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Misericordiae Vultus
Jubileu da Misericórdia
5ª Parte
20. Neste contexto, não será inútil recordar a relação entre
justiça e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste entre si, mas duas
dimensões duma única realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu
clímax na plenitude do amor. A justiça é um conceito fundamental para a
sociedade civil, normalmente quando se faz referimento a uma ordem jurídica
através da qual se aplica a lei. Por justiça entende-se também que a cada um
deve ser dado o que lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça
divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é entendida como a observância
integral da Lei e o comportamento de todo o bom judeu conforme aos mandamentos
dados por Deus. Esta visão, porém, levou não poucas vezes a cair no legalismo,
mistificando o sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça
possui. Para
superar a perspectiva legalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada
Escritura, a justiça é concebida essencialmente como um abandonar-se confiante
à vontade de Deus.
Por sua vez, Jesus fala mais vezes da importância da fé que
da observância da lei. É neste sentido que devemos compreender as suas
palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus e outros publicanos e
pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso mesmo: «Ide aprender o que
significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos,
mas os pecadores» (Mt 9,13). Diante da visão duma justiça como mera observância da
lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus procura
mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer
o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta sua
visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus
e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos
sobre os ombros das pessoas, anulando porém a misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não pode
obstaculizar a atenção às necessidades que afetam a dignidade das pessoas.
A propósito, é muito significativo o apelo que Jesus faz ao
texto do profeta Oseias: «Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios» (6,6).
Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos seus discípulos deverá
ser aquela que prevê o primado da misericórdia, como Ele mesmo dá testemunho
partilhando a refeição com os pecadores. A misericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão
fundamental da missão de Jesus. É
um verdadeiro desafio posto aos seus interlocutores, que se contentavam com o
respeito formal da lei. Jesus, pelo contrário, vai além da lei, a sua partilha
da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até
onde chega a sua misericórdia.
Também o apóstolo Paulo fez um percurso semelhante. Antes de
encontrar Cristo no caminho de Damasco, a sua vida era dedicada a servir de
maneira irrepreensível a justiça da lei (cf. Fl 3,6). A conversão a Cristo
levou-o a inverter a sua visão, a ponto de afirmar na Carta aos Gálatas: «Também nós
acreditámos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não
pelas obras da lei» (2,16). A sua compreensão da justiça muda radicalmente:
Paulo agora
põe no primeiro lugar a fé, e já não a lei. Não é a observância da
lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição,
traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se
agora a libertação para quantos estão oprimidos pela escravidão do pecado e
todas as suas consequências. A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50,11-16).
21. A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o
comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade
de se arrepender, converter e acreditar.
A experiência do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da
justiça na linha da misericórdia. A época em que viveu este profeta conta-se
entre as mais dramáticas da história do povo judeu. O Reino está próximo da
destruição; o povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de Deus e perdeu a
fé dos pais. Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar o
povo infiel: não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece a
devida pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: «Não voltará para o Egito,
mas a Assíria será o seu rei, porque recusaram converter-se» (Os 11,5).
E todavia,
depois desta reação que faz apelo à justiça, o profeta muda radicalmente a sua
linguagem e revela o verdadeiro rosto de Deus: «O meu coração dá voltas dentro de mim,
comovem-se as minhas entranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não
voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio
de ti e não me deixo levar pela ira» (11,8-9). Santo
Agostinho, de certo modo comentando as palavras do profeta, diz: «É mais fácil
que Deus contenha a ira do que a misericórdia». [13] É mesmo assim! A ira de Deus
dura um instante, ao passo que a sua misericórdia é eterna.
Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus;
seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só
não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela,
corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da
justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua.
Antes pelo contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isto não é o
fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus
não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num evento superior onde se
experimenta o amor, que está na base duma verdadeira justiça. Devemos prestar
muita atenção àquilo que escreve Paulo, para não cair no mesmo erro que o
apóstolo censurava nos judeus seus contemporâneos: “Por não terem reconhecido a
justiça que vem de Deus e terem procurado estabelecer a sua própria justiça,
não se submeteram à justiça de Deus. É que o fim da Lei é Cristo, para que,
deste modo, a justiça seja concedida a todo o que tem fé” (Rm 10,3-4). Esta
justiça de Deus é a misericórdia concedida a todos como graça, em virtude da
morte e ressurreição de Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre
todos nós e sobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da vida nova.
22. O Jubileu inclui também o referimento à indulgência.
Esta, no Ano Santo da Misericórdia, adquire uma relevância particular. O perdão de
Deus para os nossos pecados não conhece limites. Na morte e
ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seu amor que chega ao
ponto de destruir o pecado dos homens. É possível deixar-se reconciliar com
Deus através do mistério pascal e da mediação da Igreja. Por isso, Deus está
sempre disponível para o perdão, não Se cansando de o oferecer de maneira
sempre nova e inesperada. No entanto todos nós fazemos experiência do pecado.
Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5,48), mas sentimos fortemente o
peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça que nos transforma,
experimentamos também a força do pecado que nos condiciona. Apesar do perdão,
carregamos na nossa vida as contradições que são consequências dos nossos
pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que são
verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos
nossos comportamentos e pensamentos permanecem. A misericórdia de Deus, porém,
é mais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através
da Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo
das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no
amor em vez de recair no pecado.
A Igreja vive a comunhão dos Santos. Na Eucaristia, esta
comunhão, que é dom de Deus, realiza-se como união espiritual que nos une, a
nós crentes, com os Santos e Beatos cujo número é incalculável (Ap 7,4). A sua santidade
vem em ajuda da nossa fragilidade, e assim a Mãe-Igreja, com a sua oração e a
sua vida, é capaz de acudir à fraqueza de uns com a santidade de outros.
Portanto viver a indulgência no Ano Santo significa aproximar-se da
misericórdia do Pai, com a certeza de que o seu perdão cobre toda a vida do
crente. A indulgência é
experimentar a santidade da Igreja que participa em todos os benefícios da
redenção de Cristo, para que o perdão se estenda até às últimas consequências
aonde chega o amor de Deus. Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai o perdão
dos pecados e a indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.
23. A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as
fronteiras da Igreja. Ela relaciona-nos com o judaísmo e o islamismo, que a
consideram um dos atributos mais marcantes de Deus. Israel foi o primeiro que
recebeu esta revelação, permanecendo esta na história como o início duma
riqueza incomensurável para oferecer à humanidade inteira. Como vimos, as
páginas do Antigo Testamento estão permeadas de misericórdia, porque narram as
obras que o Senhor realizou em favor do seu povo, nos momentos mais difíceis da
sua história. O islamismo, por sua vez, coloca entre os nomes dados ao Criador
o de Misericordioso e Clemente. Esta invocação aparece com frequência nos
lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentem acompanhados e sustentados pela
misericórdia na sua fraqueza diária. Também eles acreditam que ninguém pode
pôr limites à misericórdia divina, porque as suas portas estão sempre abertas.
Possa este Ano Jubilar, vivido na misericórdia, favorecer o
encontro com estas religiões e com as outras nobres tradições religiosas; que
ele nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e
compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e desprezo e expulse
todas as formas de violência e discriminação.
24. O pensamento volta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A
doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós
redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a
profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado
pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado
entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no
mistério do seu amor.
Escolhida para ser a Mãe do Filho de Deus, Maria foi
preparada desde sempre, pelo amor do Pai, para ser Arca da Aliança entre Deus e
os homens. Guardou, no seu coração, a misericórdia divina em perfeita sintonia
com o seu Filho Jesus. O seu cântico de louvor, no limiar da casa de Isabel,
foi dedicado à misericórdia que se estende «de geração em geração» (Lc 1,50).
Também nós estávamos presentes naquelas palavras proféticas da Virgem Maria.
Isto servir-nos-á de conforto e apoio no momento de atravessarmos a Porta Santa
para experimentar os frutos da misericórdia divina.
Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, o discípulo do
amor, é testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus. O
perdão supremo oferecido a quem O crucificou, mostra-nos até onde pode chegar a
misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia do Filho de Deus não
conhece limites e alcança a todos, sem excluir ninguém. Dirijamos-Lhe a oração,
antiga e sempre nova, da Salve Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver
para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto
da misericórdia, seu Filho Jesus.
E a nossa oração estenda-se também a tantos Santos e Beatos
que fizeram da misericórdia a sua missão vital. Em particular, o pensamento
volta-se para a grande apóstola da Misericórdia, Santa Faustina Kowalska. Ela,
que foi chamada a entrar nas profundezas da misericórdia divina, interceda por
nós e nos obtenha a graça de viver e caminhar sempre no perdão de Deus e na
confiança inabalável do seu amor.
25. Será, portanto, um Ano Santo extraordinário para viver,
na existência de cada dia, a misericórdia que o Pai, desde sempre, estende
sobre nós. Neste
Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a
porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar conosco a sua
vida. A Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de
Deus. A sua vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia
seu convicto anúncio. Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como
a nossa cheia de grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a
todos no grande mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de
Cristo. A
Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da
misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus
Cristo. Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus,
brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte
nunca poderá esgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se
abeirem. Sempre que alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a
misericórdia de Deus não tem fim. Quanto insondável é a profundidade do
mistério que encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém.
Neste Ano Jubilar, que a Igreja se faça eco da Palavra de
Deus que ressoa, forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão,
apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sempre
paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de cada homem e mulher
e repita com confiança e sem cessar: «Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e
do teu amor, pois eles existem desde sempre» (Sl 25/24,6).
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou da Divina
Misericórdia – do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de pontificado.
Bula de Proclamação do Jubileu
Extraordinário da Misericórdia - Francisco bispo de Roma servo dos servos de
Deus a quantos lerem esta carta graça, misericórdia e paz.
Nota:
[13] Enarratio in Psalmos,
76, 11.
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