O que é o discernimento espiritual?
Tomado em um sentido imediato, o
discernimento é a ação pela qual se busca distinguir, diferenciar, entre
duas coisas que geralmente nos parecem boas. Na linguagem coloquial
podemos dizer que uma pessoa “sem discernimento” é aquela que faz as
coisas de forma impulsiva, que não é capaz de fazer um julgamento cabal
sobre a realidade nem de atuar consequentemente.
A falta de
discernimento pode levar, neste sentido, a agir sem sopesar bem o que se
faz.
Entretanto, aqui falamos de um
discernimento “espiritual”. O que significa isto? As Sagradas
Escrituras nos oferecem luzes valiosíssimas para compreender o que
significa discernir espiritualmente.
Vejamos:
Certa ocasião, aproximaram-se do Senhor
Jesus uns fariseus e saduceus e, com a intenção de pô-lo à prova,
pediram-lhe que lhes mostrasse um sinal do céu. Jesus lhes responde
evidenciando-lhes sua capacidade de “ler” o clima observando os sinais
da natureza: «Vocês sabem discernir o aspecto do céu», diz-lhes.
Entretanto, continua, «não podem discernir os sinais dos tempos»
[1].
No fim das contas o que Jesus lhes diz é: vocês são muito hábeis para
discernir o clima, para prognosticar se haverá tormenta a partir das
nuvens que há no céu, mas não se deram conta de que estão rodeados de
sinais espirituais (os sinais dos tempos) que falam da chegada do
Messias.
Também São Paulo em várias ocasiões
exorta os cristãos de diversas comunidades a viver o discernimento. Por
exemplo, diante das várias experiências que surgiram na comunidade de
Tessalônica, diz-lhes: «Examinem tudo e abracem o que é bom»
[2].
O termo “examinar” se traduz também por “discernir” e alude à mesma
ação. Outra passagem muito iluminadora está na carta aos Romanos, onde
Paulo diz: «Não se conformem com este mundo, mas transformem-se pela
renovação do seu espírito, para que possam discernir qual é a vontade de
Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito. »
[3].
Para poder discernir qual é a vontade de
Deus, qual é seu Plano de amor para nós, São Paulo nos diz que é
fundamental que nos transformemos interiormente segundo o “homem novo”
que é Cristo. A renovação da mente a que alude o Apóstolo Paulo não se
produz tanto pela ação de uma lei externa mas começa no interior do
homem, pela íntima iluminação do Espírito Santo que nos torna capazes de
distinguir o bem do mal e de seguir o caminho do bem. A isso nos
referimos quando falamos de um discernimento espiritual. Trata-se de
uma ação que não só se realiza em nosso interior mas além disso deve
fazer-se sempre em presença e sob a ação do Espírito de Deus.
À luz do que foi dito, poderíamos definir
o discernimento espiritual como um exercício interior que nos leva a
examinar e distinguir que situações, pessoas ou coisas nos ajudam a
seguir o Plano de Deus e quais, pelo contrário nos afastam dEle. Desta
forma, abertos a ação do Espírito Santo que nos ilumina e nos
impulsiona, poderemos dar à nossa vida uma orientação que nos leve à
felicidade verdadeira.
O discernimento espiritual nos ajudará,
então, a ir ganhando essa sabedoria, essa “ciência” da qual fala São
Pedro. Ao discernir espiritualmente procuramos iluminar uma situação
concreta de nossa vida com a luz da fé, de maneira que a escolha que
façamos vá pelo caminho do amoroso desígnio de Deus que busca o bem
maior para nós.
Que coisas nos dificultam o discernimento espiritual?
Tudo aquilo que nos afaste da vida no
Espírito se converte em obstáculo para um bom discernimento espiritual.
É responsabilidade de cada um identificar em seu interior os próprios
obstáculos para um reto pensar e um reto agir: teimosia, impaciência,
soberba, autossuficiência, preguiça mental, ou qualquer outro.
Aqui vamo-nos deter em três obstáculos que nos parecem relevantes: O subjetivismo, a soberba e os escrúpulos.
O subjetivismo: Este
vício de aproximação a nós mesmos e à realidade dificulta examinar e
discernir à luz do Plano de Deus o mundo que nos rodeia, os
acontecimentos de nossa vida e as opções que devemos tomar. Quanto mais
se acentua maior será a tendência a considerar que alguém é o centro de
tudo e a julgar a partir dessa premissa. Para evitar o subjetivismo ao
discernir também é particularmente importante não nos deixarmos levar
por emoções ou por aquilo que nos gera uma maior ressonância
sentimental. Certamente não se trata de evitá-los, mas sim de
reconhecer com humildade seu justo lugar e que em alguns casos podem
afetar nossa objetividade.
Igual atenção, a um nível possivelmente mais espiritual, merece o combate contra a soberba.
Quando a soberba se afinca na mente e no coração é muito difícil dar
ouvidos às moções e iluminações do Espírito Santo que poderiam estar
indicando-nos o caminho a seguir. Se estivermos “cheios de nós mesmos”
dificilmente poderemos discernir à luz do Espírito. Seremos, tal como
os fariseus e saduceus do Evangelho, cegos aos “sinais” com que Deus nos
manifesta sua vontade.
Também é uma dificuldade a excessiva
meticulosidade que poderia nos levar a converter o discernimento
espiritual em uma espécie de exaustivo e excessivo exame de todos os
detalhes de nossa vida. Se isto acontece pode ser que estejamos caindo
em escrúpulos.
Os escrúpulos impedem de viver esse espírito de liberdade que o Espírito Santo dá de presente aos que vivem sob seu impulso
[4].
São Francisco de Sales é enfático em recomendar que o discernimento
deve ser aplicado especialmente a assuntos importantes, como, por
exemplo, a escolha da vocação; decisões que possam afetar o curso de
nossa vida ou que tenham certa gravidade, assuntos sérios de nossa vida
espiritual. Quanto ao resto, recomenda «fazer livremente o que nos
parece bom, para não cansar nosso espírito, não perder tempo e não nos
colocarmos em perigo de inquietação, de escrúpulos e de superstições»
pois «nas ações miúdas e diárias, nas quais a própria falta não é de
consequência irreparável, que necessidade háde mostrar-se como se
estivesse carregado de ocupações, cheio de cuidados e dificuldades, e
obrigado, portanto, a fazer importunas consultas?»
[5].
Trata-se, pois, de discernir à luz do
Plano de Deus as realidades de nossa vida que o mereçam e caminhar na
direção que ele nos mostra, cooperando assim,a partir de nossa opção
fundamental, com a ação de Deus que nos chama, sustenta-nos e nos
impulsiona. Como fazer isso? Vejamos algumas coisas que nos podem
ajudar a discernir melhor.
Que coisas nos ajudam a viver melhor o discernimento?
Acima de tudo, o empenho por sermos
pessoas espirituais, quer dizer, que procuram viver no Espírito e
segundo o Espírito. Dessa sintonia espiritual brota uma certa
conaturalidade que nos permite discernir o Plano de Deus em situações
concretas à luz da fé e segui-lo com docilidade. Como diz São Paulo,
«se vivemos pelo Espírito, deixemo-nos conduzir pelo Espírito»
[6].
Nesse sentido a oração é
um meio privilegiado para sermos homens e mulheres espirituais. Na
oração o Senhor nos encontra mais receptivos e dispostos a escutar sua
voz e as moções do Espírito Santo que nos guiam para a verdade. Na
oração encontraremos o espaço propício para um correto discernimento.
Encontramos um exemplo maravilhoso de
como viver o discernimento em Santa Maria. Quando recebe a visita do
Arcanjo Gabriel que a saúda de um modo muito significativo —«Alegra-te,
cheia de graça»—, Maria fica “pensando”, “discorrendo”, “discernindo”
«que saudação era aquela». Este breve mas significativo fato nos fala
de uma pessoa sensível aos sinais de Deus, aberta à ação do Espírito,
dócil a suas moções e generosa em sua resposta: «Faça-se em mim segundo
sua Palavra».
O Apóstolo João, por outro lado, insiste na necessidade de vivermos em comunhão com Deus,
Pai, Filho e Espírito Santo para podermos discernir espiritualmente.
O
discernimento espiritual se baseia na fé em Jesus, Filho de Deus, que
nos manifesta plenamente o Plano do Pai
[7].
Só à luz da fé em Cristo e sob a ação do Espírito Santo podemos avançar
na maturidade espiritual que nos configura interiormente com Jesus de
maneira que alcancemos, pouco a pouco, a sabedoria e a sensibilidade
para procurar sempre o Plano de Deus e viver segundo sua orientação.
Esse caminho de configuração com o Senhor Jesus passa, como vimos, por nos renovar constantemente na
transformação de nossa mente.
São Paulo é muito claro ao dizer que o «homem animal (aquele que não
vive segundo o Espírito de Deus) não percebe as coisas do Espírito de
Deus; são para ele loucura e não pode entende-las, porque terá que
julgá-las espiritualmente»
[8].
Para entender as coisas de Deus devemos ter a «mente de Cristo»[9].
Isso implica nos despojarmos dos critérios que são fruto de nosso
pecado, dos critérios mundanos que se opõem a Deus e a seu Plano para
nos revestirmos dos critérios evangélicos. Será, nesse sentido, de
grande ajuda a meditação constante do Evangelho na oração. Ali
aprendemos a pensar como Jesus, a sentir como Ele e a atuar como Ele.
Finalmente, um elemento muito importante é
a dimensão comunitária do discernimento espiritual. Quer dizer,
necessitamos a ajuda de outras pessoas que nos ajudem e iluminem a
partir de sua própria experiência espiritual. Isto é um sinal de
humildade e de sã desconfiança de si mesmo. Nesta linha, o recurso ao conselho espiritual é uma maneira muito concreta de examinar nossa mente e coração à luz do Plano de Deus.
Esta dimensão comunitária do
discernimento se vê concretamente de uma forma muito clara nos Atos dos
Apóstolos, quando a Igreja nascente se encontra com a necessidade
concreta de atender as viúvas. Os Apóstolos convocam uma assembleia e
juntos discernem como responder a esta necessidade e decidem escolher
alguns irmãos para esse ministério
[10]. Com este testemunho nos mostram um belo exemplo de corresponsabilidade e de caminhar juntos na resposta ao Plano de Deus.
Passagens bíblicas para a oração
O Senhor Jesus recrimina os fariseus por não saberem discernir: Mt 16,3; Lc 12,56.
Discernir a própria consciência: 1Cor 11,28-29; Gal 6,3-4.
Discernir os carismas: 1Tes 5,21.
Discernir segundo o Plano de Deus: Rom 12,2.
O Espírito Santo nos permite discernir: 1Cor 2,10-16.
Perguntas para REFLEXÃO
- O que é o discernimento espiritual? Que importância tem para minha vida cristã?
- Há alguma relação entre o discernimento espiritual e a ciência que São Pedro nos convida a viver em sua escada espiritual?
- A que realidades da vida se aplica o discernimento espiritual? Vale a pena discernir tudo e cada detalhe de nossa vida diária?
- Como viver melhor a dimensão comunitária do discernimento espiritual?
Trabalho de interiorização
- Leia a passagem da Anunciação-Encarnação (Lc 1,26-38) e medite em como Maria nos dá exemplo de um adequando discernimento espiritual.
- Por que Ela pode discernir bem o Plano que Deus lhe revela?
- Que disposições espirituais Santa Maria me ensina neste momento de sua vida e como me iluminam?
- Medite esta passagem de São Paulo:
«Deus no-las revelou pelo seu Espírito,
porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus.Pois quem
conhece as coisas que há no homem, senão o espírito do homem que nele
reside? Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o
Espírito de Deus.Ora, nós não recebemos o espírito do mundo, mas sim o
Espírito que vem de Deus, que nos dá a conhecer as graças que Deus nos
prodigalizou e que pregamos numa linguagem que nos foi ensinada não pela
sabedoria humana, mas pelo Espírito, que exprime as coisas espirituais
em termos espirituais.Mas o homem natural não aceita as coisas do
Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem as pode compreender,
porque é pelo Espírito que se devem ponderar.O homem espiritual, ao
contrário, julga todas as coisas e não é julgado por ninguém.Porque,
quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo?Nós, porém,
temos o pensamento de Cristo.» (1Cor 2,10-16).
- Que elementos você encontra nesta passagem que iluminam sua vivência do discernimento espiritual?
- Como você pode fazer para ser cada vez mais um “homem de espírito”?
- Escreva uma oração ao Espírito Santo pedindo a Ele que conceda a ti o
dom de discernir sempre segundo o Plano do Pai e a força para segui-lo.
[5]São Francisco de Sales,
Tratado do amor de Deus, Livro VIII, Capítulo 14.
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