24º Domingo do Tempo Comum - Ano
B
“Tu és o Messias... O
filho do homem deve sofrer muito”
A liturgia do 24º Domingo do
Tempo Comum diz-nos que o caminho da realização plena do homem passa pela
obediência aos projetos de Deus e pelo dom total da vida aos irmãos. Ao
contrário do que o mundo pensa, esse caminho não conduz ao fracasso, mas à vida
verdadeira, à realização plena do homem.
A primeira leitura apresenta-nos
um profeta anônimo, chamado por Deus a testemunhar a Palavra da salvação e que,
para cumprir essa missão, enfrenta a perseguição, a tortura, a morte. Contudo,
o profeta está consciente de que a sua vida não foi um fracasso: quem confia no
Senhor e procura viver na fidelidade ao seu projeto, triunfará sobre a
perseguição e a morte. Os primeiros cristãos viram neste “servo de Jahwéh” a
figura de Jesus.
No Evangelho, Jesus é apresentado
como o Messias libertador, enviado ao mundo pelo Pai para oferecer aos homens o
caminho da salvação e da vida plena. Cumprindo o plano do Pai, Jesus mostra aos
discípulos que o caminho da vida verdadeira não passa pelos triunfos e êxitos
humanos, mas pelo amor e pelo dom da vida (até à morte, se for necessário).
Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo, tem de
aceitar percorrer um caminho semelhante.
A segunda leitura lembra aos
crentes que o seguimento de Jesus não se concretiza com belas palavras ou com
teorias muito bem elaboradas, mas com gestos concretos de amor, de partilha, de
serviço, de solidariedade para com os irmãos.
LEITURA I – Is 50,5-9a
O nosso texto pertence ao “Livro
da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome
convencional com que os biblistas designam um profeta anônimo da escola de
Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados
judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é
consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência
da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus
libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48); depois, anuncia a
reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à
qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora”
aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12)
que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem
misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”:
ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão
profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no
sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem,
contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o
pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á,
fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias,
o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio
Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do
Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo
exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no
meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de
personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras
míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos;
no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação
à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é
parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.
texto dá a palavra a um personagem anónimo,
chamado por Deus a dizer aos homens desanimados palavras de alento e de
esperança (vers. 4); e o profeta acolheu esse chamamento sem resistência, sem
discussão, numa entrega total aos desígnios de Deus (vers. 5).
Por ser fiel ao chamamento de
Deus, o profeta conheceu a prisão, a tortura, o sofrimento (vers. 6). O anúncio
fiel das propostas de Deus para o mundo e para os homens provoca sempre
confrontos com as forças da opressão e da morte… Mas o profeta experimenta o
socorro do Senhor e, fortalecido por esse socorro, pode enfrentar todas as
contrariedades e dores. Ele nada teme, pois confia plenamente no Senhor e sabe
que não ficará desiludido (vers 7-9).
A situação descrita neste poema
sugere a de um prisioneiro que, depois de ter sido torturado e maltratado,
espera o julgamento que irá decidir o seu destino. Confiando plenamente na
ajuda do Senhor, ele espera serenamente o momento em que Deus o irá defender no
tribunal, confundindo os seus adversários.
O que mais impressiona neste
texto é a serenidade com que o profeta, prisioneiro e sofredor, enfrenta o seu
destino. Essa serenidade vem-lhe, não da inconsciência, da insensibilidade ou
de uma leviana indiferença perante a morte, mas de uma total confiança no Deus
que não falha e que não deixa cair aqueles que ama.
ATUALIZAÇÃO
• Não sabemos, efetivamente, quem
é este “servo de Jahwéh”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este
texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele foi esse “Servo de
Deus” que veio ao mundo para dizer aos homens a Palavra do Pai, que entrou em
choque com as forças da opressão e da injustiça, que foi torturado e maltratado
porque a sua proposta incomodava os poderosos, que ofereceu a sua vida para
trazer a salvação/libertação aos homens… E a história de Jesus – morto pelos
homens, mas que Deus ressuscitou e glorificou – confirma a esperança do “Servo
de Jahwéh”: quem confia em Deus e vive na fidelidade às suas propostas, não
sairá decepcionado. O exemplo de Jesus mostra que uma vida colocada ao serviço
dos projetos de Deus não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera vida
nova.
• Uma das coisas que sobressai
nesta “partilha de vida” que o “Servo de Jahwéh” faz conosco é a forma absoluta
como ele se entrega aos projetos de Deus. Diante do chamamento de Deus, ele não
resiste, não discute, “não recua um passo”; mas assume, com total obediência e
fidelidade, os desafios que Deus lhe faz, mesmo quando tem de percorrer um
caminho de sofrimento e de morte. Para nós que vivemos envolvidos pela cultura
da facilidade e do comodismo, para nós que temos medo de arriscar, para nós que
preferimos fechar-nos no nosso “cantinho” protegido, arrumado e seguro, o
“Servo de Jahwéh” constitui uma poderosa interpelação… É preciso abraçar, com
coragem e coerência o projeto que Deus nos confia, mesmo quando esse projeto se
cumpre no meio da oposição do mundo; é preciso deixarmo-nos desafiar por Deus e
acolher, com generosidade, as propostas que Ele nos faz; é preciso assumirmos o
papel que Deus nos chama a desempenhar e empenharmo-nos na transformação do
mundo.
• Outra das coisas que sobressai
nesta “partilha de vida” que o “Servo de Jahwéh” faz conosco é a sua total
confiança em Deus. Para ele, Deus é, efetivamente, essa “rocha segura” que se
mantém sempre firme e a que o crente se pode agarrar, mesmo quando tudo o resto
parece cair. A certeza da fidelidade de Deus, da sua presença, do seu amor deve
permitir-nos (como permitiu ao “Servo”) encarar a vida com serenidade e
confiança. O crente que confia em Deus sente-se seguro e protegido, como uma
criança ao colo da sua mãe. Dessa forma, o crente poderá viver livre do medo,
com o coração em paz, e aceitando tranquilamente os desafios que Deus lhe faz.
• O “Servo” sofredor que põe a
sua vida, integralmente, ao serviço do projeto de Deus e da salvação dos homens
mostra-nos o caminho: a vida, quando é posta ao serviço da libertação dos
pobres e dos oprimidos, não é perdida mesmo que pareça, em termos humanos,
fracassada e sem sentido. Temos a coragem de fazer da nossa vida uma entrega
radical ao projeto de Deus e à libertação dos nossos irmãos? O que é que ainda
entrava a nossa aceitação de uma opção deste tipo? Temos consciência de que, ao
escolher este caminho, estamos a gerar vida nova, para nós e para todos aqueles
com quem nos cruzamos nos caminhos deste mundo?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114
(115)
Refrão 1: Andarei na presença do
Senhor sobre a terra dos vivos.
Refrão 2: Caminharei na terra dos
vivos na presença do Senhor.
LEITURA II – Tiago 2,14-18
Continuamos a reflexão dessa
“Carta de Tiago” que nos tem acompanhado nos últimos domingos. Trata-se,
segundo parece, de uma carta enviada aos cristãos de origem judaica, dispersos
no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a
Síria, o Egito ou a Ásia Menor. O objetivo fundamental do autor é exortar os
crentes para que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo
através dos ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda
parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé
concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de
acepção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos
formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem
(cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé
operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.
O nosso texto refere-se à relação
entre a fé e as obras. A tese do autor da Carta de Tiago é que a fé sem obras
não serve para nada (vers. 14.17).
O tema da relação entre a fé e as
obras foi objeto de muitas discussões, sobretudo a partir do séc. XVI. Paulo,
na Carta aos Romanos, considera que “é pela fé que o homem é justificado,
independentemente das obras da Lei” (Rom 3,28); e esta afirmação de Paulo
serviu a Lutero para fundamentar a sua teologia da salvação pela fé: a salvação
não depende das ações do homem, mas é um dom gratuito e imerecido que Deus, na
sua infinita misericórdia, oferece ao homem. Contudo, servindo-se da Carta de
Tiago, muitos outros teólogos defendiam que o homem precisava de realizar ações
concretas para chegar à salvação, pois a fé sem obras não vale nada.
Na verdade, o texto da Carta de
Tiago não nasceu no contexto de uma polémica que contrapunha a fé às obras. O
autor da Carta de Tiago nunca esteve interessado em dizer que as obras são
importantes e que a fé não tem qualquer valor… O que ele quer dizer é que a fé
tem de traduzir-se em ações concretas de compromisso com o mundo e com os
homens. Se isso não acontecer, essa fé é apenas uma declaração de boas
intenções, mas que não passa de uma farsa sem valor e sem conteúdo.
A adesão a Jesus e ao seu projeto
(fé) significa que o homem está disposto a acolher essa vida nova e plena que
Deus, gratuitamente e sem condições, lhe oferece (salvação). Essa vida,
interiorizada e assumida, tem de transparecer em gestos de amor, de solidariedade,
de fraternidade, de serviço, de partilha, de perdão. A vivência da fé tem,
portanto, de se traduzir na vida do dia a dia, especialmente na forma como se
vive a relação com esses irmãos com quem nos cruzamos nos caminhos do mundo. Se
isso não acontece, quer dizer que a fé (adesão à proposta de vida que Deus,
gratuitamente, faz) é uma mentira.
Os bonitos discursos que fazemos,
os conselhos muito sábios que damos, as teorias bem elaboradas que
apresentamos, as reflexões muito piedosas que impingimos, não passam de belas
palavras que podem não significar nada. Quando um irmão tem fome, ou não tem
que vestir, ou está a sofrer, é preciso ir ao seu encontro e manifestar-lhe,
com gestos concretos, o nosso amor, a nossa solidariedade, a nossa fraternidade.
A nossa religião tem de manifestar-se na vida e tem de transparecer nos nossos
gestos.
ATUALIZAÇÃO
• O que é ser cristão? O nosso
compromisso cristão é algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso
vital? O que caracteriza um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que
expressam uma determinada ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e
estéreis, nem uma assinatura feita no livro de registros de batismo da
paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa
conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo, seguir
Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos irmãos.
Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo teórico e
abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um compromisso efetivo
com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em gestos concretos em
favor dos irmãos.
• Que gestos são esses? São os
mesmos gestos que Cristo realizou e que o tornaram, aos olhos dos seus
concidadãos, um sinal de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade,
denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao
encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos
de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria
vida para salvar os seus irmãos. Assim, quem segue a Cristo tem de lutar, objetivamente,
contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar
aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade
construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só
a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência
e do ódio e propor a tolerância e o amor…
• Por vezes há uma profunda
dicotomia, nas nossas comunidades cristãs, entre a fé e a vida. O nosso
compromisso religioso traduz-se em liturgias soleníssimas, em procissões
sumtuosas, na construção de igrejas esplendorosas, em rituais fascinantes… e
mais nada. Depois, na vida da comunidade, há desunião, há conflito, há falta de
solidariedade, há indiferença para com as necessidades do irmão, há críticas
destrutivas, há palavras que ferem e afastam os outros, há gestos de
arrogância, há falta de amor… De acordo com os ensinamentos da Carta de Tiago,
a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos concretos de amor
e de fraternidade?
• Por vezes, há uma profunda
dicotomia, nas nossas vidas pessoais, entre a fé e a vida. O nosso compromisso
cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta
de chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em
manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e
mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com
esquemas de corrupção, tratamos com pouca caridade aqueles que vivem ao nosso
lado, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos,
marginalizamos aqueles de quem não gostamos, demitimo-nos das nossas
responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os
ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se
traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade?
ALELUIA – cf. Gal 6,14
Aleluia. Aleluia.
Toda a minha glória está na cruz
do Senhor, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.
EVANGELHO – Mc 8,27-35
O texto que nos é hoje proposto é
um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos
versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da
segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.
A primeira parte do Evangelho
segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à
descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um
percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são
convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o
seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação.
Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe
termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de
Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois
de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
Depois, vem a segunda parte do
Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do
catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é
também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um
destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom
de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião
romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a
repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).
Cesareia de Filipe – o quadro
geográfico onde o Evangelho de hoje nos coloca – era uma cidade situada no
Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias).
Tinha sido construída por Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) no ano 2
ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto.
O nosso texto apresenta,
portanto, duas partes bem distintas. Na primeira, Pedro dá voz à comunidade dos
discípulos e constata que Jesus é o Messias libertador que Israel esperava; na
segunda, Jesus explica aos discípulos que a sua missão messiânica deve ser
entendida à luz da cruz (isto é, como dom da vida aos homens, por amor).
A primeira parte do nosso texto
(vers. 27-30) começa com Jesus a pôr uma dupla questão aos discípulos: o que é
que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele?
A opinião dos “homens” vê Jesus
em continuidade com o passado (“João Batista”, “Elias”, ou “algum dos
profetas”). Não captam a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua
originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado por Deus e
enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas
não vão além disso. Na perspectiva dos “homens”, Jesus é apenas um homem bom,
justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um
sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele (vers. 28). É muito,
mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade de
Jesus, nem a profundidade do seu mistério.
A opinião dos discípulos acerca
de Jesus vai muito além da opinião comum. Pedro, porta-voz da comunidade dos
discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o
Messias” (vers. 29). Dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo) significa dizer
que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o
seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.
A resposta de Pedro estava correta.
No entanto, podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de
Messias estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos
recebem ordens para não falarem disso a ninguém. Era preciso clarificar,
depurar e completar a catequese sobre o Messias e a sua missão, para evitar
perigosos equívocos. É isso que Jesus vai fazer, logo de seguida.
Na segunda parte do nosso texto (vers.
31-35), há duas questões. A primeira (vers. 31-33) é a explicação dada pelo
próprio Jesus de que o seu messianismo passa pela cruz; a segunda (vers. 34-35)
é uma instrução sobre o significado e as exigências de ser discípulo de Jesus.
Jesus começa, portanto, por
anunciar que o seu caminho vai passar pelo sofrimento e pela morte na cruz
(vers. 31-33). Não é uma previsão arriscada: depois do confronto de Jesus com
os líderes judeus e depois que estes rejeitaram de forma absoluta a proposta do
Reino, é evidente que o judaísmo medita a eliminação física de Jesus. Jesus tem
consciência disso; no entanto, não se demite do projeto do Reino e anuncia que
pretende continuar a apresentar, até ao fim, os planos do Pai.
Pedro não está de acordo com este
final e opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao seu destino
de cruz. A oposição de Pedro (e dos discípulos, pois Pedro continua a ser o
porta-voz da comunidade) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus
ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do “messias, Filho de Deus” é uma
missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é a lógica do mundo –
a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.
Jesus dirige-se a Pedro com
alguma dureza, pois é preciso que os discípulos corrijam a sua perspectiva de
Jesus e do plano do Pai que Ele vem realizar. O plano de Deus não passa por
triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas o plano do Pai
passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz
é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos do
Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do
seu ministério (cf. Mc 1,13); por isso, Jesus responde a Pedro: “Vai-te,
Satanás”. As palavras de Pedro pretendem desviar Jesus do cumprimento dos
planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com qualquer proposta que
O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os projetos de Deus.
Depois de anunciar o seu destino
(que será cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em
favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso
semelhante… Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”,
“tomar a cruz” e seguir Jesus no caminho do amor, da entrega e do dom da vida.
O que é que significa, exatamente,
renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e autossuficiência,
para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado
em si próprio, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais, os
seus projetos de riqueza, de segurança, de bem estar, de domínio, de êxito, de
triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos.
Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.
O que é que significa “tomar a
cruz” de Jesus e segui-l’O? A cruz é a expressão de um amor total, radical, que
se dá até à morte. Significa a entrega da própria vida por amor. “Tomar a cruz”
é ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a Deus e
para que os irmãos sejam mais felizes.
No final desta instrução, Jesus
explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da
cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas
ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas
ganhou a vida eterna, a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo
com as suas propostas (vers. 35).
ATUALIZAÇÃO
• Quem é Jesus? O que é que “os
homens” dizem de Jesus? Muitos dos nossos conterrâneos veem em Jesus um homem
bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo
diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma
proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores;
alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança
nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as
multidões deixaram de se interessar pelo fenômeno; outros, ainda, veem em Jesus
um revolucionário, ingênuo e inconsequente, preocupado em construir uma
sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os
marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status
quo”. Estas visões apresentam Jesus como “um homem” – embora “um homem”
excepcional, que marcou a história e deixou uma recordação imorredoura. Jesus
foi apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história, como tantos outros
que a história absorveu e digeriu?
• “E vós, quem dizeis que Eu
sou?” É uma pergunta que deve, de forma constante, ecoar nos nossos ouvidos e
no nosso coração. Responder a esta questão não significa papaguear lições de
catequese ou tratados de teologia, mas sim interrogar o nosso coração e tentar perceber
qual é o lugar que Cristo ocupa na nossa existência… Responder a esta questão
obriga-nos a pensar no significado que Cristo tem na nossa vida, na atenção que
damos às suas propostas, na importância que os seus valores assumem nas nossas
opções, no esforço que fazemos ou que não fazemos para o seguir… Quem é Cristo
para mim? Ele é o Messias libertador, que o Pai enviou ao meu encontro com uma
proposta de salvação e de vida plena?
• Frente a frente o Evangelho
deste domingo coloca a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A
lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito;
garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se
tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas
multidões, se tivermos acesso às festas onde se reúne a alta sociedade, se
tivermos lugar no conselho de administração da empresa. A lógica de Deus aposta
na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido
se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço,
na solidariedade, na humildade, na simplicidade. Na minha vida de cada dia,
estas duas perspectivas confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha escolha?
Na minha perspectiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de
felicidade seguro e duradouro?
• Jesus tornou-se um de nós para
concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço,
do dom da vida – o caminho da salvação, da vida verdadeira. Neste texto (como,
aliás, em muitos outros), fica claramente expressa a fidelidade radical de
Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem
do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos
de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita duramente. Que
significado e que lugar ocupam na minha vida os projetos de Deus? Esforço-me
por descobrir a vontade de Deus a meu respeito e a respeito do mundo? Estou
atento a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus me interpela? Sou
capaz de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus,
mesmo quando elas são exigentes e vão contra os meus interesses e projetos
pessoais?
• Quem são os verdadeiros
discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em
ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais,
mas que deixou para segundo plano o essencial: o seguimento de Jesus. A
identidade cristã constrói-se à volta de Jesus e da sua proposta de vida. Que
nenhum de nós tenha dúvidas: ser cristão é bem mais do que ser batizado, ter
casado na igreja, organizar a festa do santo padroeiro da paróquia, ou dar-se
bem com o padre… Ser cristão é, essencialmente, seguir Jesus no caminho do amor
e do dom da vida. O cristão é aquele que faz de Jesus a referência fundamental
à volta da qual constrói toda a sua existência; e é aquele que renuncia a si
mesmo e que toma a mesma cruz de Jesus.
• O que é “renunciar a si mesmo”?
É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência dominem
a vida. O seguidor de Jesus não vive fechado no seu cantinho, a olhar para si
mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às
necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens;
mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos.
• O que é “tomar a cruz”? É amar
até às últimas consequências, até à morte. O seguidor de Jesus é aquele que
está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais
felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a
exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a
tortura, as represálias dos poderosos.
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