Neste
nosso tempo de crise de vocações religiosas, como sopra o Espírito
Santo no tocante às necessidades da Igreja? Pelo menos uma parte da
resposta está com as novas associações de leigos.
Quando um dia São Francisco de Assis,
Santo Ângelo e São Domingos de Gusmão encontraram-se frente a frente, na
cela deste último, no Convento de Santa Sabina, em Roma, puseram-se de
joelhos, cada um admirando as virtudes e vocações dos outros dois. Na
capela existente atualmente, nesse local, uma inscrição comemora o
histórico acontecimento.
O que se deu ali foi um encontro de vias
espirituais entre dominicanos, franciscanos e carmelitas, num contexto
de grandes transformações sociais.
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A cela onde São Francisco, Santo Ângelo e São Domingos se encontraram conserva-se ainda hoje, transformada em capela, no convento de Santa Sabina, em Roma |
Naquela época, pelo início do século
XIII, a Europa católica, perpassada por uma onda de riqueza e de
progresso, corria o risco de afundar-se na admiração de si mesma e no
gozo imoderado do luxo, esquecida de que sua vitalidade vinha da Cruz de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Talvez como consequência do esfriamento do
espírito cristão, heresias começavam a se infiltrar por toda parte.
O vento sopra onde quer (Jo 3, 8)
Três origens bem diversas, três
experiências desiguais, três carismas distintos. Proveniente da
burguesia, Francisco levava seus filhos espirituais a darem o exemplo do
desapego aos bens do mundo, na alegria e no amor à cruz; Domingos, da
nobreza castelhana, queria ver seus discípulos defendendo a pureza da
doutrina da fé; o plebeu Ângelo e seus irmãos carmelitas eram chamados a
mostrar as excelências do recolhimento e da contemplação, mesmo quando
engajados no apostolado ativo.
As três ordens diferiam muito, mas
um ponto sobretudo as unia: eram vozes proféticas, suscitadas pelo
Espírito Santo para enriquecer e auxiliar a Igreja.
Ele sempre
tem atuado assim ao longo da História da Salvação, suscitando múltiplos
carismas segundo as circunstâncias e necessidades: "Há diversidade
de dons, mas um só Espírito. Os ministérios são diversos, mas um só é o
Senhor. Há também diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo
em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito
comum" (1 Cor 12, 4-7).
Desde os homens e mulheres dos sécs.
I e II, organizados para praticar a virgindade e se auxiliarem
mutuamente, até os eremitas do séc. III; desde os primeiros cenóbios até
a fundação beneditina, que havia de moldar a Europa cristã; desde as
ordens de cônegos regulares, passando pelas ordens de cavalaria, as
hospitalares, as de redenção dos cativos, as mendicantes até as dos
clérigos regulares, aparecidos na época da grande crise que sacudiu a
Igreja no século XVI; desde, por fim, as congregações clericais e
laicais, as sociedades clericais de vida em comum até os institutos
seculares, já no século XX - tudo foi obra do Espírito.
"O vento sopra onde quer; ouves lhe o ruído, mas não
sabes de onde vem, nem para onde vai" (Jo 3, 8), disse Jesus, para
mostrar como o Espírito Santo se comunica a quem quer e dos modos mais
diferentes. Como acabamos de ver, foi o que se verificou durante 20
séculos no tocante aos cristãos que se associam em famílias espirituais.
O que foi reservado para nossos dias?
A vocação da "consecratio mundi"
Durante muito tempo, até cerca de 100
anos atrás, o conceito de vocação era reservado para exprimir o chamado
de Deus para o sacerdócio e para a vida religiosa. A partir do
pontificado de São Pio X (1903-1914), o aparecimento e a expansão de
movimentos laicais levou a uma ampliação desse conceito, tornando-o
aplicável também à vida dos leigos. Isso é o que mostra Frei Armando
Bandera OP, conceituado teólogo espanhol (1).
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Pio XII: "A consecratio mundi é essencialmente obra dos próprios leigos." |
Falou-se de vocação para o matrimônio,
para o celibato, para a santidade. Também da vocação de membro ativo do
Corpo Místico de Cristo. Segundo anota Frei Armando Bandera, viu-se que
Deus pode prover vocações não especificamente religiosas para fins de
grande alcance.
Um importante passo nesse desenvolvimento se deu quando Pio XII declarou: "As
relações entre a Igreja e o mundo exigem a intervenção dos apóstolos
leigos. A consecratio mundi é essencialmente obra dos próprios leigos"
(2).
Todos os Papas posteriores, incluindo João Paulo I em
seu curto pontificado de 33 dias, retomaram essa expressão,
explicitando-a, tirando- lhe as conseqüências, e mostrando como incumbe
aos leigos essa consagração, sacralização ou santificação do mundo.
O encargo de edificar e santificar a ordem temporal
Paulo VI tinha particular apreço por
esse tema. Certa vez ele explicou que essa vocação implicava resistir
aos males de nosso tempo: "Outra tarefa [dos leigos] foi explicitada
por um termo que, nos últimos anos, tornou- se um conceito básico: a
consecratio mundi, a santificação do mundo. O mundo é um campo de
atividade ao qual os leigos são chamados. O curso natural das coisas
neste mundo, dependente de milhares de fatores que não podemos citar
agora em detalhe,
empurra os acontecimentos numa direção que os pensadores de hoje,
saudando-a ou condenando-a, chamam de ‘secularização', ‘laicização' ou
‘dessacralização'. (...) O apostolado dos leigos deve opor-se a essas
correntes" (3).
O Concílio Vaticano II dedicou vários textos
à questão do apostolado dos leigos, com destaque para a constituição
Apostolicam actuositatem, na qual diz que lhes cabe auxiliar a Igreja a "penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais" (n. 5).
Uma riqueza de carismas a serviço da Igreja e dos irmãos
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Paulo VI: "O mundo é um campo de atividade ao qual os leigos são chamados." |
Como outrora, em nossa época o Espírito
Santo tem inspirado os fiéis a se associarem, mas chegou a hora dos
leigos. "Pode-se falar de uma nova era associativa dos leigos", escreveu
João Paulo II, completando que, "brotaram movimentos e sodalícios
novos, com fisionomia e finalidade específicas: tão grande é a riqueza e
a versatilidade de recursos que o Espírito infunde no tecido eclesial e
tamanha é a capacidade de iniciativa e a generosidade do nosso laicato"
(4).
Meramente folheando o "Repertório das
Associações Internacionais de Fiéis", publicado pelo Pontifício Conselho
para os Leigos, temos uma idéia da extensão desse fenômeno. São mais de
300 páginas, descrevendo 123 associações, movimentos eclesiais e
comunidades que receberam a aprovação oficial da Santa Sé.
Envolvem
milhões de fiéis atuando nos mais variados campos, com a criação de
obras culturais, sociais, educativas e caritativas. Levam um incontável
número de pessoas à recuperação da fé, à conversão, à inserção na vida
eclesial, e se tornaram uma abundante fonte de vocações sacerdotais e
religiosas. De outro lado, têm papel fundamental em muitas iniciativas
da Igreja, como, por exemplo, as Jornadas Mundiais da Juventude.
A
riqueza dos carismas, das finalidades e das formas associativas causa
assombro. Segundo é explicado na página-web do Pontifício Conselho para
os Leigos, isso tornou árdua a preparação do "Repertório", sendo preciso
pôr uma atenção especial "na exposição dos carismas, que estão na
origem dessas realidades eclesiais, e para preservar os conceitos e as
palavras- chave que caracterizam essas experiências".
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João Paulo II: "Pode-se falar de uma nova era associativa dos leigos." |
Um mesmo é o Senhor
Coordenar e orientar esse vasto e
heterogêneo mundo, é função do Pontifício Conselho para os Leigos,
dicastério da Cúria Romana. Atualmente está ele sob a sábia e prudente
direção do Arcebispo Dom Stanisaw Riko, auxiliado por uma dedicada
equipe, à testa da qual está o secretário, Dom Josef Clemens, e cujo
subsecretário é um leigo uruguaio que dedicou sua vida à Igreja, o Prof.
Guzmán Carriquiry.
Uma das funções essenciais desse dicastério é
cuidar para que em cada associação se evite aquilo que pode quebrar a
unidade da fé e da disciplina. Desse modo, tudo estará conforme com os
dizeres do Apóstolo: "Há, pois, diversidade de graças, mas um mesmo é
o Espírito; e os ministérios são diversos, mas um mesmo é o Senhor" (1
Cor 12, 4-5).
(José Messias Lins Brandão; Revista Arautos do Evangelho, Fev/2006, n. 50, p. 32 à 34)
1) La vida religiosa en el misterio de la Iglesia; Madrid: BAC, 1984, p. 93.
2) Alocução aos participantes do II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, 5/10/1957.
3) Homilia no III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, 15/10/1967.
4) Exortação Apostólica Pós-sinodal Christifideles laici, n. 29.
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