Jubileu da Misericórdia: Misericordiae Vultus -
3ª Parte
11. Não podemos esquecer o grande ensinamento que ofereceu São
João Paulo II com a sua segunda encíclica, a Dives in misericordia, que então
surgiu inesperada suscitando a surpresa de muitos pelo tema que era abordado.
Desejo recordar especialmente dois trechos. No primeiro deles, o Santo Papa
assinalava o esquecimento em que caíra o tema da misericórdia na cultura dos
nossos dias: « A
mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece
opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a
tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito
de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme
desenvolvimento da ciência e da técnica nunca antes verificado na história, se
tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio
sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não
deixar espaço para a misericórdia. (...) Por esse motivo, na hodierna situação
da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes guiados por um vivo sentido
de fé, voltam-se quase espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de
Deus ».[9]
Além disso, São João Paulo II motivava assim a urgência de
anunciar e testemunhar a misericórdia no mundo contemporâneo: « Ela é ditada
pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a
intuição de grande parte dos contemporâneos, está ameaçado por um perigo
imenso. O próprio mistério de Cristo (...) obriga-me igualmente a proclamar a
misericórdia como amor misericordioso de Deus, revelada também no mistério de
Cristo. Ele me impele ainda a apelar para esta misericórdia e a implorá-la
nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo ».[10] Tal
ensinamento é hoje mais atual do que nunca e merece ser retomado neste Ano
Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: « A Igreja vive uma vida autêntica quando
professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do
Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador,
das quais ela é depositária e dispensadora ».[11]
12. A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus,
coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à
mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do
Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso
tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da
misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral
renovada. É
determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e
testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A
sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e
desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem
irradiar misericórdia.
A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste
amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e
mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser
evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas
associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa
deve poder encontrar um oásis de misericórdia.
13. Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do
Senhor: Misericordiosos como o Pai. O
evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: « Sede misericordiosos,
como o vosso Pai é misericordioso » (Lc 6,36). É um programa de vida tão
empenhativo como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos
ouvem a sua voz (cf. Lc 6,27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à
escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do
silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível
contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.
14. A peregrinação é um sinal peculiar no Ano Santo, enquanto
ícone do caminho que cada pessoa realiza na sua existência. A vida é uma
peregrinação e o ser humano é viator (latim = viajante), um peregrino que
percorre uma estrada até à meta anelada. Também para chegar à Porta Santa,
tanto em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoa deverá fazer,
segundo as próprias forças, uma peregrinação. Esta será sinal de que a própria
misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho e sacrifício. Por isso, a
peregrinação há de servir de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa,
deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus e comprometer-nos-emos a ser
misericordiosos com os outros como o Pai o é conosco.
O Senhor Jesus indica as etapas da peregrinação através das
quais é possível atingir esta meta: « Não julgueis e não sereis julgados; não
condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á
dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso
regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco » (Lc 6,37-38). Ele começa por dizer para não julgar nem condenar. Se uma
pessoa não quer incorrer no juízo de Deus, não pode tornar-se juiz do seu
irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o
Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas por
sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a
deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação e deixá-lo à mercê das
murmurações. Não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar
o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso
juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo. Mas isto ainda não é
suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para perdoar e
dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o obtivemos nós de Deus. Ser
generosos para com todos, sabendo que também Deus derrama a sua benevolência
sobre nós com grande magnanimidade.
Misericordiosos como o Pai é, pois, o « lema » do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama. Ele
dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca. Vem
em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que a oração diária da Igreja comece com
estas palavras: « Deus, vinde em nosso auxílio! Senhor, socorrei-nos e
salvai-nos » (Sal 70/69,2). O auxílio
que invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para conosco. Ele
vem para nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Ele
consiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia,
tocados pela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com
todos.
15. Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o
coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas
vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de
precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que
já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da
indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda
mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las
com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devida. Não nos
deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o
espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os
nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs
privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de
ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós
para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o
seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença
que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.
Não podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas
quais seremos julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem
sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se reservamos tempo
para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25,31-45). De igual modo
ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida, que faz cair no medo e
muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância em que
vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças desprovidas da ajuda necessária
para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e
aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de
ressentimento e ódio que levam à violência; se tivemos paciência, a exemplo de
Deus que é tão paciente conosco; enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os
nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes « mais pequeninos », está presente o
próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado,
chagado, flagelado, desnutrido, em fuga... a fim de ser reconhecido, tocado e
assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: « Ao
entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor ».[12]
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou da Divina
Misericórdia – do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de pontificado.
Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia
- Francisco bispo de Roma servo dos servos de Deus a quantos lerem esta carta
graça, misericórdia e paz.
Notas:
[9] João Paulo II, Carta enc.
Dives
in misericordia, 2.
[10] Ibid., 15.
[11] Ibid., 13.
[12] Ditos de luz e amor, 57.
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