Leituras:
Is 58, 7 -10;
1 Cor 2, 1-5;
Mt 5, 13 -16
Até o símbolo mais sagrado da presença e do compromisso de Deus para com seu povo peregrino na história, o templo da Jerusalém terrestre, desaparece deixando o lugar à sua realidade, que é a presença de Deus penetrada na vida cotidiana do povo. Praças, ruas e lares coincidem com o templo, pois a vida dos habitantes da cidade santa corresponde à aliança para com Deus, e nesta correspondência entre vida e chamado de Deus realiza-se o verdadeiro culto ao Senhor. Ele é a luz que ilumina e orienta a vida dos habitantes da nova Jerusalém, e eles se tornam seu templo vivo.
No centro do “novo céu e da nova terra”, símbolo da renovação messiânica universal, preanunciada pelos profetas (Is 65,17) e realizada plenamente em Cristo, abrangendo pessoas e a criação inteira, está a nova Jerusalém, a esposa do Cordeiro, enfeitada por ele mesmo para a festa das núpcias.
O ideal do êxodo é finalmente atingido: “Vi também descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido” (Ap 21, 2).
Sonhos, fantasias? Fuga da ambígua e dura realidade do presente, à procura de consolo no imaginário? Quanta luz, esperança e força interior, projeta no precário caminho da história presente do povo de Deus esta visão da fé que antecipa a realidade escatológica que agora fica escondida no ventre materno da própria história! Ao longo dos séculos, ideologias filosóficas e políticas, e até intuições religiosas, não pouparam esforços para propor perspectivas de justiça, harmonia e paz que respondessem ao profundo anseio humano de plenitude da vida e da felicidade. Promessas messiânicas de auto-salvação. Com certeza algumas delas ajudaram numa certa medida o homem a fazer um trecho do caminho, mas muitas vezes falharam ao alcançar o objetivo principal prometido, e se transformaram em novas formas de escravidão humana e espiritual. É suficiente lembrar a dramática história do século vinte e das suas principais ideologias!
Mas mesmo as práticas religiosas não conseguem escapar ao risco da ilusão, - nos admoesta o profeta Isaías (1 leitura) - quando a elas não corresponde uma vida que assuma os horizontes e o estilo de Deus, que é a prática da justiça, o cuidado pelos necessitados e a dedicação em favor dos mais frágeis. “Assim diz o Senhor: Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos. Quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne. Então brilhará tua luz como aurora.... a frente caminhará tua justiça e a glória do Senhor te seguirá” (Is 58,7-8). “O caminho do justo – canta a LH do comum dos santos homens - é uma luz a brilhar: vai crescendo da aurora até o dia mais pleno”.
Uma vida que se deixa inspirar pelo estilo de Deus, é um caminho de profunda experiência da presença transformadora de Deus e de libertação. Ela está em continuidade com a saída do povo de Deus do Egito, quando o próprio Senhor guiava no deserto seu caminho para a terra prometida com a nuvem de dia e com a coluna de fogo de noite (cf. Ex 13,21). O dom da aliança e da Torá, deviam tornar permanente a luz oferecida por Deus, para guiar o povo na estrada da felicidade e da vida e construir uma sociedade digna dos filhos e das filhas de Deus.
É impressionante o oráculo, cortante como uma espada, de todo o capítulo 58 de Isaías, o qual destaca a contradição em que vivem os chefes e o povo no que diz respeito à aliança e à Torá. Reclama a interiorização das práticas religiosas, segundo o espírito da aliança, como já tinham admoestado os grandes profetas antecedentes. A trágica experiência do exílio tinha colocado a nu a inconsistência de uma religiosidade, satisfeita com os aspectos exteriores, mas desprovida de autêntica experiência de Deus e de compromisso solidário com os irmãos. Da experiência do exílio nasce em Israel uma nova espiritualidade profundamente renovada.
Talvez, na misteriosa Providência divina, nós também hoje tenhamos de tirar proveito da experiência purificadora da secularização da sociedade contemporânea, como o Israel do exílio, para abrir os olhos sobre a fragilidade de uma religiosidade às vezes superficial, e abrir os ouvidos à voz do Espírito, para fundamentar nossa fé em maneira mais profunda e coerente.
A mensagem do profeta antecipa as cortantes posições do Novo Testamento: Jesus identifica a si mesmo com os necessitados (cf. Mt 25, 40 ), Paulo, enraíza a exigência de um novo estilo de vida dos discípulos na experiência pascal de Jesus através do batismo (cf. Rm 12, 1-2; Cl 3, 1-4). Thiago reivindica a caridade operosa como sinal da autenticidade da fé (cf. 2, 14-17), assim como João vai repetindo nas suas cartas que “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor” (1 Jo 3, 8).
A Igreja está plenamente consciente que o dinamismo transformador e iluminador vem do próprio Senhor. É a razão porque cada ano continua celebrando, em maneira nova, o mistério da luz de Cristo que brilha nas trevas e ilumina o caminho da humanidade. Toda a liturgia do Tempo de Natal-Epifania foi uma proclamação e uma celebração desta fé, feita com riqueza de textos bíblicos e litúrgicos, de cantos e ritos, e de alegria. Qual energia divina esta liturgia libertou dentro de nós? Quais compromissos ela suscitou, nos quais consiga irradiar-se a luz que nos atingiu?
“O povo que andava na escuridão viu uma grande luz... Fizeste crescer a alegria e aumentaste a felicidade...” (Is 9, 1-6). As luzes que iluminaram as igrejas assim como as pequenas capelas das comunidades, e mesmo os arranjos luminosos das ruas das cidades e dos lares familiares, não deveriam apagar-se no vencimento da programação dos dias festivos.
A Igreja está ciente de quão complicado seja o coração do homem e da mulher. A celebração da luz manifestada na fragilidade da carne de Jesus se faz uma invocação, para que ela nos acompanhe além da festa do Natal: “Ó Deus, que fizestes resplandecer esta noite santa com a claridade da verdadeira luz, concedei que, tendo vislumbrado na terra este mistério, possamos gozar no céu sua plenitude” (Natal- Missa da noite, Oração do dia).
Ter os olhos fixos para Cristo, verdadeira luz, nos proporciona a capacidade de julgar e gozar em maneira correta das tantas luzes que hoje brilham no caminho dos homens e das mulheres, mesmo fora do tempo das festas natalinas.
Luzes que deixam brilhar o amor de quem tem cuidado com ternura dos que estão na dor, no abandono, no desespero, fora dos holofotes da publicidade, escondidos nos apartamentos, nos hospitais, nas sombras obscuras das ruas super-iluminadas da cidade.
Luzes dos escritórios e das lojas, acesas sem interrupção, testemunhas mudas do homem que fica empenhado sem parar na construção do próprio presente e do próprio futuro com suas próprias mãos.
Luzes que às vezes se apresentam como alternativas definitivas na busca do sentido e da felicidade da vida, nos brilhantes shopping centers, as novas “catedrais” das metrópoles modernas, que atraem multidões ao novo culto da cobiça pelas mercadorias de todo tipo, expostas com abundância nas vitrines.
Luzes e sombras, autenticidade e aparências, se misturam no dia a dia e parecem refletir-se umas nas outras. Babilônia e Jerusalém se cruzam. Somente o olho dos que “vivem na luz” do Senhor pode distinguir uma da outra e ajudar a cidade dos homens a tornar-se um pouco mais cidade de Deus desde já, na medida em que se torna mais autenticamente humana.
A afirmação de Jesus no evangelho de hoje,“Vos sois a luz do mundo... assim também brilhe a vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus...” (Mt 5,14.16), pressupõe a experiência da autêntica relação pessoal com Cristo, a qual fundamenta o testemunho: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). Essa relação transforma a pessoa e permite ao discípulo assumir os mesmos pensamentos e as mesmas atitudes de Jesus na própria vida. O processo da relação com Jesus, origem de luz verdadeira, coincide com o processo de conversão ao Senhor, conversão que jamais se poderá dizer plenamente terminada.
Se faltar esta experiência transformadora e luminosa do Senhor, onde o discípulo poderá haurir e partilhar o “sabor do sal” da vida cristã?
A Igreja do Concílio Vaticano II fez a escolha de voltar a confrontar-se e a mergulhar-se novamente na relação com Cristo, seu Senhor, “Luz dos povos”, para tornar-se mais capaz de irradiar a boa-nova do amor do Pai, para os homens e as mulheres do mundo contemporâneo (Constituição Lumen Gentium 1). Convida-nos a entrar no mesmo processo. Convida-nos a pegar nas mãos, com renovada consciência, a vela que recebemos no batismo, acendida no círio pascal, para que nos ponhamos a caminho, nesta que é uma vigília pascal que não acaba nunca, caminhando juntos com nossos irmãos e irmãs. Ninguém deveria se subtrair a esta humilde e fascinante peregrinação noturna, que nos encaminha rumo à luz plena e definitiva da Jerusalém celeste.
“Nada mais frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação dos outros.... Cada um de nós tem a possibilidade de ajudar ao próximo, se quiser cumprir os seus deveres.... Se o fermento, misturado à farinha, não fizer crescer a massa, terá tido fermento verdadeiro? Se o perfume não espalhar sua fragrância, ainda o chamaremos perfume? Não digas que és incapaz de influenciar os outros. Se fores cristão, é impossível que não o faças” (São João Crisóstomo, Homilia 20,4; LH, Comum dos Santos Homens).
Liturgia da Palavra: “Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo”
Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – V do Tempo Comum Is 58, 7 -10; 1 Cor 2, 1-5; Mt 5, 13 -16 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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