A ideia
fundamental que é ponto de partida para todas as outras ideias de um ser
inteligente é que ele existe. Seria impossível ao homem conceber
qualquer ideia se não tivesse o apoio da ideia de que algo é, pois,
ignorando o que é o ser, não saberia que algo é. Ser e essência - o
quid, o que a coisa é - são, portanto, as duas primeiras concepções do
intelecto, pressupostos de todas as demais ideias.
O homem
é,
portanto, a única criatura entre as materiais - racional e espiritual -
que, além de existir, sabe que existe, por possuir uma intuição, uma
noção que é anterior até mesmo a este elementar conhecimento intelectual
de si mesmo. Segundo o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "de fato há
algo anterior: a matéria-prima para a noção de ser é inata.1
Ela se
desperta no contato com a realidade. É um conhecimento germinativo
primeiro, é o conhecimento que o ser tem de que ele é. E algo, que não é
ele, é também.
Tem a capacidade de refletir: ele se conhece e conhece a
coisa, e refletindo desenvolve o primeiro conhecimento".2
Esta noção é
chamada de senso do ser. Este não exige nem mesmo o pleno uso da razão -
funciona como um hábito existencial -, e só a partir dele será possível
chegar a todos os outros conhecimentos.
Assim, quando a criança está ainda no
berço, com suas primeiras percepções, investigando o que existe, com um
olhar perscrutador, está no alvorecer do seu senso do ser posto já em
movimento, conhecendo. Tal noção de ser é sumamente substanciosa para o
homem, como alimento próprio à sua inteligência, pois é o que lhe
permite conhecer todas as coisas, garantindo-lhe a sanidade mental, uma
vez que se não fossem verdadeiras e reais suas apreensões, ele não
poderia fazer o uso reto de sua razão.
O mesmo Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira chega a afirmar: No espírito humano as regras da lógica
são subconscientes. A lógica não faz senão explicitar essas regras. Um
homem que não tivesse essas regras invisceradas, como coisas conaturais a
seu espírito, seria louco. Um espírito pode ser extremamente primitivo
e, ao mesmo tempo, inteiramente lógico. No subconsciente humano cabem
tesouros de filosofia, de conhecimento, que, embora implicitamente, são
condições para a sanidade mental.3
Esses estímulos iniciais e espontâneos
do ser humano, enquanto racional, lhe dão segurança na busca dos
objetivos aos quais foi destinado. Por exemplo, se forem dadas algumas
bolinhas de cores diferentes a um bebê, para brincar, ele vai escolher a
que mais lhe agrada; depois escolherá outra e assim sucessivamente. É a
busca instintiva do verdadeiro, do bem e do belo que o levará a
escolher uma das bolinhas como a principal, que para ele será a melhor e
mais bonita. São os reflexos que antecedem a capacidade de julgar
conforme princípios claros e estabelecidos.4
E a criança sabe que a bola
não é ela e que uma bola não é a outra. Tem inatos os princípios de
identidade e contradição: "o que é, é; o que não é, não é" e "o que é,
não é o que não é".5
Tal conhecimento já começa a
manifestar-se quando o bebê abre seus olhos para a luz, distinguindo seu
ser do de sua mãe; percebendo que o chocalho é real e verdadeiro, pois
escuta seu barulho, que o leite é branco e lhe satisfaz a sensação de
fome, sendo por isso bom, que a luz e as cores são atraentes e belas,
entretendo-o e fazendo com que ele queira conhecer e aprender mais e
mais. Tem ele uma intuição de que sempre há algo mais para conhecer,
para além daquela realidade que vê e apreende experimentalmente, ainda
sem compreender conceitualmente qualquer expressão abstrata e formal. Em
nenhuma época se aprende tanto como quando se é criança, e esta não
dissocia o entreter-se do compreender. "Neste nosso mundo de seres ao
qual ela acaba de aportar, o ser do homem desabrocha e exclama por
consonância com a verdade, bondade e beleza dos seres que observa".6
Sem saber ainda nenhum conceito
metafísico, está a criança ordenadamente conhecendo cada ente em suas
propriedades transcendentais - res, unum, aliquid, verum, bonum,
pulchrum -, seguindo a lógica de seu processo dedutivo, de modo
instintivo pelo seu senso do ser. Para o Fr. Garrigou-Lagrange, OP,7 a
primeira apreensão intelectual leva precisamente ao ser inteligível das
coisas sensíveis. Enquanto a vista alcança o real material, a forma e a
cor, a inteligência o alcança como real inteligível. Assim como o ouvido
alcança o real como sonoro, e o paladar percebe o mais ou o menos
gostoso, a inteligência o capta como real inteligível e verdadeiro. Tem
assim, em seu primeiro contato com as coisas, uma primeira noção confusa
do ser e do verdadeiro.
A partir daí, a inteligência busca o que excede
aos sentidos e à imaginação: as razões de ser das coisas, seu porquê,
sua causa. Por exemplo: por que um relógio se movimenta, razão que
nenhum animal pode perguntar-se.
Deste modo, nossa inteligência, desde o
primeiro contato com o real inteligível, compreende que o verdadeiro é o
que é, e o juízo verdadeiro é aquele que é conforme com a realidade.
Notas: -
1) O conceito "inato" é empregado
neste artigo no sentido de uma percepção intuitiva inerente ao próprio
ser humano - mesmo não tendo ainda ideias concebidas -, supondo o pleno
desenvolvimento do uso da razão para sua perfeita intelecção. De modo
que, se falta a um indivíduo a sanidade mental, ser-lhe-á inteiramente
impossível tomar consciência desta intuição, que se desperta no contato
com as realidades e circunstâncias exteriores.
2) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O alvorecer do senso do ser. São Paulo, 4 maio 1988. Palestra. (Arquivo IFAT).
3) Id. Considerações sobre o processo humano. São Paulo, 1973. Conferência. (Arquivo IFAT).
4)
Cf. CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Os dois filhos da parábola, e os dois
outros. Arautos do Evangelho, São Paulo, ano 4, n. 45, set. 2005, p.
7-8.
5) Para mais detalhes, ver: GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El
sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos
Aires: Desclée de Brouwer, 1945, p. 148-149.
6) CLÁ DIAS, João
Scognamiglio. O primeiro olhar da inteligência. Lumen Veritatis, São
Paulo, ano 3, n. 12, jul./set. 2010, p. 14.
7) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE. Op. cit. p. 330-332.
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