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Corpus Christi – Ano A – 23/06/2011
REFLEXÃO
1ª. Leitura: Dt 8, 2 – 3 . 14b – 16a
O maná é memória da benevolência de Javé. O trecho pertence ao segundo discurso de Moisés (5,1-11,32). Uma característica desse discurso é fazer memória do passado, sobretudo das ações de Javé em favor do seu povo. Os vv. fazem parte da pedagogia de Deus no deserto (vv.2-3), como preparação para a entrada na terra prometida (vv.14b-16).
Contra a tentação do esquecimento de Javé, o autor propõe o remédio da memória, não só do Senhor, mas também de sua ação na história do povo.
O capitulo 8 é escrito com a perspectiva da prosperidade econômica na terra, que se transforma em tentação ao favorecer uma concepção imanente (=sem Deus) da vida.
O ciclo produção-consumo se explica por si. Ele se justifica e se fecha à intervenção de Deus: sua explicação é a força e o talento humanos aplicados a uma terra boa.
Deus desaparece do horizonte prático: é esquecido; não é necessário nem para realizar o processo nem para explicá-lo. O resultado é que o povo peca contra o primeiro mandamento da lealdade total.
O autor evoca dois episódios do passado no deserto: o maná (vv.3,16a; cf.Ex 16) e a água (v.15; cf. Ex 17,1-7; Nm 20,1-13). Quarenta anos de deserto, fome, serpentes venenosas, escorpiões e falta de água descrevem a vida precária dos hebreus dependentes de Javé.
A maravilha do maná até então desconhecido (duas vezes afirma-se que os antepassados o desconheciam – vv.3.16a) aponta para a solicitude de Deus e a incapacidade do povo em prover sua subsistência. O texto é um duro golpe à auto-suficiência demonstrada posteriormente quando esse texto deve ter sido registrado por escrito.
A memória da precariedade do deserto e da benevolência de Deus para com seu povo tinha finalidade pedagógica: mostrar ao povo que o ser humano não vive somente de pão, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus (v.3), ou seja, os mandamentos (v.2), compromisso de aliado de Javé.
A pedagogia é apresentada como humilhar e pôr à prova (v.2), dobrando a auto-suficiência, para que o povo não se esqueça do Senhor Deus que o tirou do Egito, da casa da escravidão (v.14b).
2ª. Leitura: 1 Cor 10, 16 – 17
Há um só pão … somos um só corpo!
Em 1Cor 8,1-11,1 Paulo aborda longamente o tema das carnes sacrificadas aos ídolos. Em Corinto havia muitas divindades com seus santuários, sacerdotes, ritos e sacrifícios de animais. Parte dessas carnes era consumida nos rituais e parte era vendida nos açougues e nas feiras.
Muitos cristãos de Corinto certamente já haviam participados desses banquetes e comprado para consumo carnes oferecidas aos ídolos no tempo em que eram pagãos. (Para os pobres era praticamente a única chance de comer carne). Além disso, entre os cristãos dessa cidade havia pessoas de fé esclarecida (os fortes) e pessoas de fé não muito esclarecida (os fracos).
Os fortes diziam que há somente um Deus, e que, portanto, participar de um banquete ritual ou consumir carnes oferecidas aos ídolos não tinha nenhum problema. Os fracos diziam o contrário: participar de um banquete sagrado ou consumir carnes imoladas aos ídolos é idolatria e comunhão com os ídolos.
E o que Paulo pensa? Paulo concorda com a tese dos fortes, mas desaprova seu comportamento exibicionista, pois agindo dessa forma, põem a perder o irmão fraco na fé, pelo qual Cristo deu a vida. E para não perder ou escandalizar o fraco, urge repensar as teses dos fortes.
Paulo crê na liberdade da pessoa que não pode ser cerceada nem diminui se ela se abstém de comer essas carnes em favor dos fracos, embora mantendo a convicção interior de que pode ser consumida sem problema (pois nada significa, visto que o ídolo não é Deus).
Paulo, com os dois versículos, se põe do lado dos fracos e alerta os fortes para que não caiam na idolatria. Os cristãos de Corinto também celebram um banquete – a Ceia do Senhor. E o que aprenderam? Que o cálice da bênção, do qual eles participam, é a comunhão com o Sangue de Cristo e o pão partido é comunhão com o Corpo de Cristo (v.16).
As comunidades se reuniam em pequenos grupos nas casas e celebravam a Ceia do Senhor com um único pão. Paulo aproveita para estabelecer um paralelo: um só pão alimenta um único corpo – a comunidade – compostos de muitos membros. Assim cria-se um laço firme: o Corpo de Cristo eucarístico não pode ser dissociado do corpo eclesial de Cristo – a comunidade: “e como há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois participamos todos desse único pão” (v.17).
Evangelho: Jo 6, 51 – 58
O evangelho de João não traz, como os sinóticos, a instituição da Eucaristia. Na última Ceia de Jesus – de acordo com este evangelho que não celebra a Páscoa judaica – narra-se apenas o episódio do lava-pés.
Esse detalhe é significativo e nos leva à constatação de que as comunidades joaninas, (nas primeiras décadas de sua existência), não celebravam a Eucaristia. O motivo parece ser este: quem permanece unido à videira e produz frutos (Jo 15) não precisa de um sinal externo e visível de comunhão com Jesus.
Com o passar do tempo surgiram conflitos internos nas comunidades joaninas (explicitados na 1 Jo) que não sabiam resolvê-los adequadamente. Recorreram, então, às comunidades hierarquizadas (ligadas a Pedro), que as socorreram, mas que fizeram exigências, entre elas, a questão da Eucaristia.
Note-se que nesse final do 1º. século, o evangelho de João ainda está em fase de redação (que durou décadas). Além disso, já se notava certo desleixo quanto à Ceia do Senhor, a Eucaristia. É nessas condições que surge o trecho da liturgia de hoje. Sem falar da instituição da Eucaristia, – porque a supõe , – o 4º. Evangelho aprofunda, na metáfora do comer a carne e beber o sangue, o sentido inalienável da Eucaristia.
Aquele que come deste pão, viverá para sempre. Veremos o textos em três itens:
a. Jesus é o pão vivo descido do céu – v. 51
b. alimento de vida eterna – vv. 52-55
c. comunhão com Jesus e o Pai – vv. 56-58
a. Jesus é o pão vivo descido do céu – v. 51
O v. 51: “ eu sou o pão vivo descido do céu” funciona como eixo entre o discurso do pão da vida (6,31-50) e o discurso eucarístico (6,52-58). Mistura temas já abordados anteriormente (“eu sou o pão vivo que desceu do céu” e “quem come deste pão viverá para sempre”) com o tema que será desenvolvido a seguir: a identificação do pão com a carne.
A expressão “quem come deste pão viverá para sempre” se encontra no começo e no fim do discurso eucarístico (vv. 51 e 58). Nunca é demais recordar que pão é sinônimo de “dom/presente”, a prova maiúscula do amor do Pai pela humanidade (cf.3,16: “Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho único, para que quem crer não pereça, mas tenha a vida eterna”).
b. alimento de vida eterna – vv. 52-55
A identificação do pão com a carne de Jesus arrepia as autoridades judaicas, pois a entendem materialmente. Há vários temas do AT referindo-se a esse tema (Jr 19,9;Is 9,19; Sl 27,2; Ez 39,17), bem como a proibição de consumir sangue (Gn 9,4; Lv 17,14). Mas … Jesus, ao invés de atenuar, reforça a exigência para se ter vida: “se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seu sangue não terão a vida em vocês” (v.53). Carne e sangue são na cultura semita polaridades que denotam totali-dade, integralidade. Portanto, a afirmação de Jesus significa alimentar-se do Filho do Homem inteiro, sem divisões.
Sabemos que tudo o que comemos e bebemos se torna nossa carne, nosso sangue, energias para a vida. É isso que as comunidades joaninas queriam recuperar numa época de descaso com a Eucaristia. Comer a carne e beber o sangue de Jesus não é mero ato de piedade, mas uma espécie de encarnação do Filho do Homem em nossa vida, de modo que nossas ações, palavras, sentimentos … se tornem suas ações, palavras, sentimentos … ou seja … que ele aja, fale e sinta em nós e por meio de nós.
Nosso organismo assimila tudo o que comemos ou bebemos. Assimilar significa “converter em substância própria” e também “tornar-se semelhante”. Essas duas acepções revelam o que Jesus afirma: “a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida” (v.53).
c. comunhão com Jesus e o Pai – vv. 56-58
A estreita comunhão entre Jesus e o Pai (bem conhecida no evangelho de João) é salientada desde o começo (1,1), quando se diz que a Palavra estava junto de Deus e voltada para Deus, e também depois que se fez homem, ela continua voltada para o Pai (1,18). Esse evangelho tem afirmações que não existem nos outros: “Eu e o Pai somos um” (10,30); “quem me viu, viu o Pai” (14,9), etc. Pois bem, essa comunhão estreita e forte entre Jesus e o Pai se estende aos que comem a carne e bebem o sangue do Filho do Homem.
A vida que o Pai partilha com o Filho é partilhada também com quem adere ao Filho, formando uma trindade de comunhão: “quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele. E como o Pai que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, aquele que me recebe como alimento viverá por mim” (vv. 56-57).
R e f l e t i n d o . . .
A Liturgia da Palavra concentra sua atenção na ação de Deus que provê o alimento para seu povo. A palavra do salmista resume este gesto divino: “te dá como alimento a flor do trigo… nenhum povo mereceu tanto carinho”. Os textos bíblicos indicam a preocupação que Deus tem com a vida de sua gente, de modo que eles não pereçam na travessia que realizam neste mundo.
Para os judeus a multiplicação do pão significou saciação material; para Jesus, significa o dom de Deus que desce do céu e que é ele mesmo em pessoa. Depois da multiplicação dos pães, Jesus explicou o sinal que acabava de fazer: significava que ele mesmo é “o pão que desce do céu” como um presente de Deus à humanidade.
E no fim explicou um sentido mais profundo ainda deste mesmo sinal: o sentido que celebramos na Eucaristia = alimentarmo-nos de Cristo, não somente escutando sua palavra, mas recebendo o dom de sua Carne e Sangue “dadas para a vida do mundo” (v.51). Tomando o pão e o vinho da eucaristia, recebemos Jesus como verdadeiro alimento e bebida. A sua vida, – dada para a vida do mundo, – até a efusão de seu sangue, torna-se nossa vida, para a eternidade.
“Eu sou o pão vivo descido do céu (…) e este pão é a minha carne” (Jo 6,51). Com esta afirmação eloqüente abre-se o discurso do Pão da Vida; discurso este que começa um pouco antes quando Jesus cita a dádiva do céu, o maná.
Este dom do Cristo vale muito mais que o maná, com o qual Deus alimentou os judeus no deserto. O pão e o cálice, recebidos na fé, nos fazem participar da vida que Cristo viveu até a morte por amor, e nos unem em comunhão com os irmãos .
Celebrar é tornar presente. Receber o pão e o vinho da Eucaristia significa assumir em nós mesmos a vida dada por Jesus até morrer por todos nós, em corpo e sangue. Significa “comunhão” com esta vida, viver do mesmo jeito. E significa também comunhão com os irmãos, pelos quais Cristo morreu (“um só pão”).
Paulo nos lembra que o cálice sagrado da bênção e o pão repartido na assembléia são participação e comunhão do Sangue e do Corpo do Senhor; participação do “mistério” que nos faz reviver a doação do Cristo e realizá-la em nossa vida. E essa comunhão do único pão nos torna o único Corpo de Cristo..
Portanto, a festa de Corpus Christi não é veneração supersticiosa de um pedacinho de pão, nem uma ocasião de procissões triunfalistas pelas ruas.
É um comprometimento pessoal e comunitário com a vida de Cristo, dada por amor até a morte.
É o memorial da morte e ressurreição do Cristo (oração do dia), mas não um mausoléu ; é um memorial vivo, no qual assimilamos o Senhor, mediante a refeição da comunhão cristã, saboreando a glória futura (oração final).
Merece atenção também a oração sobre as oferendas, que utiliza o simbolismo do trigo e da uva reunidos até formarem pão e vinho, para simbolizar a unidade da Igreja em Cristo.
Pois, a festa de Corpus Christi é também a festa do seu Corpo Místico, a Igreja, que ele nutre e leva à unidade da mútua doação.
Na Eucaristia torna-se presente para nós o dom da vida de Cristo. Deve também tornar-se presente para os irmãos o dom da nossa vida eucaristizada pelo pão e o vinho. Eucaristia que se torna fecunda e atuante pelo dom de nossa própria vida, na caridade e na solidariedade profunda e radical (como Cristo… amou-nos até o fim!). A partir do pão eucarístico mister se faz re-atualizar o pão do maná descido do céu, mediante nossas mãos e nosso coração eucaristizados. … Jesus fez assim: antes de falar da eucaristia, ele multiplicou o pão comum às multidões famintas!
Vivemos num tempo de devoções em alta. Todavia, elas não podem obscurecer a fé da qual nascem e para a qual devem tender. Nem sempre é assim. A prática devocional encobre muitas vezes o mistério central da vida cristã, o mistério pascal: Cristo crucificado, morto e ressuscitado. Em uma época propícia ao individualismo, torna-se freqüente a busca da vivência privada da fé. Esquecemo-nos que Deus é um Deus de todos, que olha por todos, que faz nascer o sol sobre todos e que enviou Jesus para salvar a todos. Esquecemo-nos disto e fazemos nosso “deusinho” particular, só para nós, ao nosso modo, à nossa imagem e semelhança.
Dentro dessa visão devocional acerbada, recordamos de uma época, não muito distante, em que as pessoas iam à Missa para “ver” a hóstia sagrada. Assistimos, agora, a uma “necessidade de tocar” a Custódia, o Hostensório que passeia pela nave da igreja: não seria um retorno a uma compreensão bem limitada do sacramento que encobre o seu mais profundo sentido e desvia (reduz, enfraquece e apouca) o objetivo central da fé na vida dos fiéis.
Aquilo que se celebra hoje brota do memorial da paixão do Senhor. A Eucaristia não é um amuleto supersticioso, mas é o próprio sustento no caminho histórico dos discípulos e discípulas do Senhor. Necessariamente, a vida eterna se desdobra em unidade e paz. É exatamente isso que a celebração da Eucaristia produz: comunhão com Deus sacramentalizada na comunhão com os irmãos. Este é o destino do Corpo e do Sangue do Senhor: gerar em nós sua Palavra: o “pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,51).
Não se pode esquecer que com o “Pão do Céu” vem o “Verbo da Vida”, com a finalidade de garantir vivos os que dele comem. Na Oração Eucarística (quando acompanhada com piedade e inteligência), vemos claramente que a eucaristia tem como fim, objetivo último, a transformação dos que comungam no próprio Cristo. Nenhuma concepção devocional, (ainda que carregada de boas intenções e sentimentos religiosos positivos), alcançará a profundidade do mistério que ali se realiza: a real possibilidade de nos tornarmos “um“ com o Cristo, associando-nos ao seu mistério pascal: vida, missão, paixão-morte, ressurreição.
A solenidade de Corpus Christi nos ajuda a perceber qual é o significado da vida cristã:
– ser no mundo memória permanente da Palavra de Jesus;
– ser na história humana o sacramento de seu Corpo e Sangue (presença).
– Nesta vida presente, cheia de sinais de morte e de violência, deve tomar corpo a voz de Deus.
Aquele que come deste pão viverá para sempre. Vida para sempre: trata-se não apenas de uma vida contínua e sem fim, mas do seu acesso ao “modo divino” de viver. Esta distinção é importante uma vez que o evangelho nos diz que Jesus vive por causa do Pai (que permanece nele) e aqueles que de sua carne comerem e de seu sangue beberem, igualmente viverão por sua causa (porque Jesus permanecerá neles). E o texto de João é claro ao afirmar que se trata de uma vida para o “agora”: “quem come da minha carne e bebe do meu sangue tem a vida eterna” (e não apenas para o além-túmulo). A vida no sentido escatológico se liga à vida histórica neste mundo. É fazendo nossa travessia por esta terra que fazemos (ou não) a opção de trazer no coração e na vida a Palavra de Deus encarnada.
A†Ω
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