23º Domingo do Tempo Comum - Ano B
“Tudo o que Ele faz é admirável”
A liturgia do 23º Domingo do
Tempo Comum fala-nos de um Deus comprometido com a vida e a felicidade do
homem, continuamente apostado em renovar, em transformar, em recriar o homem,
de modo a fazê-lo atingir a vida plena do Homem Novo.
Na primeira leitura, um profeta
da época do exílio na Babilónia garante aos exilados, afogados na dor e no
desespero, que Jahwéh está prestes a vir ao encontro do seu Povo para o
libertar e para o conduzir à sua terra. Nas imagens dos cegos que voltam a
contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como
veados e dos mudos a cantar com alegria, o profeta representa essa vida nova,
excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer a Judá.
No Evangelho, Jesus, cumprindo o
mandato que o Pai Lhe confiou, abre os ouvidos e solta a língua de um
surdo-mudo… No gesto de Jesus, revela-se esse Deus que não Se conforma quando o
homem se fecha no egoísmo e na autossuficiência, rejeitando o amor, a partilha,
a comunhão. O encontro com Cristo leva o homem a sair do seu isolamento e a
estabelecer laços familiares com Deus e com todos os irmãos, sem exceção.
A segunda leitura dirige-se
àqueles que acolheram a proposta de Jesus e se comprometeram a segui-l’O no
caminho do amor, da partilha, da doação. Convida-os a não discriminar ou
marginalizar qualquer irmão e a acolher com especial bondade os pequenos e os
pobres.
LEITURA I – Is 35,4-7a
O Povo de Deus, exilado na
Babilónia, está paralisado pelo desespero. Mostra-se abatido e incapaz de sair,
por si só, da sua triste situação. Não tem perspectivas de futuro e não vê
qualquer razão para ter esperança.
O profeta dirige-se então aos
exilados e anuncia-lhes a iminência da libertação. O tom geral é de alegria –
uma alegria que envolverá a natureza e as pessoas, porque o Senhor Se apresta
para salvar Judá do cativeiro e para abrir uma estrada no deserto, a fim de que
o seu Povo possa retornar em triunfo a Jerusalém.
Apesar das aparências, Deus não
esqueceu o seu Povo. Judá deve recobrar ânimo e preparar-se para acolher o
Senhor. O próprio Jahwéh irá realizar a libertação; Ele fará justiça e
recompensará o seu Povo por todos os sofrimentos suportados no tempo do
cativeiro (vers. 4).
O resultado da iniciativa
salvadora e libertadora de Deus traduzir-se-á no despertar do Povo, paralisado
e desanimado, para uma vida nova. O encontro com o Deus libertador e salvador
transformará o Povo, dar-lhe-á de novo a liberdade, a alegria, a coragem para
enfrentar o caminho, a vida em abundância. Nas imagens dos cegos que voltam a
contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como
veados e dos mudos a cantar com alegria (vers. 5-6), o profeta representa essa
vida nova, excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer a Judá.
Por outro lado, o dom de Deus
manifestar-se-á na própria natureza. O deserto desolado e estéril, que os
exilados terão de atravessar na caminhada de regresso à sua terra,
transformar-se-á numa terra fértil, com água em abundância e onde o Povo não
terá dificuldade em saciar a sua fome e a sua sede. A abundância de água no
deserto, de que o profeta fala, é outra imagem para mostrar a vontade de Deus
em cumular o seu Povo de vida plena e abundante.
A marcha do Povo da terra da
escravidão para a terra da liberdade será um novo êxodo, onde se repetirão as
maravilhas operadas pelo Deus libertador aquando do primeiro êxodo; no entanto,
este segundo êxodo será ainda mais grandioso, quanto à manifestação e à acção
de Deus. Será uma peregrinação festiva, uma procissão solene, feita na alegria
e na festa.
Qual o papel do Povo em tudo
isto? Judá deve recobrar ânimo e acolher, com fé, com coragem, com confiança,
os dons de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Para os otimistas, o nosso
tempo é um tempo de grandes realizações, de grandes descobertas, em que se abre
todo um mundo de possibilidades ao homem; para os pessimistas, o nosso tempo é
um tempo de sobreaquecimento do planeta, de subida do nível do mar, de
destruição da camada do ozono, de eliminação das florestas, de risco de
holocausto nuclear… Para uns e para outros, é um tempo de desafios, de
interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este
mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos negros do desespero?
• Os crentes não podem esquecer
que “Deus está aí”: a sua intervenção faz com que o deserto se revista de vida
e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança. Aos cegos, que
caminham pela vida às apalpadelas e que têm dificuldade em descobrir o rumo e o
sentido para a sua existência, Deus irá oferecer a luz que lhes indica o
caminho seguro para a realização e para a felicidade; aos surdos, fechados no
seu egoísmo e na sua auto-suficiência, Deus irá desimpedir os ouvidos para que
escutem os gritos de sofrimento dos pobres e para que se comprometam na
transformação do mundo; aos coxos, que não conseguem caminhar livremente e
estão presos por cadeias de opressão, de injustiça, de pecado, Deus vai
oferecer a liberdade; aos mudos, cuja língua está paralisada pelo medo, pelo
comodismo, pela preguiça, pela passividade, Deus vai convocá-los e enviá-los
como mensageiros da justiça, do amor e da paz. É com a certeza da presença
salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará
abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela
vida e a enfrentar a história.
• O profeta é o homem que rema
contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o
profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do
horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos
a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o
imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. É este
testemunho de esperança que procuramos dar?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão 1: Ó minha alma, louva o
Senhor.
O Senhor faz justiça aos
oprimidos, dá pão aos que têm fome e a liberdade aos cativos.
O Senhor ilumina os olhos dos
cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos.
O Senhor protege os peregrinos, ampara
o órfão e a viúva e entrava o caminho aos pecadores.
O Senhor reina eternamente; o teu
Deus, ó Sião, é rei por todas as gerações.
LEITURA II – Tiago 2,1-5
Jesus não fez qualquer acepção de
pessoas, mas a todos acolheu e a todos amou igualmente (mesmo os pobres, os
“últimos”, os marginalizados, os pecadores, os doentes). Quem aderiu a Jesus
Cristo e procura, com coerência, segui-l’O, tem de assumir os mesmos valores; por
isso, não pode marginalizar ninguém ou aceitar qualquer sistema que crie
discriminação (vers. 1).
Depois da afirmação geral, o
autor da carta apresenta exemplos concretos: a comunidade cristã não pode
acolher e tratar de forma diferente o rico e o pobre, aquele que se apresenta
bem vestido e aquele que se apresenta mal vestido, aquele que é conhecido e
famoso e aquele que é humilde e passa despercebido (vers. 2-3). Na comunidade
cristã, todos são iguais e dignos de consideração e de respeito, ainda que desempenhem
funções diferentes e serviços diversos. Para os seguidores de Jesus, a acepção
de pessoas por razões ligadas à riqueza, ao poder, à fama, à posição social, é
um esquema perverso, absolutamente incompatível com a fé em Cristo (vers. 4).
O nosso texto termina com uma
pergunta retórica que parece afirmar a preferência de Deus pelos “pobres deste
mundo”, escolhidos “pare serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele
prometeu àqueles que O amam” (vers. 5). Os “pobres deste mundo” são, mais do
que uma categoria sociológica, uma categoria religiosa… A expressão designa, na
linguagem bíblica, os humildes, os débeis, os pacíficos, aqueles que se
apresentam diante de Deus numa atitude de simplicidade, despidos de qualquer
atitude de orgulho, de autossuficiência, de preconceitos; são aqueles que, com
humildade e disponibilidade, aceitam os dons de Deus e acolhem as suas
propostas com alegria e gratidão.
Porque é que Deus os prefere? Em
primeiro lugar, porque são os que mais necessitam de ser libertados e salvos;
em segundo lugar, porque são os mais disponíveis para acolher o dom do reino.
Não é que o reino de Deus seja uma opção de classe e que os ricos e poderosos
não possam, à partida, ter acesso ao reino; mas os ricos, os poderosos, os
instalados, com o coração cheio de orgulho e de autossuficiência, não estão
disponíveis para acolher a novidade revolucionária e libertadora do reino… São
os “pobres”, na sua simplicidade, humildade e despojamento, na sua ânsia de
libertação, que estão preparados para acolher o dom de Deus que se torna
presente em Jesus e nos seu projeto.
ATUALIZAÇÃO
• O cristão é, antes de mais,
alguém que aderiu a Jesus Cristo, que assumiu os valores que Ele veio propor e
que procura concretizar, dia a dia, essa proposta de vida que Ele veio fazer.
Ora, Jesus Cristo nunca discriminou nem nunca marginalizou ninguém; sentou-se à
mesa com os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos,
chamou um publicano para fazer parte do seu grupo, teve gestos de bondade e de
misericórdia para com os pecadores, disse que os pobres eram os filhos queridos
de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava
amaldiçoados e condenados… A comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o
rosto de Cristo para os homens; por isso, não faz sentido qualquer acepção de
pessoas na comunidade cristã. Naturalmente, isto é uma evidência que ninguém
contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com
respeito e amor? Tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é
rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem,
quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem tem um comportamento
religiosamente correto e quem tem um estilo de vida que não se coaduna com as nossas
perspectivas, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante
de certas opções dos responsáveis da comunidade? Não esqueçamos: a comunidade
cristã é chamada a testemunhar o amor, a bondade, a misericórdia, a tolerância
de Cristo para com todos os irmãos, sem excepção.
• O problema da discriminação e
da marginalização das pessoas põe-se também – e talvez com maior acuidade – nos
contatos que estabelecemos fora da comunidade cristã. Encontramos todos os dias
no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso prédio,
talvez até na nossa família, pessoas com quem não nos identificamos, de quem
não gostamos, a quem não entendemos… É difícil, então, acolhê-las, aceitá-las,
entender as suas características e as suas falhas, tratá-las com bondade, com
compreensão, com tolerância, com amor. No entanto, nós, os seguidores de Jesus,
somos testemunhas dos valores do Evangelho vinte e quatro horas por dia, em
qualquer espaço e em qualquer ambiente… A fraternidade, o amor, a misericórdia,
a tolerância que Cristo nos propõe têm de informar cada passo da nossa
existência e derramar-se sobre aqueles que encontramos em cada instante, mesmo
se são de outra raça, se têm outra cultura, se frequentam ambientes diversos,
se não concordam com as nossas ideias, se têm uma forma diferente de encarar a
vida.
• O nosso texto revela-nos que
Deus prefere os pobres, os humildes, os simples. Isto não quer dizer, contudo,
que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de
outros… Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns
acolhem os seus dons e outros não… O que é decisivo, na perspectiva de Deus, é
a disponibilidade para acolher a sua proposta e os seus dons. O nosso texto
convida-nos a despir-nos do orgulho, da autossuficiência, dos preconceitos,
para acolher com humildade e simplicidade os dons de Deus.
ALELUIA – cf. Mt 4,23
Aleluia. Aleluia.
Jesus pregava o Evangelho do
reino e curava todas as enfermidades entre o povo.
EVANGELHO – Mc 7,31-37
Na fase final da “etapa da
Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu
projeto, apesar do rasto de vida nova que Ele vai deixando pelas aldeias e
cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da
Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23)
são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e
refugiar-Se em território pagão.
É nesse contexto que Marcos fala
de uma viagem pela Fenícia, que leva Jesus a passar pelos territórios de Tiro e
de Sídon – cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no atual
Líbano (cf. Mc 7,24). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus teria dado
uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). A Decápole
(“dez cidades”) era o nome dado ao território situado na Palestina oriental,
estendendo-se desde Damasco, ao norte, até Filadélfia, ao sul. O nome servia
para designar uma liga de dez cidades, que se formou depois da conquista da
Palestina pelos romanos, no ano 63 a.C.. As “dez cidades” que formavam esta
liga eram helenísticas e não estavam sujeitas às leis judaicas. As cidades que
integravam a Decápole (bem como os territórios circundantes a cada uma dessas
cidades) estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram território
pagão, considerado pelos judeus completamente à margem dos caminhos da
salvação.
É nesse ambiente geográfico e
humano que o episódio da cura do surdo-mudo nos vai situar. O gesto de Jesus de
curar o surdo-mudo deve ser visto como mais um passo no anúncio desse projeto
que Jesus vai propondo por toda a Galileia: o projeto do Reino de Deus.
Num lugar não identificado da
região da Decápole, Jesus encontrou-Se com um surdo-mudo. As pessoas que
trouxeram o surdo-mudo suplicaram a Jesus “que impusesse as mãos sobre Ele”
(vers. 32). Na sequência Marcos descreve, com grande abundância de pormenores
(alguns bem estranhos), como Jesus curou o doente e lhe deu a possibilidade de
comunicar.
Contudo, depois de ler a narração
deste episódio, ficamos com a sensação de que Marcos quer muito mais do que
contar uma simples cura de um surdo-mudo… A descrição de Marcos, enriquecida
com um número significativo de elementos simbólicos, é uma catequese sobre a
missão de Jesus e sobre o papel que Ele desenvolve no sentido de fazer nascer
um Homem Novo.
Vejamos, de forma esquemática, os
elementos principais dessa catequese que Marcos apresenta:
1. No centro da cena está Jesus e
o surdo-mudo (literalmente, “um surdo que tinha também um problema na fala”).
Se a linguagem é um meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação, o
surdo-mudo é um homem que tem dificuldade em estabelecer laços, em partilhar, em
dialogar, em comunicar. Por outro lado, num universo religioso que considera as
enfermidades físicas como consequência do pecado, o surdo-mudo é, de forma
notória, um “impuro”, um pecador e um maldito. Finalmente, o surdo-mudo vive no
território pagão da Decápole: é provavelmente um desses pagãos que a teologia
judaica considerava à margem da salvação.
Na catequese de Marcos, este
surdo-mudo representa todos aqueles que vivem fechados no seu mundo, na sua
pobre autossuficiência, de ouvidos fechados às propostas de Deus e de coração
fechado à relação com os outros homens. Representa também aqueles que a
teologia oficial considerava pecadores e malditos, incapazes de estabelecer uma
relação verdadeira com Deus, de escutar a Palavra de Deus e de viver de forma
coerente com os desafios de Deus. Representa ainda esses “pagãos” que os judeus
desprezavam e que consideravam completamente alheados dos caminhos da salvação.
2. O encontro com Jesus
transforma radicalmente a vida desse surdo-mudo. Jesus abre-lhe os ouvidos e
solta-lhe a língua (vers. 35), tornando-o capaz de comunicar, de escutar, de
falar, de partilhar, de entrar em comunhão. Na história deste surdo-mudo,
Marcos representa a missão de Jesus, que veio para abrir os ouvidos e os
corações dos homens, quer à Palavra e às propostas de Deus, quer à relação e ao
diálogo com os outros homens. O episódio lembra-nos imediatamente o anúncio de
Isaías na primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus;
vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-vos. Então se
abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; então o
coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6).
Jesus é efetivamente o Deus que veio ao encontro dos homens, a fim de os
libertar das cadeias do egoísmo, do comodismo, da autossuficiência, dos
preconceitos religiosos que impedem a relação, o diálogo, a comunhão com Deus e
com os irmãos.
3. Aparentemente, não é o
surdo-mudo que tem a iniciativa de se encontrar com Jesus (“trouxeram-Lhe um
surdo que mal podia falar”; “suplicaram-Lhe que lhe impusesse as mãos sobre
ele” – vers. 32). O surdo-mudo, instalado e acomodado a essa vida sem relação,
não sente grande necessidade de abrir as janelas do seu coração para o encontro
e para a comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o traga, que o
apresente a Jesus, que o empurre para essa vida nova de amor e de comunhão. É
esse o papel da comunidade cristã… Os que já descobriram Jesus, que se deixaram
transformar pela sua Palavra, que aceitaram segui-l’O, devem dar testemunho
dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro libertador com
Jesus.
4. A sós com o surdo-mudo, Jesus
realiza gestos significativos: mete-lhe os dedos nos ouvidos, faz saliva e toca-lhe
com ela a língua (vers. 33). Tocar com o dedo significava transmitir poder; a
saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao
sopro de Deus que transformou o barro inerte do primeiro homem num ser dotado
de vida divina – cf. Gn 2,7). Assim, Jesus transmitiu ao surdo-mudo a sua
própria energia vital, dotando-o da capacidade de ser um Homem Novo, aberto à
comunhão com Deus e à relação com os outros homens.
5. O gesto de Jesus de levantar
os olhos ao céu (vers. 34) deve ser entendido como um gesto de invocação de
Deus. Para Jesus, os grandes momentos de decisão e de testemunho são sempre
antecedidos de um diálogo com o Pai. Dessa forma, torna-se evidente a ligação
estreita entre Jesus e o Pai, entre a ação que Jesus cumpre no meio dos homens
e os projetos do Pai. Os gestos de Jesus no sentido de dar vida ao homem, de o
libertar do seu fechamento e da sua autossuficiência, de o abrir à relação, são
gestos que têm o aval do Pai e que se inserem no projeto salvador do Pai.
6. De acordo com Marcos, Jesus
teria pronunciado a palavra “effathá” (“abre-te”), quando abriu os ouvidos e
desatou a língua do surdo-mudo. Não se trata de uma fórmula mágica, com
especiais virtudes curativas… É um convite ao homem fechado no seu mundo
pessoal a abrir o coração à vida nova da relação com Deus e com os irmãos. É um
convite ao surdo-mudo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, do seu
egoísmo, da sua instalação, para fazer da sua vida uma história de comunhão com
Deus e de partilha com os irmãos. O processo de transformação do surdo-mudo em
Homem Novo não é um processo em que só Jesus age e onde o homem assume uma
atitude de passividade; mas é um processo que exige o compromisso ativo e livre
do homem. Jesus faz as propostas, lança desafios, oferece o seu Espírito que
transforma e renova o coração do homem; mas o homem tem de acolher a proposta,
optar por Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.
7. No final do relato da cura do
surdo-mudo, as testemunhas do acontecimento dizem a propósito de Jesus: “tudo o
que Ele faz é admirável” (vers. 37). A expressão parece ser um eco de Gn 1,31
(“Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa”). Ao enlaçar este relato com
o relato da criação do homem, Marcos está a dar-nos a chave de leitura para
entender a obra de Jesus: a ação de Jesus no sentido de abrir o coração dos
homens à comunhão com Deus e ao amor dos irmãos é uma nova criação. Dessa ação
nasce um Homem Novo, uma nova humanidade. Esse Homem Novo é a “admirável”
criação de Deus, o homem na plenitude das suas potencialidades, criado para a
vida eterna e verdadeira.
ATUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo
garante-nos, uma vez mais, que o Deus em quem acreditamos é um Deus comprometido
conosco, continuamente apostado em renovar o homem, em transformá-lo, em
recriá-lo, em fazê-lo chegar à vida plena do Homem Novo. Este Deus que abre os
ouvidos dos surdos e solta a língua dos mudos é um Deus cheio de amor, que não
abandona os homens à sua sorte nem os deixa adormecer em esquemas de comodismo
e de instalação; mas, a cada instante, vem ao seu encontro, desafia-os a ir
mais além, convida-os a atingir a plenitude das suas possibilidades e das suas
potencialidades. Não esqueçamos esta realidade: na nossa viagem pela vida, não
caminhamos sozinhos, arrastando sem objetivo a nossa pequenez, a nossa miséria,
a nossa debilidade; mas ao longo de todo o nosso percurso pela história, o
nosso Deus vai ao nosso lado, apontando-nos, com amor, os caminhos que nos
conduzem à felicidade e à vida verdadeira.
• O surdo-mudo, incapaz de
escutar a Palavra de Deus, representa esses homens que vivem fechados aos projetos
e aos desafios de Deus, ocupados em construir a sua vida de acordo com esquemas
de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, que não precisam de Deus nem das
suas propostas. O homem do nosso tempo já nem gasta tempo a negar Deus;
limita-se a ignorá-l’O, surdo aos seus desafios e às suas indicações. O que é
que as propostas de Deus significam para mim? Dou ouvidos aos apelos e desafios
de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo me apresenta? Quando tenho que
fazer opções, o que é que conta: as propostas de Deus ou as propostas do mundo?
• O surdo-mudo representa também
aqueles que não se preocupam em comunicar, em partilhar a vida, em dialogar, em
deixar-se interpelar pelos outros… Define a atitude de quem não precisa dos
irmãos para nada, de quem vive instalado nas suas certezas e nos seus
preconceitos, convencido de que é dono absoluto da verdade. Define a atitude
daquele que não tem tempo nem disponibilidade para o irmão; define a atitude de
quem não é tolerante, de quem não consegue compreender os erros e as falhas dos
outros e não sabe perdoar. Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril,
triste, egoísta, fechada, sem amor. Não é nesse caminho que encontramos a nossa
realização e a nossa felicidade…
• O surdo-mudo representa ainda
aqueles que se fecham no egoísmo e no comodismo, indiferentes aos apelos do
mundo e dos irmãos. Somos surdos quando escutamos os gritos dos injustiçados e
lavamos as nossas mãos; somos surdos quando toleramos estruturas que geram
injustiça, miséria, sofrimento e morte; somos surdos quando pactuamos com
valores que tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos surdos quando
encolhemos os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à
doença, ao analfabetismo; somos surdos quando temos vergonha de testemunhar os
valores em que acreditamos; somos surdos quando nos demitimos das nossas
responsabilidades e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar;
somos surdos quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo;
somos surdos quando nos resignamos a vegetar no nosso sofá cómodo, sem nos
empenharmos na construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada
nesta “surdez” descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
• A missão de Cristo consistiu
precisamente em abrir os olhos aos cegos e desatar a língua dos mudos… Ele veio
abrir-nos à relação com Deus, ao amor dos irmãos, ao compromisso com o mundo.
Quem adere a Cristo e quer segui-l’O no caminho do amor a Deus e da entrega aos
irmãos, não pode resignar-se a viver fechado a Deus e ao mundo. O encontro com
Cristo tira-nos da mediocridade e desperta-nos para o compromisso, para o
empenho, para o testemunho. Leva-nos a sair do nosso isolamento e a estabelecer
laços familiares com Deus e com todos os nossos irmãos, sem exceção.
• O surdo-mudo da nossa história
foi trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. O pormenor lembra-nos o
nosso papel no sentido de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros
da “surdez” e a proposta libertadora de Jesus Cristo. Não podemos ficar de
braços cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de
fechamento, de egoísmo, de autossuficiência; mas, com o nosso testemunho de
vida, temos de lhe apresentar essa proposta libertadora que Cristo quer
oferecer a todos os homens.
• Antes de curar o surdo-mudo,
Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso
manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus. É necessário dialogarmos
continuamente com Deus para descobrir os seus projetos, para perceber as suas
propostas, para ser fiel aos seus planos; é preciso tomar continuamente
consciência de que é Deus que age no mundo através dos nossos gestos; é preciso
que toda a nossa ação encontre em Deus a sua razão última: se isso não
acontecer, rapidamente a nossa ação perde todo o sentido.
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