“Não veio para ser
servido, mas para servir e dar a vida”
29º
Domingo do Tempo Comum - Ano B
A
liturgia do 29º Domingo do Tempo Comum lembra-nos, mais uma vez, que a lógica de
Deus é diferente da lógica do mundo. Convida-nos a prescindir dos nossos projetos
pessoais de poder e de grandeza e a fazer da nossa vida um serviço aos irmãos.
É no amor e na entrega de quem serve humildemente os irmãos que Deus oferece
aos homens a vida eterna e verdadeira.
A
primeira leitura
apresenta-nos a figura de um “Servo de Deus”, insignificante e desprezado pelos
homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de Deus. Lembra-nos
que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e
no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida,
fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação
e esperança ao mundo e aos homens.
No
Evangelho,
Jesus convida os discípulos a não se deixarem manipular por sonhos pessoais de
ambição, de grandeza, de poder e de domínio, mas a fazerem da sua vida um dom
de amor e de serviço. Chamados a seguir o Filho do Homem “que não veio para ser
servido, mas para servir e dar a vida”, os discípulos devem dar testemunho de
uma nova ordem e propor, com o seu exemplo, um mundo livre do poder que
escraviza.
Na
segunda leitura,
o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor
sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens,
a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele não Se esconde atrás do
seu poder e da sua onipotência, mas aceita descer ao encontro homens para lhes
oferecer o seu amor.
LEITURA
I – Is 53,10-11
O nosso texto pertence ao “Livro da
Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome
convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de
Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados
judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os
exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da
libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus
libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48); depois, anuncia a
reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à
qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem,
contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem
um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e
enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”: ele é um
predilecto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e
a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento
e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo,
um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do
Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o
triunfar diante dos seus detratores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma
do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado
a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta
desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado,
esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus no meio das outras nações?
É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas
(patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a
representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura
apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo,
da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do quarto
cântico do “servo de Jahwéh”. Nele, porém, o “Servo” não fala; quem proclama
este “cântico” parece ser um coro, que percebeu, no aparente sem sentido da
vida do “Servo”, um profundo significado à luz da lógica de Deus.
A primeira parte do nosso texto (vers. 2-3)
apresenta-nos o “Servo de Jahwéh”. Não se diz quem é ele, quais são os seus
pais, qual é a sua terra. É uma figura anônima, sem história, obscura,
ignorada, insignificante à luz dos critérios humanos. Recorrendo à imagem
vegetal, o profeta compara-o a uma raiz crescida no deserto, marcada pela
aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem características que atraiam o
olhar ou a atenção dos homens (vers. 2). Mais: é uma figura desprezada e
abandonada pelos homens, que vêem o seu sofrimento como um castigo de Deus e
que tapam o rosto diante dele para não se contaminarem (vers. 3). Numa época em
que o sofrimento é sempre visto como castigo pelo pecado, o notório sofrimento
desse “Servo” devia aparecer, aos olhos dos seus concidadãos, como o castigo de
Deus para faltas particularmente graves…
À luz dos critérios de avaliação usados pelos
homens, o “Servo” é um fracassado, um vencido, um ser trágico, abandonado por Deus
e desprezado pelos homens. Seguramente, ele nunca será contado entre os
grandes, os vencedores, aqueles que têm um papel preponderante na construção do
mundo e da história.
À luz da lógica de Deus, porém, a existência
do “Servo” não é uma existência insignificante, perdida, sem sentido… O
sofrimento que o atingiu ao longo de toda a existência não é num castigo de
Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas um sacrifício de reparação que
justificará os pecados de muitos. A palavra “reparação” aqui utilizada pelo
Deutero-Isaías é um termo cúltico por excelência. Refere-se a um ritual
sacrificial através do qual o crente vétero-testamentário oferecia um animal em
sacrifício e, por essa oferta, alcançava de Deus o perdão para os seus pecados.
Ao dizer que o sofrimento do “Servo” é um sacrifício de reparação, o profeta
está a dizer que esse sofrimento não é, nem um castigo, nem uma inutilidade;
mas é um sofrimento que servirá para eliminar o pecado e para gerar vida nova
para toda a comunidade do Povo de Deus (os muitos de que fala o texto). Ao
abençoar o seu “Servo”, ao dar-lhe “uma posteridade duradoura”, uma “vida
longa” (vers. 10) e a possibilidade de “ver a luz” (vers. 11), Deus garante a
verdade e a autenticidade da vida do “Servo”.
Dito por outras palavras: o autor deste texto
está convencido de que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no
sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida
maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que
trará libertação, verdade, esperança e amor ao mundo e aos homens.
Os primeiros cristãos, impressionados pela
beleza e pela profundidade deste texto, utilizaram-no frequentemente para
procurar compreender a figura de Jesus, que “morreu pela salvação do povo”. Em
Jesus, esta enigmática figura do “Servo de Jahwéh” alcançou o seu pleno
significado.
ATUALIZAÇÃO
• O nosso texto mostra, uma vez mais, como os
valores de Deus e os valores dos homens são diferentes. Na lógica dos homens,
os vencedores são aqueles que tomam o mundo de assalto com o seu poder, com o
seu dinheiro, com a sua ânsia de triunfo e de domínio, com a sua capacidade de
impor as suas ideias ou a sua visão do mundo; são aqueles impressionam pela
forma como vestem, pela sua beleza, pela sua inteligência, pelas suas
brilhantes qualidades humanas… Na lógica de Deus, os vencedores são aqueles
que, embora vivendo no esquecimento, na humildade, na simplicidade, sabem fazer
da própria vida um dom de amor aos irmãos; são aqueles que, com as suas atitudes
de serviço e de entrega, trazem ao mundo uma mais valia de vida, de libertação
e de esperança. Qual destes dois modelos faz mais sentido para mim? Quando, no
dia a dia, tenho de estabelecer as minhas prioridades e de fazer as minhas
escolhas, deixo-me conduzir pela lógica de Deus ou pela lógica dos homens? Quem
são as pessoas que eu admiro, que eu tenho como modelos, que me impressionam?
• Onde está Deus? Onde podemos encontrar o seu
rosto, as suas propostas, os seus apelos e desafios? Apresentando-nos a figura
desse “Servo” insignificante e desprezado pelos homens, mas através do qual se
revela a vida e a salvação de Deus, o nosso texto lembra-nos que Deus, seguindo
a sua lógica muito própria vem, tantas vezes, ao nosso encontro na pobreza, na
pequenez, na simplicidade, na fragilidade, na debilidade… Conscientes desta
realidade, poderemos perceber a presença de Deus a nosso lado nos pequenos
gestos que todos os dias testemunhamos e que nos dão esperança, nas coisas
simples e banais que nos enchem o coração de paz, nas pessoas humildes que o
mundo despreza e marginaliza, mas que são capazes de gestos impressionantes de
serviço, de partilha, de doação, de entrega… Não nos deixemos enganar: Deus não
está naquilo que é brilhante, sedutor, majestoso, espampanante; Deus está na
simplicidade do amor que se faz dom, serviço, entrega humilde aos irmãos.
• Qual o sentido do sofrimento? Porque é que
há tantas pessoas boas, honestas, justas, generosas, que atravessam a vida
mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se de uma pergunta que fazemos
frequentemente e que o autor do quarto cântico do “Servo” também punha a si
próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o sofrimento do justo não se
perde; através dele, os pecados da comunidade são expiados e Deus dará vida e
salvação ao seu Povo. Trata-se, sem dúvida, de uma resposta incompleta,
parcial, não totalmente satisfatória; mas encontra-se já nesta resposta a
convicção de que, nos misteriosos caminhos de Deus, o sofrimento pode ser uma
dinâmica geradora de vida nova. Jesus Cristo demonstrará, com a sua paixão,
morte e ressurreição, a verdade desta afirmação.
SALMO
RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Desça sobre nós a vossa misericórdia,
porque
em Vós esperamos, Senhor.
A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do senhor.
Os olhos do Senhor estão voltados para os que
O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.
LEITURA
II – Heb 4,14-16
Já vimos, nos domingos precedentes, que a
Carta aos Hebreus se destina a comunidades cristãs em situação difícil,
expostas a tribulações várias e que, por isso mesmo, estão fragilizadas,
cansadas e desalentadas. Os crentes que compõem essas comunidades necessitam
urgentemente de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu
compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais empenhada.
Nesse sentido, o autor da “carta”
apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é
pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a
comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer da
sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o
autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva,
capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do
ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo
inicial.
O texto que nos é proposto está incluído na
segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta
Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para
mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se
que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que
Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos
concretos de vida.
Jesus é, para todos os crentes, o grande
sumo-sacerdote que “atravessou os céus” para alcançar misericórdia para todos
os crentes (vers. 14). A expressão “atravessou os céus” refere-se,
naturalmente, à realidade da incarnação: Jesus, o Filho de Deus, veio ao
encontro dos homens como sumo-sacerdote, a fim de eliminar o pecado que impedia
a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao encontro de Deus. Aqui
evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, no sentido de refazer uma
comunidade de vida com os homens e de os reconduzir ao encontro da vida eterna
e verdadeira.
Diante dessa ação incrível de Deus, fruto do
seu amor pelo homem, os crentes devem responder com a fé – isto é, com a
aceitação incondicional da proposta de Jesus (“conservemos firme a fé que
professamos”). Aderir à proposta de Jesus é reentrar na comunhão com Deus,
assumir-se como família de Deus, receber de Deus vida em abundância.
Apesar de ser Filho de Deus, Jesus, o
sumo-sacerdote, não é, no entanto, um ser celestial estranho, incapaz de
perceber os crentes na sua dramática luta de todos os dias, na sua fragilidade
face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o confronto com o egoísmo, a
acomodação, a preguiça, a monotonia… Ele próprio foi submetido à mesma prova,
conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as mesmas dificuldades.
No entanto, Ele soube sempre manter-Se fiel a Deus e aos seus projetos,
mostrando-nos que também nós podemos viver na fidelidade a Deus e às suas
propostas (vers. 15).
Nós, os seguidores de Jesus, não estamos numa
situação desesperada, apesar das nossas falhas e incoerências. Podemos e
devemos aceitar a proposta de Jesus e dirigir-nos a Deus, na certeza de que
seremos acolhidos por Ele como filhos muito amados. Graças a Jesus, o
sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que experimentou e entendeu a nossa fragilidade,
que restabeleceu a comunhão entre nós e Deus, que nos leva ao encontro de Deus
e que nos garante a sua misericórdia, estamos agora numa nova situação de graça
e de liberdade. Podemos, com tranquilidade e confiança, sem qualquer medo,
aproximar-nos desse “trono da graça” de onde brota a vida eterna e verdadeira.
Esta certeza deve ajudar-nos e dar-nos esperança nos momentos mais dramáticos
da nossa caminhada pela história (vers. 16).
ATUALIZAÇÃO
• Em total consonância com as outras leituras
deste domingo, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem
com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a fragilidade
dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele não se
esconde atrás do seu poder, da sua autoridade, da sua importância, da sua onipotência;
Ele não tem medo de perder a sua dignidade ou as suas prerrogativas divinas
quando assume a pobreza, a fragilidade, a debilidade dos homens… Na lógica de
Deus, o que é mais importante não é aquele que protege a sua autoridade e a sua
importância através de barreiras intransponíveis, mas é aquele que é capaz de
descer ao encontro dos últimos, dos desclassificados, dos marginalizados, dos
sofredores, para lhes oferecer o seu amor. É esta a lógica de Deus – lógica que
somos chamados a compreender, a assumir e a testemunhar.
• Os seguidores de Cristo são, naturalmente,
convidados, a assumir o seu exemplo… Assim como Cristo, por amor, vestiu a
nossa fragilidade e veio ao nosso encontro, também nós devemos – despindo-nos
do nosso egoísmo, da nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença
– ir ao encontro dos nossos irmãos, vestir as suas dores e fragilidades,
fazer-nos solidários com eles, partilhar os seus dramas, lágrimas, sofrimentos,
alegrias e esperanças. Não podemos, do alto da nossa situação cômoda, limpa,
arrumada, decidir que não temos nada a ver com o sofrimento do mundo ou com a
carência que aflige a vida de um nosso irmão. Somos sempre responsáveis pelos
irmãos que conosco partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os
conhecemos pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras
geográficas, históricas, étnicas ou outras.
• Ao assegurar-nos que nada temos a temer pois
Deus ama-nos, quer integrar-nos na sua família e oferecer-nos vida em
abundância, o nosso texto convida-nos a encarar a vida e os seus caminhos com
serenidade e confiança. Os cristãos são pessoas serenas e com o coração em paz. Estão conscientes
de que as suas fragilidades e debilidades não os afastam, nunca, de Deus e do
seu amor.
ALELUIA – Mc 10,45
Aleluia. Aleluia.
O Filho do homem veio para servir
e dar a vida pela redenção de todos.
EVANGELHO
– Mc 10,35-45
Continuamos a percorrer, com Jesus e com os
discípulos, o caminho para Jerusalém. Marcos observa que, nesta fase, Jesus vai
à frente e os discípulos seguem-n’O “cheios de temor” (cf. Mc 10,32). Haverá
aqui alguma má vontade dos discípulos, por causa das últimas polêmicas e das
exigências radicais de Jesus? Este “temor” resultará do fato de Jesus se
aproximar do seu destino final, em Jerusalém, destino que o grupo não aprova?
Seja como for, Jesus continua a sua catequese e, mais uma vez (é a terceira, no
curto espaço de poucos dias), lembra aos discípulos que, em Jerusalém, vai ser
entregue nas mãos dos líderes judaicos e vai cumprir o seu destino de cruz (cf.
Mc 10,33-34). Desta vez, não há qualquer reação dos discípulos.
Já observamos, no passado domingo, que o
caminho percorrido por Jesus e pelos discípulos é, além de um caminho
geográfico, também um caminho espiritual. Durante esse caminho, Jesus vai
completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as
condições para integrar a comunidade messiânica. A resposta dos discípulos às
propostas que Jesus lhes vai fazendo nunca é demasiado entusiasta.
O texto que nos é proposto desta vez demonstra
que os discípulos continuam sem perceber – ou sem querer perceber – a lógica do
Reino. Eles ainda continuam a raciocinar em termos de poder, de autoridade, de
grandeza e vêem na proposta do Reino apenas uma oportunidade de realizar os
seus sonhos humanos.
Na primeira parte do nosso texto (vers.
35-40), apresenta-se a pretensão de Tiago e de João, os filhos de Zebedeu, no
sentido de se sentarem, no Reino que vai ser instaurado, “um à direita e outro
à esquerda” de Jesus. A questão nem sequer é apresentada como um pedido
respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de quem se sente com direito
inquestionável a um privilégio. Certamente Tiago e João imaginam o Reino que
Jesus veio propor de acordo com Dn 7,13-14 e querem assegurar nesse Reino
poderoso e glorioso, desde logo, lugares de honra ao lado de Jesus. O fato
mostra como Tiago e João, mesmo depois de toda a catequese que receberam
durante o caminho para Jerusalém, ainda não entenderam nada da lógica do Reino
e ainda continuam a refletir e a sentir de acordo com a lógica do mundo. Para
eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de autoridade,
de poder e de grandeza.
Uma vez mais Jesus vê-se obrigado a esclarecer
as coisas. Em primeiro lugar, Jesus avisa os discípulos de que, para se
sentarem à mesa do Reino, devem estar dispostos a “beber o cálice” que Ele vai
beber e a “receber o batismo” que Ele vai receber. O “cálice” indica, no
contexto bíblico, o destino de uma pessoa; ora, “beber o mesmo cálice” de Jesus
significa partilhar esse destino de entrega e de dom da vida que Jesus vai
cumprir. O “receber o mesmo batismo” evoca a participação e imersão na paixão e
morte de Jesus (cf. Rom 6,3-4; Col 2,12). Para fazer parte da comunidade do
Reino é preciso, portanto, que os discípulos estejam dispostos a percorrer, com
Jesus, o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar
de Tiago e João manifestarem, com toda a sinceridade, a sua disponibilidade
para percorrer o caminho do dom da vida, Jesus não lhes garante uma resposta
positiva à sua pretensão… Jesus evita associar o cumprimento da missão e a
recompensa, pois o discípulo não pode seguir determinado caminho ou embarcar em
determinado projeto por cálculo ou por interesse; de acordo com a lógica do
Reino, o discípulo é chamado a seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar
nada em troca, acolhendo sempre como graças não merecidas os dons de Deus.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 41-45),
temos a reação dos discípulos à pretensão dos dois irmãos e uma catequese de
Jesus sobre o serviço.
A reação indignada dos outros discípulos ao
pedido de Tiago e de João indica que todos eles tinham as mesmas pretensões. O
pedido de Tiago e de João a Jesus aparece-lhes, portanto, como uma “jogada de
antecipação” que ameaça as secretas ambições que todos eles guardavam no
coração.
Jesus aproveita a circunstância para reiterar
o seu ensinamento e para reafirmar a lógica do Reino. Começa por recordar-lhes
o modelo dos “governantes das nações” e dos grandes do mundo (vers. 42): eles
afirmam a sua autoridade absoluta, dominam os povos pela força e submetem-nos,
exigem honras, privilégios e títulos, promovem-se à custa da comunidade,
exercem o poder de uma forma arbitrária… Ora, este esquema não pode servir de
modelo para a comunidade do Reino. A comunidade do Reino assenta sobre a lei do
amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se “servos” dos irmãos, apostados
em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer pretensão de mandar ou de
dominar. Mesmo aqueles que são designados para presidir à comunidade devem
exercer a sua autoridade num verdadeiro espírito de serviço, sentindo-se servos
de todos. Excluindo do seu universo qualquer ambição de poder e de domínio, os
membros da comunidade do Reino darão testemunho de um mundo novo, regido por
novos valores; e ensinarão os homens que com eles se cruzarem nos caminhos da
vida a serem verdadeiramente livres e felizes.
Como modelo desta nova atitude, Jesus
propõe-Se a Si próprio: Ele apresenta-Se como “o Filho do Homem que não veio
para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos” (vers.
45). De fato, toda a vida de Jesus pode ser entendida em chave de amor e
serviço. Desde o primeiro instante da encarnação, até ao último momento da sua
caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projeto do Pai e fez da sua
vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir por projetos
pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis entregar toda a sua
vida ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem encontrar a vida
plena e verdadeira.
O fruto da entrega de Jesus é o “resgate”
(“lytron”) da humanidade. A palavra aqui usada indica o “preço” pago para
resgatar um escravo ou um prisioneiro. Atendendo ao contexto, devemos pensar
que o resgate diz respeito à situação de escravidão e de opressão a que a
humanidade está submetida. Ao dar a sua vida (até à última gota de sangue) para
propor um mundo livre da ambição, do egoísmo, do poder que escraviza, Jesus
pagou o “preço” da nossa libertação. Com Ele e por Ele nasce, portanto, uma
comunidade de “servos”, que são testemunhas no mundo de uma ordem nova – a
ordem do Reino.
ATUALIZAÇÃO
• No centro deste episódio está Jesus e o
modelo que Ele propõe, com o exemplo da sua vida. A frase “o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos” (Mc
10,45) resume admiravelmente a existência humana de Jesus… Desde o primeiro
instante, Ele recusou as tentações da ambição, do poder, da grandeza, dos
aplausos das multidões; desde o primeiro instante, Ele fez da sua vida um
serviço aos pobres, aos desclassificados, aos pecadores, aos marginalizados,
aos últimos. O ponto culminante dessa vida de doação e de serviço foi a morte
na cruz – expressão máxima e total do seu amor aos homens. É preciso que
tenhamos a consciência de que este valor do serviço não é um elemento acidental
ou acessório, mas um elemento essencial na vida e na proposta de Jesus… Ele
veio ao mundo para servir e colocou o serviço simples e humilde no centro da
sua vida e do seu projeto. Trata-se de algo que não pode ser ignorado e que tem
de estar no centro da experiência cristã. Nós, seguidores de Jesus, devemos
estar plenamente conscientes desta realidade.
• O episódio que nos é hoje proposto como
Evangelho mostra, contudo, a dificuldade que os discípulos têm em entender e
acolher a proposta de Jesus. Para Tiago, para João e para os outros discípulos,
o que parece contar é a satisfação dos próprios sonhos pessoais de grandeza, de
ambição, de poder, de domínio. Não os preocupa fazer da vida um serviço simples
e humilde a Deus e aos irmãos; preocupa-os ocupar os primeiros lugares, os
lugares de honra… Jesus, de forma simples e direta, avisa-os de que a
comunidade do Reino não pode funcionar segundo os modelos do mundo. Aqui não há
meio-termo: quem não for capaz de renunciar aos esquemas de egoísmo, de
ambição, de domínio, para fazer da própria vida um serviço e um dom de amor,
não pode ser discípulo desse Jesus que veio para servir e para dar a vida.
• Ao apresentar as coisas desta forma, o nosso
texto convida-nos a repensar a nossa forma de nos situarmos, quer na família,
quer na escola, quer no trabalho, quer na sociedade. A instrução de Jesus aos
discípulos que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma denúncia dos jogos
de poder, das tentativas de domínio sobre aqueles que vivem e caminham a nosso
lado, dos sonhos de grandeza, das manobras patéticas para conquistar honras e
privilégios, da ânsia de protagonismo, da busca desenfreada de títulos, da caça
às posições de prestígio… O cristão tem, absolutamente, de dar testemunho de
uma ordem nova no seu espaço familiar, colocando-se numa atitude de serviço e
não numa atitude de imposição e de exigência; o cristão tem de dar testemunho
de uma nova ordem no seu espaço laboral, evitando qualquer atitude de injustiça
ou de prepotência sobre aqueles que dirige e coordena; o cristão tem sempre de
encarar a autoridade que lhe é confiada como um serviço, cumprido na busca
atenta e coerente do bem comum…
• Na comunidade cristã encontramos também, com
muita frequência, a tentação de nos organizarmos de acordo com princípios de
poder, de autoridade, de predomínio, à boa maneira do mundo. Sabemos, pela
história, que sempre que a Igreja tentou esses caminhos, afastou-se da sua
missão, deu um testemunho pouco credível e tornou-se escândalo para tantos
homens e mulheres bem intencionados… Por outro lado, testemunhamos todos os
dias, nas nossas comunidades cristãs, como os comportamentos prepotentes criam
divisões, rancores, invejas, afastamentos… Que não restem dúvidas: a autoridade
que não é amor e serviço é incompatível com a dinâmica do Reino. Nós, os seguidores
de Jesus, não podemos, de forma alguma, pactuar com a lógica do mundo; e uma
Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo não é a
Igreja de Jesus.
• Na nossa sociedade, os primeiros são os que
têm dinheiro, os que têm poder, os que frequentam as festas badaladas nas
revistas da sociedade, os que vestem segundo as exigências da moda, os que têm
sucesso profissional, os que sabem colar-se aos valores politicamente corretos…
E na comunidade cristã? Quem são os primeiros? As palavras de Jesus não deixam
qualquer dúvida: “quem quiser ser o primeiro, será o último de todos e o servo
de todos”. Na comunidade cristã, a única grandeza é a grandeza de quem, com
humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade
cristã não há donos, nem grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do
que as outras, nem distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na
posição social… Na comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade
confia serviços diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é
a vontade de servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.
• A atitude de serviço que Jesus pede aos seus
discípulos deve manifestar-se, de forma especial, no acolhimento dos pobres,
dos débeis, dos humildes, dos marginalizados, dos sem direitos, daqueles que
não nos trazem o reconhecimento público, daqueles que não podem retribuir-nos…
Seremos capazes de acolher e de amar os que levam uma vida pouco exemplar, os
marginalizados, os estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis,
os que ninguém quer e ninguém ama?
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