Antes de tudo se deve dizer que a santidade da vida consagrada e/ou sacerdotal não depende da psicologia, mas da ação gratuita de Deus. Entretanto, os elementos psíquicos podem dispor a pessoa a receber mais ou menos favoravelmente a ação de Deus.
Supondo que todas as demais condições sejam iguais, é mais eficaz o/a consagrada/a ou o sacerdote que não tem bloqueios psíquicos do que quem é condicionado por eles.
Deus santifica apesar dos defeitos psíquicos, nunca graças a eles. Por isso, podemos dizer que a estrutura psicológica da personalidade é um fator que "predispõe" e não que "causa" a ação da graça.
Educar para a vocação significa ter uma abertura contínua para os valores e não buscar um mero aperfeiçoamento de si mesmo que é, quando muito, uma conseqüência da mencionada tensão de abertura.
Existem dentro da pessoa resistências - inconsistências- que impedem a realização plena dos ideais vocacionais. Podemos nos sentir bloqueados/as crescimento humano e espiritual sem que haja má vontade de nossa parte, aliás, não abstante nossa boa vontade. Por isso, quando se fala de inconsistências psicológicas que podem constituir obstáculo ao crescimento vocacional, exclui-se qualquer pretensão de julgamento moral.
Conforme quanto afirma Manenti:
1) A meta da vida humana (não só religiosa ou sacerdotal) é a transcendência de si mesma: a pessoa não é feita para se satisfazer e buscar a auto-realização. Embora seja verdade que a satisfação e a realização de si mesmo/a tenham um lugar na vida humana, não são o seu último fim. Ser pessoa quer dizer orientar-se para algo acima e além de nós mesmos/as, algo ou Alguém, um significado a realizar ou um outro ser a encontrar e amar. Existir significa "perder-se".
2) Esta orientação é para os valores: imitação de Cristo e união com Deus, com a castidade ou celibato como sinal de liberdade do coração para servir melhor aos irmãos pelo Reino, a obediência ao plano divino como meio e expressão de imitação de Cristo, a pobreza como fruto do amor pelos pobres e excluídos de todos os sistemas.
3) A realização de si mesmo/a como efeito colateral da transcendência de si: Uma autêntica realização dos valores vocacionais leva a pessoa a realizar também todas as suas potencialidades. Quanto mais alguém perde a vida pelo Reino, tanto mais a reencontra. A realização de si é um efeito da transcendência de si. A vida religiosa e/ou presbiteral não é sinônimo de tristeza e depressão, mas é promessa de uma verdadeira realização de si.
4) Esta realização é uma conseqüência de eficácia apostólica: Não se deve confundir eficácia com eficiência. A primeira consiste na capacidade de realizar e testemunhar os valores fundamentais e estruturais; a segunda consiste simplesmente no bom uso dos meios disponíveis. Ser eficazes significa testemunhar Jesus Cristo e não nossas habilidades. A capacidade de viver de modo interiorizado os valores religiosos predispõe para a realização de si, para a eficácia apostólica.
5) Capacidade de internalização: O fator central para a perseverança e a eficácia apostólica é a capacidade de internalização dos valores vocacionais. A pessoa internalizou os valores quando não só os conhece intelectualmente, não só os aceita emotivamente, mas também vive segundo esses valores, isto é, quando os valores conhecidos e aceitos constituem também o motivo que está na base do modo de pensar e agir próprio.
Não obstante a proclamação dos valores vocacionais, o que nos dirige, freqüentemente, são as nossas necessidades e os nossos temores. Muitas vezes os valores não são amados por aquilo que são em si mesmos, mas pelo que nos podem proporcionar ou que nos ajudam a esconder.
6) As inconsistências psicológicas dificultam de modo mais ou menos grave a capacidade de internalizar os valores vocacionais.
Paulo viu essa realidade agindo na própria vida: "Não faço aquilo que quero, mas o que detesto; sou capaz de querer o bem, mas não de realiza-lo; realmente não faço o bem que quero, mas o mal que não quero" (Rm 7,16-19).
O conflito é entre duas estruturas psicológicas da personalidade. Não adianta tentar resolve-lo oferecendo ulteriores conhecimentos intelectuais.
7) As inconsistências psicológicas favorecem a busca de valores não objetivos nem livres.
A percepção subjetiva da vida sacerdotal, por exemplo, faz que se busque adaptar a palavra de Deus à própria mentalidade com manipulação subconsciente da palavra. Não há conversão do coração.
8) A incapacidade ou dificuldade de internalizar os valores vocacionais tem conseqüências no comportamento.
As disposições psicológicas não tocam a santidade, mas a eficácia apostólica. Antes de tudo a pessoa gastará muito de seu tempo e quase todas as suas energias para aliviar a tensão interior ao invés de transcender-se na busca do Reino de Deus e de sua justiça.
Além disso, é incapaz de escutar as mensagens que lhe vêm de diversas pessoas e acontecimentos e também da Palavra de deus.
Antes de tudo a pessoa gastará muito de seu tempo e quase todas as suas energias para aliviar a tensão interior. Por viver em estado de tensão e de ameaça, tende a reagir de modo defensivo e não criativo diante de novas situações.
Toda educação que tem como objetivo a estrutura ao invés da pessoa está destinada à falência.
É da capacidade que o indivíduo tem de internalizar que depende uma perseverança capaz de ser eficaz e criativa. Isso significa que sonhar com a volta às estruturas do passado é um consolo ilusório: não é impondo regras ou apresentando injunções em forma de "documentos", "planos pedagógicos" que se educam as pessoas. É possível que se forme uma estrutura eficiente, mas não homens e mulheres eficazes.
Não se educa nem mesmo através de uma política empírica de novas experiências fundadas em bases frágeis e não sustentadas por suficiente autocrítica.
Para além das estruturas e das experiências, é preciso considerar o indivíduo. O verdadeiro problema é como ajudar o indivíduo a internalizar os valores vocacionais. O/a vocacionado/a deve ser ajudado/a assumir uma escolha de vida primeiro e depois uma forma de atividade pastoral que não se fundamente na busca da auto-realização, mas no desejo de perder-se pelo Reino.
A psicologia a serviço da vocação indica as leis fundamentais desse serviço à pessoa.
TRANSCENDÊNCIA E AUTO-REALIZAÇÃO
A auto-realização é uma conseqüência da realização dos valores trancendentais e não um fim em si mesma. Podemos conceber a personalidade humana como que construída sobre três grandes pilares: as necessidades, as atitudes, os valores.
Nós nos referimos a eles quando nos perguntamos: quem sou eu?
Isto quer dizer:
- que há dentro de mim? (necessidades)
- como uso o que tenho dentro de mim? (atitudes)
- com qual fim o uso? (valores)
As necessidades dizem que existe em mim uma energia interior que deve ser usada, a atitude realiza essa energia, com o fim de atingir algum valor ou antivalor.
Todas as pessoas têm as mesmas necessidades fundamentais: de afeto, autonomia, proteção, agressão... Elas não comportam uma conotação moral: "sentir" raiva não é pecado, "sentir" o desejo de possuir não é contra o voto de pobreza, "sentir" atração sexual não é uma culpa... Todas essas energias nos são doadas com a vida humana. Nós decidimos se e como "consentir" com o que sentimos.
Entre as necessidades fundamentais do homem, a mais importante é a da realização: um contínuo impulso a aproveitar os próprios talentos para metas que têm significados. Esta necessidade, sempre presente, não determina a pessoa humana. Depende da liberdade e maturidade de cada um dar-lhe o conteúdo e a direção que melhor entender. Aqui está o risco, e a responsabilidade humana: a vida é energia e, como toda energia, pode ser usada para iluminar ou para ofuscar.
O/A vocacionado/a que conteúdo e que direção dá à sua necessidade de realização?
Os conselhos evangélicos (e, antes ainda, o próprio batismo) dão uma direção bem-determinada à necessidade de realização: indicam que a única meta significativa da vida não é sustentar-se a si mesmo, mas viver para os valores transcendentes (união com Deus e seguimento de Jesus Cristo). O caminho do evangelho é o caminho da transcendência porque é o caminho do despojamento, da oblação de si pelos outros.
Realização que dizer: usar a energia psíquica - doada com a vida a cada pessoa - a serviço dos valores vocacionais. A auto-realização é o efeito colateral desta doação: quanto mais vivo de maneira livre os valores vocacionais, tanto mais me encontro realizada como consagrada, mas também como mulher.
ORIENTAÇÃO PARA OS VALORES.
Freqüentemente, paramos para verificar se os valores vocacionais estão presentes ou não. "Se reza tem vocação"; "é obediente? Mandemo-lo para frente"; "sabe conviver com as pessoas e dá bem o catecismo? Será um padre (ou uma freira) eficaz"; "tem boa comunicação? Amanhã se achará bem em todos os lugares".
Segundo este método, os comportamentos sempre exprimem valores. Supõe-se uma adequação entre viver um papel e viver ou internalizar valores. Mas não é sempre assim.
Um estudante de teologia...
Esse seminarista era capaz de experimentar papéis diferentes, mas não de viver os valores. Nos anos de formação, aprendera a ser como padre (realizar papéis), mas não a ser padre (internalizar valores); sabia dar bem o catecismo, mas não sabia ser catequista.
O verdadeiro discernimento vocacional não verifica tanto a simples presença dos valores vocacionais, mas a eficácia dos valores vocacionais presentes.
As verdadeiras perguntas são:
Por que reza?
Por que convive com as pessoas?
Por que é disponível?
Seus comportamentos são ditados pelos valores ou por suas necessidades pessoais?
Pode ser disponível com o fim de viver o valor da obediência, mas também porque tem medo de tomar posição diante da vida: pode conviver com as pessoas por um amor verdadeiro e espírito de serviço, mas também porque deseja inconscientemente receber agradecimento e louvor. O comportamento externo é o mesmo, mas a motivação subjacente é oposta: num caso é constituída por valores autênticos; noutro, pelo desejo de gratificar ou evitar as próprias necessidades emotivas.
O discernimento vocacional consiste, portanto, em ver se, e até que ponto, os valores proclamados se concretizam em atitudes de vida. Crescer na vocação significa transformar os valores conhecidos em valores importantes ou relevantes.
Discernir a motivação predominante do próprio agir.
A pergunta sobre "por que" se age é mais importante do que a pergunta pelo "que" se faz. Há comportamentos aparentemente iguais que nascem de motivações qualitativamente diferentes. Pode-se obedecer por disponibilidade para com o plano de Deus, mas também se pode fazê-lo para tornar-se agradável aos olhos dos superiores, ou então - ainda - porque a pessoa a quem se obedece é simpática. Podemos ler a Palavra de Deus para modelar-nos pelos exemplos de Cristo, mas também para afiar nossas armas contra os outros.
Todos estes motivos podem coexistir: Aliás, é muito difícil que a nossa ação seja só e sempre uma expressão de valores uma pura essência do Evangelho. Geralmente está misturada também com motivações menos nobres e genuínas e que sejam motivações inconscientes.
Por que obedeço? Por que contesto? Por que trabalho? Eis uma série de perguntas às quais se podem dar muitas respostas: porque creio nisso, porque me convém, porque desabafo, porque me sinto gratificado. Porque assim posso fugir. Por baixo de cada comportamento há uma gama de motivações possíveis, algumas belas, outras menos belas (iceberg)
Irmã Patrizia Lícandro, USC
( adaptação do texto de A. Manenti " Vocação, psicologia e graça" ed. Loyola)
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