A verdadeira ascese
A verdadeira ascese não olha
os atos separadamente em si, mas concentra a atenção no dono dos atos. O que
interessa é a atitude interna do dono, o íntimo, o amor pessoal, calcado em
valores absolutos e imperecíveis. O amor
engrandece as obras mínimas, dá-lhes a cor sempre nova e rejuvenescida. Ama et
fac, quod vis, dizia santo Agostinho. (Ama e faze o que quiseres!).
Os atos mais heroicos e inexplicáveis
brotam do íntimo da alma, como os galhos duma árvore recebem a seiva da raiz
invisível. O mais íntimo em cada homem é a sua personalidade, o seu “eu” inconfundível,
o ponto de partida de todo o ato humano. Se fizermos a anatomia dos santos,
devemos atingir este íntimo, donde brotaram tão espontaneamente estas surpresas
de heroismos.
Se ouvirmos, que o padre irlandês
Guilherme Doyle, capelão militar na primeira guerra mundial se flagelava com
giletes, devemos olhar o dono desta santa loucura: era uma doação total a
Cristo.
Se o padre francês Paulo Gignac nunca
se apoiava no espaldar da cadeira, devemos examinar o que se passava no seu interior,
todo abrasado pela pessoa de Cristo. Este fogo interno é que decide, sendo as
ações apenas uma manifestação da realidade interior. A tentação naturalista
costuma apoiar-se naquilo que se vê e afeta os seus sentidos, e esquece-se da
fonte. Se alguém aprecia somente a lâmpada riquíssima à noite, jamais lhe virá
à mente, que dela mesma não vem a luz, mas do dínamo talvez escondido nos
porões duma usina distante.
Deus não precisa de nossas façanhas,
pois basta-se a Si mesmo. O que espera de nós, não são parcelas fugidias,
estes atos que sobrevalorizamos, mas quer a nós mesmos, total, integralmente, e
talvez esmagados diante Dêle.
Analizando os santos, deduzimos que não
são as chicotadas e azorragues, que graduam o nimbo de santidade, mas é o amor,
que engrandece e dá a cor autêntica aos atos externos. São Francisco Xavier
batizava milhares de pagãos. A jovem carmelita
Teresinha do Menino Jesus subia esfalfada e doente os degraus do convento,
oferecendo-os por um missionário longínquo . Devemos olhar o que passa no
íntimo de cada um destes santos. Teresinha emoldurava cada gesto com tal
veemência de amor, que o engrandecia. O amor não estaciona nos atos, atinge a
pessoa, e pela pessoa os atos mínimos. Como a mãe, não ama só o filho quando
trabalha e estuda, mas também quando come e dorme, porque o amor maternal
atinge toda a criança e não só os seus atos.
O amor dos santos foi inventivo, como
também costuma ser entre os homens: surpreende e justamente nas coisas
mínimas. O namorado não entrega um cheque de um milhão para a sua amada, mas
colhe talvez uma violeta do campo e a oferta, com um sorriso inefável, tornando
esta simples flor um gesto insubstituível.
Se um santo vergastou a sua carne
com flagelos e cilícios, e o outro sentou-se aos pés de Jesus, como a cândida
Maria, saibamos distinguir entre as manifestações que são visíveis, e aquilo
que é invisível e essencial, a saber, a fonte destas manifestações às vezes
inexplicáveis, que é o AMOR...
O que importa é reconhecer, na
vida dos santos, as falhas, historicamente comprovadas, o que não diminui a
santidade, mas até lhes emprestam um tom atraente e humano.
Entre as diversas heresias, na apreciação da
santidade, ocupa um lugar de destaque, na mentalidade popular, a ascese do
jejum. Realmente, Nosso Senhor deu a entender, que o jejum é um dos recursos mais
comoventes, para conseguir a atenção do céu. Afirmou, que certa espécie de
demônios só se expulsam por meio da oração e do jejum.
Colocar, porém, a essência da santidade
nas exageradas penitencias e flagelos, ou nas ininterruptas orações labiais,
na própria impecabilidade, ou mesmo no jejum e abstenção dos alimentos, é verdadeira
heresia.
O homem é passageiro e Deus eterno. O
homem veio de Deus e deve voltar a Deus. A vida do homem é uma viagem, cuja
meta é a eternidade. No meio desta viagem, ele topa com as criaturas, que são
um reflexo, um vestígio, uma sombra, um gesto, uma mensagem do Criador.
O
pecado não consiste no sentimento da vergonha, mas na inversão de valores
objetivos. Pecado é avaliar erradamente os objetos e as criaturas. É erro de
cálculo. O maior erro é de chamar algo de eterno, sendo passageiro, fazer nele
um ponto final, sendo apenas flecha que mostra o caminho e a meta a ser
atingida.
Há só um ponto de referência
em nossa vida: Deus, o autor da vida. Tudo o mais que nos cerca, deve ser como
flecha na estrada da vida. Deve ser como o riacho, que mostra a fonte donde vem e o mar, para onde se lança. Deve ser como
o raio do sol, o vestígio do pé divino, como o sorriso de sua bôca. Descobrir
em tôdas as criaturas a mão criadora de Deus, é um belo trabalho, que pode
enriquecer a vida, a ponto de ela descobrir em cada gesto e em cada
acontecimento o autor do Universo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário