irmandade com eles à volta da mesa, é algo de inaudito… A
conclusão dos fariseus é óbvia: Jesus não pode vir de Deus pois, na perspectiva
da doutrina tradicional, os pecadores não podem aproximar-se de Deus.
É neste contexto que Jesus
apresenta a “parábola do filho pródigo”, uma parábola que é exclusiva de Lucas
(nem Marcos, nem Mateus, nem João a referem).
A parábola apresenta-nos três
personagens de referência: o pai, o filho mais novo e o filho mais velho.
Detenhamo-nos um pouco nestas figuras.
A personagem central é o pai.
Trata-se de uma figura excepcional, que conjuga o respeito pelas decisões e
pela liberdade dos filhos, com um amor gratuito e sem limites. Esse amor
manifesta-se na emoção com que abraça o filho que volta, mesmo sem saber se
esse filho mudou a sua atitude de orgulho e de auto-suficiência em relação ao
pai e à casa. Trata-se de um amor que permaneceu inalterado, apesar da rebeldia
do filho; trata-se de um pai que continuou a amar, apesar da ausência e da
infidelidade do filho. A consequência do amor do pai simboliza-se no “anel” que
é símbolo da autoridade (cf. Gn 41,42; Est 3,10; 8,2) e nas sandálias, que é o
calçado do homem livre.
Depois, vem o filho mais novo. É
um filho ingrato, insolente e obstinado, que exige do pai muito mais do que
aquilo a que tem direito (a lei judaica previa que o filho mais novo recebesse
apenas um terço da fortuna do pai – cf. Dt 21,15-17; mas, ainda que a divisão
das propriedades pudesse fazer-se em vida do pai, os filhos não acediam à sua
posse senão depois da morte deste – cf. Sir 33,20-24). Além disso, abandona a
casa e o amor do pai e dissipa os bens que o pai colocou à sua disposição. É
uma imagem de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de frivolidade, de
total irresponsabilidade. Acaba, no entanto, por perceber o vazio, o sem
sentido, o desespero dessa vida de egoísmo e de auto-suficiência e por ter a
coragem de voltar ao encontro do amor do pai.
Finalmente, temos o filho mais
velho. É o filho “certinho”, que sempre fez o que o pai mandou, que cumpriu
todas as regras e que nunca pensou em deixar esse espaço cômodo e acolhedor que
é a casa do pai. No entanto, a sua lógica é a lógica da “justiça” e não a
lógica da “misericórdia”. Ele acha que tem créditos superiores aos do irmão e
não compreende nem aceita que o pai queira exercer o seu direito à misericórdia
e acolha, feliz, o filho rebelde.
É a imagem desses fariseus e escribas que
interpelaram Jesus: porque cumpriam à risca as exigências da Lei, desprezavam
os pecadores e achavam que essa devia ser também a lógica de Deus.
A “parábola do pai bondoso e
misericordioso” pretende apresentar-nos a lógica de Deus.
Deus é o Pai bondoso,
que respeita absolutamente a liberdade e as decisões dos seus filhos, mesmo que
eles usem essa liberdade para procurar a felicidade em caminhos errados; e,
aconteça o que acontecer, continua a amar e a esperar ansiosamente o regresso
dos filhos rebeldes. Quando os reencontra, acolhe-os com amor e reintegra-os na
sua família.
Essa é a alegria de Deus. É esse Deus de amor, de bondade, de
misericórdia, que se alegra quando o filho regressa que nós, às vezes filhos
rebeldes, temos a certeza de encontrar quando voltamos.
A parábola pretende ser também um
convite a deixarmo-nos arrastar por esta dinâmica de amor no julgamento que
fazemos dos nossos irmãos. Mais do que pela “justiça”, que nos deixemos guiar
pela misericórdia, na linha de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Ter em conta os seguintes
elementos, para reflexão:
• A primeira chamada de atenção
vai para o amor do Pai: um amor que respeita absolutamente as decisões – mesmo
absurdas – desse filho que abandona a casa paterna; um amor que está sempre lá,
fiel e inquebrável, preparado para abraçar o filho que volta. Repare-se: mesmo
antes de o filho falar e mostrar o seu arrependimento, o Pai manifesta-lhe o
seu amor; é um amor que precede a conversão e que se manifesta antes da
conversão.
É num Deus que nos ama desta forma que somos chamados a confiar
neste tempo de “metanoia”.
• Esta parábola alerta-nos também
para o sem sentido e a frustração de uma vida vivida longe do amor do “Pai”, no
egoísmo, no materialismo, na auto-suficiência. Convida-nos a reconhecer que não
é nos bens deste mundo, mas é na comunhão com o “Pai” que encontramos a
felicidade, a serenidade e a paz.
• Esta parábola convida-nos,
finalmente, a não nos deixarmos dominar pela lógica do que é “justo” aos olhos
do mundo, mas pela “justiça de Deus”, que é misericórdia, compreensão,
tolerância, amor. Com que critérios julgamos os nossos irmãos: com os critérios
da justiça do mundo, ou com os critérios da misericórdia de Deus? A nossa
comunidade é, verdadeiramente, o espaço onde se manifesta a misericórdia de
Deus?
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