Começamos nossa exortação, caros filhos, conclamando-vos à santidade exigida pela dignidade de vosso cargo, pois quem é elevado ao sacerdócio exerce o ministério não só para si, mas também para os outros: "Todo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus" (Hb 5, 1).
O que está corrompido não pode conferir a saúde
Este mesmo pensamento exprimiu Cristo quando, para explicar a função própria dos presbíteros, os comparou à luz do mundo e ao sal da terra.
Ao sacerdote compete-lhe a tarefade arrancar as más ervas, lançar as boassementes, irrigar evigiar para que o inimigo não semeieentre elas o joio
São Pio X fotografado por Felici
|
Sem santidade de vida, deixará o sacerdote de ser sal da terra, pois o que está corrompido e contaminado não pode conferir a saúde, e onde falta a santidade é inevitável que habite a corrupção. Daí que, valendo-Se da mesma figura, o Mestre qualifique tais ministros de sal insípido que "para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens" (Mt 5, 13). [...]
Muito oportunamente insistia São Carlos Borromeu em seus discursos para o clero: "Se recordássemos, irmãos caríssimos, quantas e quão preciosas coisas colocou Deus em nossas mãos, como esta consideração nos estimularia a levar uma vida digna de sacerdotes! Que coisa deixou Deus de pôr em minhas mãos, se nelas pôs seu próprio Filho Unigênito, eterno e consubstancial a Si mesmo? Em minhas mãos depositou os seus tesouros, todos os Sacramentos, todas as suas graças: pôs as almas por Ele amadas como a pupila dos olhos, as quais amou mais do que a Si mesmo e remiu com seu Sangue; pôs o Céu, que posso abrir e fechar aos demais... Como poderia eu, à vista de tantas honrarias e tamanho amor, ser ingrato a ponto de pecar contra Ele, de ofendê-Lo e de conspurcar este corpo que Lhe pertence, de profanar esta dignidade, esta vida consagrada a seu serviço?".1 [...]
Cristo não muda no decorrer dos séculos
Vejamos agora em que consiste esta santidade, da qual o sacerdote não pode estar privado sem grave desonra, porque se expõe a grande perigo quem a ignora ou entende de forma equivocada.
Pensam alguns, e até claramente professam, que o mérito do sacerdote consiste apenas em entregar-se por inteiro ao bem dos outros. Negligenciando quase totalmente as virtudes que visam ao aperfeiçoamento pessoal - por eles chamadas de virtudes passivas -, apregoam a necessidade de empregar todos os esforços em adquirir e exercitar as virtudes denominadas ativas.
Esta doutrina é, sem dúvida, falaz e desastrosa. A respeito dela assim se exprime, com sua habitual sabedoria, nosso predecessor de feliz memória: "A ideia de que as virtudes cristãs não são oportunas em todos os tempos, só pode ocorrer a quem tenha se esquecido destas palavras do Apóstolo: ‘Os que Ele distinguiu de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho' (Rm 8, 29). A Cristo, mestre e modelo de toda forma de santidade, devem-se adaptar todos quantos almejam ser acolhidos no Reino dos Céus. Ora, Cristo não muda no decorrer dos séculos, mas ‘é sempre o mesmo: ontem, hoje e por toda a eternidade' (Hb 13, 8). Portanto, aos homens de todos os tempos se dirige esta palavra: ‘Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração' (Mt 11, 29); a todo momento Ele Se apresenta como ‘obediente até a morte' (Fl 2, 8); e vale para todas as épocas a sentença do Apóstolo: ‘Os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências' (Gal 5, 24)".2 [...]
Insistindo vivamente nesse dever, não podemos, entretanto, deixar de advertir, que tendo sido contratado por Cristo como operário "para sua vinha" (Mt 20, 1), o sacerdote não pode santificar-se apenas para si. Compete-lhe também a tarefa de arrancar as más ervas, lançar as boas sementes, irrigar e vigiar para que o inimigo não semeie entre elas o joio.
Cuide, pois, o presbítero de não se deixar arrastar por um irrefletido desejo de perfeição interior que o leve a negligenciar qualquer uma das obrigações de seu ministério relativas ao bem dos fiéis: pregar a Palavra de Deus, atender Confissões, prestar assistência aos enfermos, sobretudo aos moribundos, instruir os ignorantes das coisas da Fé, consolar os aflitos, reconduzir os extraviados e em tudo imitar a Cristo, o qual "andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo demônio" (At 10, 38).
E, ao mesmo tempo, grave em sua mente esta advertência de São Paulo: "Nem o que planta é alguma coisa nem o que rega, mas só Deus, que faz crescer" (I Cor 3, 7). [...]
Somente a santidade nos torna acordes com nossa vocação
Na verdade, uma só coisa serve para unir o homem a Deus, torná-lo agradável a seus olhos e ministro não indigno de sua misericórdia: a santidade de vida e de costumes. Se faltar ao sacerdote esta santidade, que é a supereminente ciência de Jesus Cristo, faltar-lhe-á tudo. Pois sem esta ciência, a própria vastidão de uma requintada cultura - que nós mesmos nos empenhamos em promover entre o clero -, bem como a destreza e solércia nas atividades, mesmo quando produzam algum benefício à Igreja ou a alguns fiéis, são amiúde deplorável causa de prejuízos.
Grande é a dignidade dos sacerdotes, maior, porém, é sua ruína se pecam. Alegremo-nos por termos sido elevados, mas tenhamos pavor de cair
Ordenação sacerdotal nas catacumbas Gravura do início do séc. XX publicada
por Gérard Desgodets |
Somente a santidade nos torna acordes com as exigências da nossa vocação divina. Ela faz de nós homens crucificados para o mundo, e para os quais o mundo está crucificado; homens que caminham numa nova vida e que, como ensina São Paulo, "nas vigílias, nas privações; pela pureza, pela ciência, pela longanimidade, pela bondade, pelo Espírito Santo, por uma caridade sincera, pela palavra da verdade" (II Cor 6, 5-7) demonstram ser autênticos ministros de Deus, voltados exclusivamente para as coisas celestes e empenhados por inteiro em conduzir a elas as almas dos demais.
O sacerdote precisa ser exímio na oração
Como todos sabem, a santidade de vida é fruto de nossa vontade, fortalecida pela graça, da qual Deus nos provê largamente para que nunca nos falte. Basta apenas que a queiramos e a peçamos por meio da oração.
Oração e santidade estão tão intimamente relacionadas que uma não pode subsistir sem a outra. Assim, é decerto verdadeira esta sentença do Crisóstomo: "Julgo ser evidente para todos que sem auxílio da oração é impossível viver virtuosamente".3 E com fina argúcia conclui Santo Agostinho: "Sabe de fato viver bem quem sabe rezar bem".4
Estes ensinamentos, o próprio Cristo os confirmou com suas palavras e mais ainda com seu exemplo: retirava-Se sozinho nos desertos ou subia ao cume dos montes, passava noites inteiras orando, ia com frequência ao Templo, e até mesmo quando rodeado pelas multidões, elevava os olhos ao Céu e rezava diante de todos. Por fim, cravado na Cruz, em meio às dores da morte, dirigiu ao Pai a última prece, com lágrimas e um alto brado.
Tenhamos, pois, por certo e comprovado que, para estar à altura de sua dignidade e da tarefa a ele encomendada, o sacerdote precisa ser exímio na prática da oração. Com demasiada frequência temos a lamentar preces feitas mais por hábito do que por devoção; que em determinados momentos o Ofício seja rezado distraidamente ou substituído por algumas curtas orações; a ausência de momentos ao longo do dia dedicados a dialogar com Deus, elevando a alma à consideração das coisas celestes.
Mais do que qualquer outro homem, deve o sacerdote obedecer ao preceito de Cristo: "É necessário orar sempre" (Lc 18, 1). Com base nele, São Paulo insistia: "Sede perseverantes, sede vigilantes na oração, acompanhada de ações de graças" (Col 4, 2); "Orai sem cessar" (I Tes 5, 17). [...]
Tenhamos pavor de cair
Ai do sacerdote que não sabe comportar-se à altura de sua dignidade, que por sua infidelidade desonra o santo nome de Deus, perante o qual deve ser santo! A corrupção dos melhores é a mais grave entre todas. "Grande é a dignidade dos sacerdotes, maior, porém, é sua ruína se pecam. Alegremo-nos por termos sido elevados, mas tenhamos pavor de cair, pois a alegria por ter estado no alto será inferior à tristeza de nos precipitarmos para baixo".
Ai do sacerdote que se olvida de si próprio, negligencia a oração, rejeita a nutrição das leituras piedosas, nunca se recolhe para ouvir a voz da consciência que o acusa. Nem as sangrentas chagas de sua alma, nem os prantos da Igreja, sua mãe, conseguirão reerguer este infeliz, evitando-lhe ser golpeado por aquelas terríveis ameaças: "Obceca o coração desse povo, ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos, de modo que não veja nada com seus olhos, não ouça com seus ouvidos, não compreenda nada com seu espírito. E não se cure de novo" (Is 6, 10).
Que o Deus de misericórdia afaste de cada um de vós, diletos filhos, este triste presságio. Ele vê que nosso coração, inteiramente livre de rancor, é movido apenas pela caridade de pai e pastor: "Pois quem, senão vós, será a nossa esperança, a nossa alegria e a nossa coroa de glória ante Nosso Senhor Jesus, no dia de sua vinda?" (I Tes 2, 19).
Auxiliar e socorrer a Igreja em suas angústias
Vós mesmos podeis constatar, em qualquer lugar onde estejais, os tristes momentos pelos quais passa a Igreja, por impenetráveis desígnios de Deus. Considerai também o sagrado dever que tendes de assistir e socorrer em suas angústias esta Igreja que vos concedeu tão honrosa dignidade.
Hoje mais do que nunca, torna-se necessária ao clero uma virtude superior, sincera, exemplar, viva, operosa, prontíssima a tudo empreender e sofrer por Cristo. Isto é o que com mais ardor desejamos para todos e cada um de vós, e o pedimos a Deus com fervorosíssimas preces.
Floresça, pois, em vós com intemerato fulgor a castidade, exímio ornato de nosso clero. Graças a ela o sacerdote se torna semelhante aos Anjos, é considerado pelo povo cristão homem digno de todas as honras e colhe, assim, mais copiosos frutos de seu ministério.
Aliviar, defender, medicar, pacificar: seja esta a vossa meta, sedentos de conquistar e conduzir almas a Cristo
A árvore divina - Gravura de finais do
séc. XIX publicada por Friedrich Pustet, Regensburg (Alemanha) |
Perene e sincera sejam em vós a reverência e a obediência solenemente prometidas àqueles que o Espírito Santo constituiu pastores da Igreja. Acima de tudo, que a submissão devida a justíssimo título a esta Sé Apostólica una a ela cada dia mais, com estreitíssimos vínculos, vossas mentes e vossos corações.
Brilhe em cada um de vós aquela caridade que em nada procura seu próprio proveito, de tal modo que, reprimidos os impulsos da inveja e da ambição próprios da humana natureza, possais unir vossos esforços, com fraterna emulação, para dar maior glória a Deus. "Um grande número de enfermos, de cegos, de coxos e de paralíticos" (Jo 5, 3), multidão tão numerosa quanto digna de piedade, espera os socorros de vossa caridade.
À vossa espera estão, sobretudo, numerosos grupos de jovens, risonha esperança da pátria e da Religião, assediados de todos os lados pelas insídias e pelos perigos morais. Sede incansáveis em fazer o bem a todos, não só ensinando-lhes o catecismo, que recomendamos de novo e com maior empenho, mas também prestando-lhes todo auxílio possível inspirado por vossa prudência e dedicação.
Não manchemos nossa glória!
Aliviar, defender, medicar, pacificar: seja esta a vossa meta, sedentos de conquistar e conduzir almas a Cristo. Considerai quão laboriosos, infatigáveis e destemidos são os inimigos de Deus em sua ação para corromper de modo irreparável as almas!
Especialmente por este esplendor da caridade a Igreja Católica se alegra e se ufana de seu clero, que anuncia o Evangelho da paz cristã, que leva a salvação e a civilização até os povos bárbaros, onde por seus esforços apostólicos, não raramente selados com o sangue, dilata-se dia a dia o Reino de Cristo e resplandece com novas vitórias a santa Fé.
Diletos filhos, se em paga de vossa caridade receberdes ódio, afrontas, calúnia, como sói acontecer, não vos deixeis tomar pelo desânimo, "não vos canseis de fazer o bem" (II Tes 3, 13). Tende diante dos olhos os esquadrões de homens fortes, insignes tanto pelo número quanto pelos méritos, que a exemplo dos Apóstolos, se alegravam em suportar as mais cruéis torturas pelo nome de Jesus Cristo. Eram insultados e abençoavam (I Cor 4, 12). Somos filhos e irmãos dos Santos, cujos nomes resplandecem no Livro da Vida, cuja glória a Igreja celebra. "Não manchemos nossa glória" (I Mac 9, 10)! ² São Pio X. Excertos da Exortação Apostólica Hærent animo, 4/8/1908 - Tradução: Arautos do Evangelho
Nenhum comentário:
Postar um comentário