Deus é ciumento.
Quando
luminosamente São João da Cruz ensina que «onde não vires amor, põe amor e
encontrarás amor» nós deveríamos escutá-lo. Seria melhor para todos, viveríamos
todos melhor, e o que é mais: viveríamos imitando a Deus.
Que
Deus é amor sabemo-lo, porque o Evangelista João o perscrutou quando dormitou
sobre o peito do Senhor, e nisso depois meditou durante quase cem anos antes de
nos repetir o que ali tinha visto e ouvido a doçura da misericórdia do amor de
Deus em Jesus.
Jesus
é o rosto do amor, os olhos, as mãos e o coração do amor. Quando a obra da
criação saiu de Deus, saiu-lhe cheia de beleza e amor: somos belos sempre que o
nosso olhar exala o toque perfumado do Seu amor.
Ouso
dizer toscamente aquilo que no inverno me aquece: Deus que tudo criou,
criou-nos da altura do amor, capazes de amar, de corresponder com amor ao amor
com que nos criou e que delicadamente esparziu em nossos corações.
Deus
é como um semeador, generoso e esperançoso.
Deus
semeador parece-me uma imagem bela: Ele não apenas criou; também nos achou ¨lavoura¨
fértil onde semear o Seu amor. Deus criou-nos para amar, para O amar – não me
ocorre deferência maior.
Amar
quem parece não merecê-lo é algo que só Deus. Amar quem não guarda a fragrância
do amor é misericórdia incomparável.
Quando
São João da Cruz nos ensina a semear o amor, está-se mesmo a ver, ou ao menos
vejo-o eu, que nos convida a ser semeadores de Deus – esbanjadores do amor.
Convida-nos a esbanjá-lo ali, ali mesmo, ali sem mais ou maior consideração,
ali onde falta Deus. Ali onde, afinal, Deus é frágil, tão frágil! Sim, ali onde
houver falta de Deus, semeia tu, amor; inunda tu de amor fecundo os desertos
cheios da sua falta! Somos para Deus, somos capazes de Deus, temos coração
semeador como o Dele, que o teceu de carne como o nosso! O amor seja a nossa
semeadura.
Ora
ocorre-me ainda que Deus talvez seja ciumento.
Sim,
Deus é ciumento. O Deus da Bíblia é ciumento, ao menos aquele cujo rosto
entrevemos no Antigo Testamento. Ali Deus é cruamente ciumento. Em boa verdade,
pode sem medo dizer-se que o amor é ciumento e não tem como não sê-lo. Quem nos
inundou de amor como pode ficar
impassível vendo que o cambiamos por migalhas? Quem nos criou para águias como
não desmaiará ouvindo-nos cacarejar como galinhas? Quem se prendeu de nós como
aceitará que descansemos noutros olhos?
Sim,
Deus tem de ser ciumento. Ou então, não nos ama.
Não
nos quer, e o seu amor semeado em nós vale nada.
Deus
tem de querer-nos a todo o preço, um preço tão alto tão alto que seja sem
preço. Tal como não tem preço a manjedoura ou a cruz! E Deus mais que tudo,
porque ama – ama tudo, afinal.
Antes
de tudo existir, Deus era feliz. Ou talvez não fosse feliz de todo, por não
poder amar-nos ainda, e conosco e em nós a tudo o que seria criado. Sim, não
sei que digo.
Sei
que no amor de Deus não há sombra, a não ser talvez nas faldas do gênesis
quando o seu olhar ainda não criara, ainda não conhecera a esperança de Adão,
dos Patriarcas, Profetas e justos, ainda não pudera amar Maria e os pastores,
os pequeninos, as virgens e os santos. Deus era feliz, mas ainda a carne não
fora criada, os pés ainda não tinham pisado as plantinhas, o olfato não saudara
ainda a virgindade das rosas, nem ainda o Filho estremecera de frio!
Deus
não pudera conhecer nem amar plenamente por a criação não ter tido ainda
existência, mas amava já, já nos amava de coração cheio. Em espera.
Aguardando-nos.
Deus
era feliz em amar-se amando-nos na esperança de beijar a carne que o Filho
vestiria um dia. Ora, não me é aceitável que o amor que assim se expande
transbordando as margens de Deus para Deus e para Deus, e por fim para a
criação – máxime para a humanidade –, sim, não me é aceitável que esse amor se
tenha vertido para nós sem ciúme, tal era o risco de se perder! Sim, sei. No
amor perder é também ganhar. Ver o Filho deposto na manjedoura é perder, mas
ganhamos nós. Logo, Deus também. Na
cruz, idem. Perde Deus, ganhamos nós. Nas contas do amor, mesmo que em
esperança, “Quem perde ganha”.
Isso sim, mas não me parece que Deus se deixe a
perder, que o amor se possa deixar perder. Não. Impossível. É por isso que
aceito que Deus seja ciumento. Que nos queira ao preço que seja, mesmo que o
preço seja não querê-lo! Que nos abrace, mesmo que lhe cheguemos a casa rotos e
cansados. Que nos dê a Eucaristia, mesmo que o sabor se nos tenha aziumado.Tu
perdes, mas não nos perdes.
Creio
que foi isso que mandaste Jesus dizer-nos; e depois do dito já não há mais para
dizer. Apenas repetir:
Deus ama-nos com um sol e uma lua de ternura no olhar,
com lágrimas grandes e quentes rolando-lhe dos olhos pelas barbas! Deus
asperge-nos o corpo e a alma com o seu olhar de misericórdia! É um doce-triste
olhar de amor feliz. Por nós. Porque só nós podemos amar.
Pe.Emílio
Carlos Mancini +
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