27º Domingo do Tempo Comum
- Ano B -
“Uma só carne- O que Deus uniu o homem não separe!”
As leituras do 27º Domingo do
Tempo Comum apresentam, como tema principal, o projeto ideal de Deus para o
homem e para a mulher: formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel,
que os ajude mutuamente a realizarem-se e a serem felizes. Esse amor, feito
doação e entrega, será para o mundo um reflexo do amor de Deus.
A primeira leitura diz-nos que Deus criou o homem e a mulher para
se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a
mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão
total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro,
unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo.
No Evangelho, Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio,
reafirma o projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram
chamados a formar uma comunidade estável e indissolúvel de amor, de partilha e
de doação. A separação não está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus
não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno,
expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de Deus
para o homem e para a mulher.
A segunda leitura lembra-nos a “qualidade” do amor de Deus pelos
homens… Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho único
“em proveito de todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou
a debilidade dos homens e, cumprindo o projeto do Pai, aceitou morrer na cruz
para dizer aos homens que a vida verdadeira está no amor que se dá até às
últimas consequências. Ligando o texto da Carta aos Hebreus com o tema
principal da liturgia deste domingo, podemos dizer que o casal cristão deve
testemunhar, com a sua doação sem limites e com a sua entrega total, o amor de
Deus pela humanidade.
LEITURA I – Gn 2,18-24
O texto de Gn 2,4b-3,24 –
conhecido como relato jahwista da criação – é, de acordo com a maioria dos
comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época
do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece
ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas,
coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma
reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A
finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que
ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da
vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e
não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da
vida.
Para apresentar essa catequese
aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas utilizaram elementos
simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação
do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem
mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das
narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova
interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a
linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação
apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do
Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre
Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são muito
diferentes.
O texto que nos é hoje proposto
como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”, um espaço ideal onde Deus
colocou o homem que criou, um ambiente de felicidade material onde todas as
exigências da vida humana estavam satisfeitas. É um lugar de água abundante e
com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido,
o ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um
ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para
ser feliz? Ainda não. Na perspectiva do catequista jahwista, o homem não estava
plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a
felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em
relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver…
Depois de criar o homem e de o
colocar no “jardim” da felicidade, Deus constatou a solidão do homem e quis
dar-lhe solução. Como?
Num primeiro momento, Deus fez
desfilar diante do homem “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, a
fim de que o homem os chamasse “pelos seus nomes” (vers. 19). Segundo as ideias
vigentes no Médio Oriente antigo, o facto de “dar um nome” era, antes de mais,
um acto de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os
animais para que o homem lhes desse um nome era, na perspectiva do catequista
jahwista, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a
associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A autoridade sobre os
outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de Deus responderá
ao desejo de felicidade completa que o homem sente e resolverá o problema da
sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe
confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (vers. 20). Por muito rico e
desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não
encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize
completamente, Deus vai intervir de novo.
A nova ação de Deus começa com um
“sono profundo” do homem. Depois, Deus, actuando como um hábil cirurgião, tirou
parte do corpo do homem (o texto fala da “zela'“, que se tem traduzido como
“costela”; contudo, a palavra pode significar “lado” ou “costado”) e com ela
fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o “sono profundo” do homem”? Porque, de
acordo com a concepção do autor jahwista, criar era segredo de Deus e o homem
não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava-lhe admirar a
criação de Deus e adorá-l’O pelas suas obras admiráveis… Depois de ter
“construído” a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem. A mulher é aqui
apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o
“padrinho” desse noivado. O homem, desperto do “sono profundo”, acolhe a mulher
com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que lhe fazia falta, o
seu complemento, o seu outro eu: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne
da minha carne” (vers. 23a). O homem (vers. 23b) dá à sua companheira o nome de
“mulher” (em hebraico: 'ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: 'ish).
A proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher,
a sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu
parentesco.
O nosso texto termina com um
comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista
jahwista: “por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os
dois serão uma só carne” (vers. 24). Este comentário pretende ser a resposta a
uma questão bem concreta: de onde vem essa força poderosa que é o amor e que é
mais forte do que o vínculo que nos liga aos próprios pais? Para o catequista
jahwista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só carne; por
isso, homem e mulher buscam essa unidade e estão destinados, fatalmente, a
viver em comunhão um com o outro.
ATUALIZAÇÃO
• “Não é bom que o homem esteja
só”. Estas palavras, postas pelo autor jahwista na boca de Deus, sugerem que a
realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O homem que
vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de autossuficiência,
que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a seu lado, que tem
o coração fechado ao amor e à partilha, é um homem profundamente infeliz, que
nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com
a realização profissional, com o estatuto social, com o êxito levam os homens a
prescindir do amor, a renunciar à família, a não ter tempo para os amigos… E um
dia, depois de terem acumulado muito dinheiro ou de terem chegado à presidência
da empresa, constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A
Palavra de Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do
homem é o amor; a solidão, mesmo quando compensada pela abundância de bens
materiais, é um caminho de infelicidade.
• Por vezes, certos círculos
religiosos mais fechados desvalorizam o amor humano, consideram o casamento
como um estado inferior de realização da vocação cristã e vêem na sexualidade
algo de pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a Palavra de Deus nos
apresenta… No nosso texto, o amor aparece como algo que está, desde sempre,
inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a
mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas.
É no amor e não na solidão que o homem encontra a sua realização plena e o
sentido para a sua existência.
• Homem e mulher são, de acordo
com o nosso texto, iguais em dignidade. Eles são “da mesma carne”, em igualdade
de ser, partícipes do mesmo destino; completam-se um ao outro e ajudam-se
mutuamente a atingir a realização. São, portanto, iguais em dignidade. Esta realidade
exige que homem e mulher se respeitem absolutamente um ao outro; e exclui,
naturalmente, qualquer atitude que signifique dominação, escravidão,
prepotência, uso egoísta do outro.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127
(128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em
toda a nossa vida.
LEITURA II – Heb 2,9-11
A Carta aos Hebreus é um sermão
de um autor cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a
destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs
não identificadas (o título “aos hebreus” foi-lhe colado posteriormente e
provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos
“sacrifícios” que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de comunidades
cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num ambiente
hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo
Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de
certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo
do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar
os crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta –
recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote
por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são
inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na
sequência, para refletir nas implicações desse fato: postos em relação com o
Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é
a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor,
de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um
aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência
de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está
incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e
repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: a
sua encarnação, a sua paixão e morte, a sua glorificação pela ressurreição. Ao
longo destes dois capítulos, o autor vai afirmando a superioridade de Jesus em
relação a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos.
Jesus aceitou despojar-se das
suas prerrogativas divinas e fazer-se “por um pouco, inferior aos anjos” a fim
de que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o projeto salvador do
Pai para os homens (vers. 9).
Depois desta afirmação de
princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai aprofundar a sua reflexão e
explicar porque é que Jesus teve que passar pela humilhação da cruz (a
explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é proposta e vai do
versículo 10 ao versículo 18).
A questão da paixão e morte de
Cristo era uma “conveniência” do projeto de salvação que Deus tinha para o
homem (“convinha” – vers. 10). O que é que isso significa? O objetivo de Deus é
que o homem cresça até chegar à vida plena. Ora, para fazer com que a
humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe um guia – Jesus Cristo. Ele devia
mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que se chega à plenitude da vida
cumprindo integralmente a vontade do Pai e fazendo da existência um dom de amor
aos irmãos. A cruz foi a expressão máxima e total dessa vida de entrega aos
desígnios de Deus e de doação aos irmãos. Morrendo por amor, Jesus ensinou aos
homens como é que eles devem viver, qual o caminho que eles devem percorrer, a
fim de chegarem à plenitude da vida, à felicidade sem fim; morrendo por amor e
ressuscitando logo a seguir para a vida plena, Jesus libertou os homens do medo
paralisante da morte e mostrou-lhes que a morte não é o fim da linha para quem
vive na entrega a Deus e na doação aos irmãos.
Ao assumir a natureza humana, ao
fazer-Se solidário com os homens, ao fazer-Se irmão dos homens, Cristo (Aquele
que santifica) inseriu os homens (os que são santificados) na órbita de Deus e
mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar a família de Deus (vers. 11).
ATUALIZAÇÃO
• A encarnação, paixão e morte de
Jesus atestam, antes de mais, o incrível amor de Deus pelos homens. É o amor de
alguém que enviou o próprio Filho para fazer da sua vida um dom, até à morte na
cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da vida plena e definitiva.
Trata-se de uma realidade que a Palavra de Deus nos recorda cada domingo; e
trata-se de uma realidade que não deve cessar de nos espantar e de nos levar à
gratidão e ao amor.
• A atitude de aceitação
incondicional do projeto do Pai assumida por Cristo contrasta com o egoísmo e a
autossuficiência de Adão face às propostas de Deus. A obediência de Cristo
trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão trouxe sofrimento e morte à
humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver na escuta atenta e na
obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é gerador de vida
verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas propostas e decide que
é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala para projetos de
ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem escuta e acolhe os
desafios de Deus, aprende a amar, a partilhar, a servir, a perdoar e torna-se
uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu lado.
• Jesus fez-Se homem, enfrentou a
condição de debilidade dos homens e morreu na cruz. No entanto, a sua
glorificação mostrou que a morte não é o final do caminho para quem faz da vida
uma escuta atenta dos planos de Deus e uma doação de amor aos irmãos. Dessa
forma, Ele libertou os homens do medo da morte. Agora, podemos enfrentar a
injustiça, a opressão, as forças do mal que oprimem os homens, sem medo de
morrer: sabemos que quem vive como Jesus não fica prisioneiro da morte, mas
está destinado à vida verdadeira e eterna.
ALELUIA – 1 Jo 4,12
Se nos amamos uns aos outros,
Deus permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito.
EVANGELHO – Mc 10,2-16
Despedindo-se definitivamente da
Galileia, Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu
destino final. O episódio de hoje situa-nos “na região da Judeia, para além do
Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, território
governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado João Baptista quando
este o criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí, Jesus volta a
confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os
discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução
especial.
Entram de novo em cena os
fariseus, não para escutar as suas propostas, mas para O experimentar e para
Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses fanáticos da Lei que vão
proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar sobre uma questão delicada
e comprometedora: o matrimónio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma
questão “quente” e não totalmente consensual nas discussões dos “mestres” de
Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio (“quando um homem tomar uma mulher
e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo
de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em
mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca
das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. Na época
de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na
interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer
motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido
gostava mais de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de
Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a
má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A
mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no
caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos
pouco claros que os fariseus procuram envolver Jesus. Uma resposta negativa por
parte de Jesus seria, certamente, interpretada como uma condenação do
matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua cunhada. A pergunta dos
fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para
eliminar Jesus.
Diante da questão posta pelos
fariseus (“pode um homem repudiar a sua mulher?” – vers. 2), Jesus começa por
recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei (“que vos ordenou
Moisés?” – vers. 3). Tal não significa, contudo, que Jesus Se identifique com o
posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio.
Efetivamente, a Lei permite o
divórcio (“Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se
repudiar a mulher” – vers. 4); contudo, essa condescendência da Lei não resulta
do projeto de Deus para o homem e para a mulher, mas é o resultado da “dureza
do coração” dos homens. As prescrições de Moisés não definem o quadro ideal do
amor do homem e da mulher, mas apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo
em conta a mediocridade humana.
Em contraste com a permissividade
da Lei, Jesus vai apresentar o projeto primordial de Deus para o amor do homem
e da mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, Jesus explica que, no projeto
original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se
completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a
mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão
total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro,
unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação
será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projeto ideal de Deus,
pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor
eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de
Deus para o homem e para a mulher.
A perspectiva de Jesus acerca da
questão é a seguinte: nessa nova realidade que Deus quer propor ao homem (o
Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a facilidade, a mesquinhez, as
meias-tintas e de apontar para um patamar mais alto. Ora, no que diz respeito
ao matrimónio, o patamar mais alto é o projeto inicial de Deus para o homem e
para a mulher, que previa um compromisso de amor estável, duradouro,
indissolúvel.
Para os discípulos (que
anteriormente, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica
do mundo para a lógica de Deus), contudo, o discurso de Jesus é difícil de
entender; por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações suplementares
(vers. 10). Jesus reitera que a relação entre o homem e a mulher se deve
enquadrar no projeto inicial de Deus e não nas facilidades concedidas pela Lei
de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor,
formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel. O divórcio não entra
nesse projeto. Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são
responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do
amor (vers. 11-12).
O texto que nos é proposto
termina com uma cena em que Jesus acolhe as crianças, defende-as e abençoa-as
(vers. 13-16). As crianças são, aqui, uma espécie de contraponto ao orgulho e
arrogância com que os fariseus se apresentam a Jesus, bem como à dificuldade
que os discípulos revelaram, nas cenas precedentes, para acolher a lógica do
Reino… As crianças são simples, transparentes, sem calculismos; não têm
prestígio ou privilégios a defender; entregam-se confiadamente nos braços do
pai e dele esperam tudo, com amor. Por isso, as crianças são o modelo do
discípulo. O Reino de Deus é daqueles que, como as crianças, vivem com
sinceridade e verdade, sem se preocuparem com a defesa dos seus interesses
egoístas ou dos seus privilégios, acolhendo as propostas de Deus com
simplicidade e amor. Quem não é “criança”, isto é, quem percorre caminhos
tortuosos e calculistas, quem não renuncia ao orgulho e autossuficiência, quem
despreza a lógica de Deus e só conta com a lógica do mundo (também na questão
do casamento e do divórcio), quem conduz a própria vida ao sabor de interesses
e valores efémeros, quem não aceita questionar os próprios raciocínios e
preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.
ATUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo
apresenta-nos o projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher que se amam:
eles são convidados a viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao
outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte
do que qualquer outro vínculo. O fracasso dessa relação não está previsto nesse
projecto ideal de Deus. O amor de um homem e de uma mulher que se comprometem
diante de Deus e da sociedade deve ser um amor eterno e indestrutível, que é
reflexo desse amor que Deus tem pelos homens. Este projeto de Deus não é uma
realidade inatingível e impossível: há muitos casais que, dia a dia, no meio
das dificuldades, lutam pelo seu amor e dão testemunho de um amor eterno e que
nada consegue abalar.
• As telenovelas, os valores da
moda, a opinião pública, têm-se esforçado por apresentar o fracasso do amor
como uma realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante e que
resolve facilmente as dificuldades que duas pessoas têm em partilhar o seu
projecto de amor. Para os casais cristãos, o fracasso do amor não é uma
normalidade, mas uma situação extrema, uma realidade excepcional. Para os
casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para
resolver as pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. À
partida, o compromisso de amor não deve ser uma realidade efémera, sujeito a
projetos egoístas e a planos superficiais, que terminam quando surgem
dificuldades ou quando um dos dois é confrontado com outras propostas. Para o
casal que quer viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma
proposta sempre em cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por
realizar a sua vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das
divergências e dos problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A
Igreja é chamada a ser no mundo, mesmo contra a corrente, testemunha do projeto
ideal de Deus.
• Apesar de tudo, a vida dos
homens e das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem
sempre as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser
fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos,
de infidelidades, de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve
usar de muita compreensão para aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na
vivência do seu projeto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas
divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã.
A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender,
ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal projeto
ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao “ideal” que Deus propõe; trata-se
de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com todos aqueles a quem
a partilha de um projeto comum fez sofrer e que, por diversas razões, não
puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se
comprometeram a viver.
• As crianças que Jesus nos
apresenta no Evangelho deste domingo como modelos do discípulo convidam-nos à
simplicidade, à humildade, à sinceridade, ao acolhimento humilde dos dons de
Deus. De acordo com as palavras de Jesus, não pode integrar o Reino quem se
coloca numa atitude de orgulho, de autossuficiência, de autoritarismo, de
superioridade sobre os irmãos. A dinâmica do Reino exige pessoas dispostas a
acolher e a escutar as propostas de Deus e dispostas a servir os irmãos com
humildade e simplicidade.
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