ღ Por que
os cientistas têm fé no papa Francisco
A nova
encíclica da Igreja é a maior esperança para disseminar a mensagem da ciência
sobre as mudanças climáticas "Lanço um convite urgente para renovar o
diálogo sobre o futuro do planeta”, diz o documento de 190 páginas publicado no
dia 18 de junho.
Poderia ser de um relatório de ONGs ambientalistas. Ou de
cientistas que estudam o clima. Mas não. Trata-se de um documento religioso, a
primeira encíclica escrita exclusivamente pelo papa Francisco e que trata de
problemas ambientais, poluição e clima. Francisco preparava essa encíclica há
pelo menos dois anos. Consultou cientistas, ativistas e membros da Igreja.
Dom
Erwin Kräutler disse em entrevista a ÉPOCA no ano passado que o papa dedicasse
parte da encíclica à Amazônia – o que o pontífice fez. O resultado foi o
documento papal Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum, que tem o potencial
de se tornar uma das encíclicas mais poderosas da Igreja. Uma encíclica é uma
carta do papa abordando temas importantes para a Igreja e destinada aos
católicos. A carta pode tratar sobre questões de fé e costumes, mas muitas
vezes delibera sobre grandes temas políticos e sociais do momento. Por exemplo,
já houve uma encíclica defendendo o direito dos trabalhadores. Outra condenou o
nazismo. Assim como seus predecessores Leão XIII e Pio XII, Francisco escolheu
um tema urgente de sua época. “As mudanças climáticas representam um dos
principais desafios que a humanidade enfrenta em nossos dias”, escreveu o papa,
no Twitter. Francisco afirma que as mudanças climáticas são reais e causadas
pela ação humana por meio da emissão de gases poluentes na indústria, nos
escapamentos de automóveis e no desmatamento. Diz que quem mais sofrerá com os
efeitos devastadores de um clima desregulado serão os mais pobres.
O papa até
mesmo repreende as lideranças mundiais por não assinar um acordo contra o
aquecimento global. Não é à toa que a encíclica era tão aguardada por
ambientalistas. É irônico imaginar que os logo os cientistas tenham tanta fé no
poder evangelizador da Igreja. Mas realmente as palavras do papa podem ser o
maior trunfo para convencer a fatia da população mudial (especialmente nos
Estados Unidos) que ainda rejeita o consenso científico sobre o tema. A teoria
do aquecimento global começou no século XIX, com a descoberta de que alguns
gases da atmosfera absorvem calor. Hoje sabemos que a temperatura média do
planeta aumentou 0,8 grau célsius desde a Revolução Industrial, e a tendência é
continuar aumentando, estimulando eventos extremos em todo o mundo. Isso já é
um consenso científico. Ele foi reforçado diversas vezes pelo painel da ONU,
que reúne milhares de pesquisadores, o IPCC.
Também é reafirmado pelas grandes
academias de ciência do mundo, como a Sociedade Real Britânica e a Associação
Americana para o Avanço da Ciência, e por editoriais das principais revistas
científicas, como a Nature e a Science. O consenso científico sobre o clima não
conseguiu, no entanto, virar um consenso social. No Brasil, uma pesquisa da
Datafolha deste ano revela que as mudanças climáticas trazem pouca preocupação
a 10% dos brasileiros e nenhuma para 2% deles. Nos Estados Unidos, um estudo do
Centro de Pesquisas Pew diz que 48% da população não acredita em aquecimento
global provocado pela humanidade. A dificuldade em aceitar o que dizem os
cientistas sobre o clima é compreensível. Por dois motivos. O primeiro se deve
ao custo político e econômico de combater as mudanças climáticas. Será preciso
fazer mudanças profundas na economia e no estilo de vida das pessoas. Será
necessário transformar meios de transporte, de produção e de geração de
energia. Negócios prosperarão e outros sofrerão. É natural resistir a isso.
Alguns temem que, por trás da agenda ecológica, exista uma conspiração de
esquerda para impor limites ao mercado e às liberdades individuais. Ou mesmo
quebrar o capitalismo. Suspeitam que o discurso ecologista seja uma nova forma
de visão comunista, como a melancia (verde por fora e vermelha por dentro).
O
segundo motivo é espiritual ou filosófico. Admitir que o ser humano é capaz de
alterar o clima do planeta – em outras palavras, modificar a criação de Deus –
soa, para alguns religiosos, como uma grande arrogância humana. Superar essas
resistências não é tarefa para qualquer um. O cientista político americano
Andrew Hoffman, autor de um livro que explica como o debate climático foi
capturado por um embate cultural, diz que poucas vozes estão acima de divisões
ideológicas ou partidárias. O dono dessa voz deve ser carismático. Deve dilogar
com conservadores e liberais. Ter o respeito das pessoas de sua própria
religião, de outras crenças e até de ateus. Não ser acusado de defender as
elites nem de lutar contra elas. Ser ouvido por ricos e pobres, de países
desenvolvidos ou em desenvolvimento. O papa Francisco tem essas qualidades.
Isso não significa que seu sucesso será imediato.
Nos dias que se seguiram à
publicação da encíclica, diversas lideranças conservadoras criticaram o papa,
especialmente nos Estados Unidos. Pré-candidatos do partido Republicano a
Presidência americana, como Jeb Bush e Rick Santorum, disseram que, mesmo sendo
católicos, não seguirão as palavras do papa em suas propostas. A encíclica,
entretanto, foi bem recebida entre conservadores europeus e deverá ser
trabalhada por toda a hierarquia da Igreja Católica nos próximos meses,
chegando aos fiéis em cada paróquia. Os primeiros resultados podem aparecer no
final do ano, quando os líderes mundiais se reunirão em Paris para tentar
assinar um acordo climático global. A influência do papa pode ser o empurrão
que faltava para incluir os conservadores na difícil tarefa de conservar o
planeta.
ღ
Nenhum comentário:
Postar um comentário