26º Domingo do Tempo Comum - Ano B
“ditos” de Jesus
A liturgia do 26º Domingo
do Tempo Comum apresenta várias sugestões para que os crentes possam purificar
a sua opção e integrar, de forma plena e total, a comunidade do Reino. Uma das sugestões mais importantes (que
a primeira leitura apresenta e que o Evangelho recupera) é a de que os crentes
não pretendam ter o exclusivo do bem e da verdade, mas sejam capazes de
reconhecer e aceitar a presença e a acção do Espírito de Deus através de tantas
pessoas boas que não pertencem à instituição Igreja, mas que são sinais vivos
do amor de Deus no meio do mundo.
A primeira leitura, recorrendo a um episódio da marcha do
Povo de Deus pelo deserto, ensina que o Espírito de Deus sopra onde quer e
sobre quem quer, sem estar limitado por regras, por interesses pessoais ou por
privilégios de grupo. O verdadeiro crente é aquele que, como Moisés, reconhece
a presença de Deus nos gestos proféticos que vê acontecer à sua volta.
No Evangelho temos uma instrução, através da qual
Jesus procura ajudar os discípulos a situarem-se na órbita do Reino. Nesse
sentido, convida-os a constituírem uma comunidade que, sem arrogância, sem
ciúmes, sem presunção de posse exclusiva do bem e da verdade, procura acolher,
apoiar e estimular todos aqueles que actuam em favor da libertação dos irmãos;
convida-os também a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres;
convida-os ainda a arrancarem da própria vida todos os sentimentos e atitudes
que são incompatíveis com a opção pelo Reino.
A segunda leitura convida os crentes a não colocarem a
sua confiança e a sua esperança nos bens materiais, pois eles são valores
perecíveis e que não asseguram a vida plena para o homem. Mais: as injustiças
cometidas por quem faz da acumulação dos bens materiais a finalidade da sua
existência afastá-lo-ão da comunidade dos eleitos de Deus.
LEITURA I – Nm 11,25-29
O
Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar
com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada
tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande
preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus
libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das
escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.
No
seu estado actual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os
últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda
apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à
planície de Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos
filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na
Terra Prometida (cf. 11,1-36,13).
Mais
do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da
Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar
que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança.
Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por
acção de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando
progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a
“assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto,
Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai
libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e
de maturidade. O autor mostra como, por acção de Deus (que está sempre presente
no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se,
transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais
responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.
O
episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num
lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em
abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se
ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf.
Nm 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que,
depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir
o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o
nosso texto.
Os
“anciãos” (em hebraico: “tzequenîm”) são uma instituição no universo político e
social de Israel. São os “cabeças de família” que formavam, em cada cidade, uma
espécie de “conselho” e que presidiam à comunidade. O nosso texto faz remontar
a Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos. Na perspectiva do catequista
bíblico, eles recebem o Espírito de Deus para colaborar na governação do Povo
de Deus.
A
forma como o nosso autor descreve o dom do Espírito é a seguinte: Deus tirou
“uma parte” do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os setenta
anciãos. Na perspectiva do autor, a explicação é esta: Moisés possuía a
plenitude do Espírito enquanto dirigiu sozinho o Povo de Deus; porém, quando a
responsabilidade da governação foi dividida com os setenta anciãos, também o
Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A descrição, ainda
que bizarra, dá a ideia, por um lado, da unidade do Espírito e, por outro, da
partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão.
A
presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de
profetizar. O “profetismo” de que aqui se fala não tem nada a ver com o
“profetismo” dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá
mais tarde; mas designa um estado de entusiasmo ou frenesim, de êxtase e
delírio colectivo, destinados a criar um clima de fervor e de exaltação
religiosa. Nesta altura, manifestações deste tipo são vistas como sinais da
presença do Espírito de Deus.
A
história tem, contudo, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que
estariam na lista dos setenta escolhidos, mas que não estavam presentes no
momento da recepção do Espírito, começaram também a profetizar. Josué crê que
se trata de um abuso intolerável, que põe em causa as competências da
hierarquia estabelecida e propõe a Moisés que lhe ponha cobro… A resposta de
Moisés é a resposta de um homem livre, magnânimo, de espírito aberto, que não
está preocupado com o controle dos mecanismos de poder, mas com a vida e a
felicidade do seu Povo: “Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que
todo o Povo fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles”
(vers. 29).
A
resposta de Moisés será um anúncio profético do dia do Pentecostes, quando o
Espírito de Deus se derramou sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf.
Act 2,16-21).
ATUALIZAÇÃO
•
A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O Espírito não é
privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem presente em todos
aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam comprometer-se com
Jesus e com o seu projecto de vida. Mesmo o irmão mais humilde, mais pobre,
menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de Deus.
•
O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e actua onde quer e
como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por interesses
pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do
Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes,
somos testemunhas da acção do Espírito no mundo através de pessoas que não
pertencem à nossa instituição religiosa… Não temos que sentir-nos melindrados
ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa
Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de
justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos (mesmo
naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua
acção, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
•
A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado
qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às
perspectivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os
esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem
fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos
apresenta.
•
Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da
escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade
e a sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve
ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade
em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo,
ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos,
a partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do
Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de fazer
as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos que a
intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos qualquer
ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque não
estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projectos pessoais…
Já pensámos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades, estamos a
impedir os outros de crescer? Já pensámos que, quando somos nós a conduzir todo
o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspectivas diferentes, podemos
estar a calar os desafios do Espírito?
SALMO
RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão:
Os preceitos do Senhor alegram o coração.
A
lei do Senhor é perfeita,
ela
reconforta a alma.
As
ordens do Senhor são firmes,
dão
sabedoria aos simples.
O
temor do Senhor é puro
e
permanece eternamente;
Os
juízos do Senhor são verdadeiros,
todos
eles são rectos.
Embora
o vosso servo se deixe guiar por eles
e
os observe com cuidado,
quem
pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
Purificai-me
dos que me são ocultos.
Preservai
também do orgulho o vosso servo,
para
que não tenha poder algum sobre mim:
então
serei irrepreensível
e
imune de culpa grave.
LEITURA II – Tg 5,1-6
A
Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos
seus interlocutores alguns dos aspectos que elencou anteriormente e que, na sua
perspectiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado
em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende
das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra.
O
primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os
crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12),
viver no orgulho e na auto-suficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para
os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O
segundo bloco (cf. Tg 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os
crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência,
perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12), oração (cf. Tg 5,1-18) e
preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg
5,19-20).
O
texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu
orgulho e auto-suficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto
deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao
lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais
aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época,
fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem.
A
primeira parte do nosso texto (vers. 1-3) trata do problema da acumulação da
riqueza. O autor, como numa visão profética, contempla o final dos tempos e
descreve, com violência, a sorte que espera aqueles cujo objectivo principal na
vida foi o acumular bens. Será que os bens, o poder, a consideração que eles
gozaram neste mundo lhes servirá de alguma coisa, quando chegar o juízo final,
o momento em que se joga o destino definitivo do homem?
Obviamente
que não. Esses bens nos quais os ricos depositam agora toda a sua segurança e
esperança perderão todo o valor (“as vossas riquezas estão apodrecidas e as
vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se…”
– vers. 2-3a); ou, pior ainda, serão uma testemunha de acusação, que denunciará
o amor descontrolado dos bens materiais, o orgulho e a auto-suficiência, as
injustiças praticadas contra os pobres. O destino final dos bens perecíveis é a
destruição; e quem tiver os bens materiais como o seu deus, a sua referência
fundamental, não terá acesso à vida plena e eterna (vers. 3b.c).
Na
segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), o autor refere-se à origem desses
bens acumulados pelos ricos. Para o autor, não há dúvidas nem meios-termos: a
riqueza provém sempre da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o
não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos
ricos (vers. 4). Trata-se de um pecado que a Lei condena de forma veemente e
que Deus castigará duramente (cf. Lv 19,13; Dt 24,15). Não pagar o salário ao
trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a sua família (vers. 6). Os
luxos e os prazeres dos ricos vivem assim da morte dos pobres.
Naturalmente,
Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao
sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até
junto de Deus e faz com que Deus actue. Com ironia mordaz, o autor compara o
rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da sua própria matança (vers. 5):
os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, estão a
preparar para si próprios um caminho de desgraça e de castigo.
A
linguagem do autor da Carta de Tiago é violenta e colorida, bem ao gosto dos
pregadores da época. Para além da veemência das palavras deve ficar, contudo,
esta mensagem: quem vive para os bens materiais e coloca neles o sentido da sua
existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e
para acolher essa vida plena que Deus quer oferecer aos homens. Por outro lado,
Deus não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a sua vida
por caminhos de injustiça, não poderá fazer parte da família de Deus.
ATUALIZAÇÃO
•
O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar porque eles vivem
apenas para acumular bens materiais, negligenciando os verdadeiros valores.
Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a sua existência em
valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão perceber que
gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem conduz o homem
à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático equívoco. O
“aviso” do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa actualidade… A acumulação
de bens materiais tornou-se, para tantos homens do nosso tempo, o único
objectivo da vida e o critério único para definir uma vida de sucesso. Contudo,
aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis facilmente constatam como essa
opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade e de vida plena. O
ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, dão-nos satisfações
imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a
nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a testemunhar que a
vida verdadeira brota dos valores eternos – esses valores que Deus nos propõe.
•
O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque
frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à
custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspectiva do autor do nosso
texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem
não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas
chorudas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os
bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e pertença
a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para não pagar
impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é cristão quem
se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios altamente
rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas rapinas…
•
Uma coisa deve ficar clara: Deus não apoia nunca quem vive fechado em si
próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para serem
postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os
pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão com
Deus.
ALELUIA
– cf. Jo 17,17b.a
Aleluia.
Aleluia.
A
vossa palavra, Senhor, é a verdade;
santificai-nos
na verdade.
EVANGELHO – Mc
9,38-43.45-47-48
Estamos
ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do Lago
de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para
Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam
tempos decisivos para esse projecto em que estão envolvidos.
Apesar
da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de não
terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de
Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados
sonhos de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se inquietos e
ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses,
a sua autoridade, os seus “privilégios”.
Jesus
vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto
que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que
Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles
devem interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
Marcos
juntou aqui uma série de “ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si
e pronunciados em contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo,
exigências várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última
análise, definem a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino.
Sendo
o Evangelho deste domingo constituído por um conjunto de “ditos” de Jesus –
originariamente independentes uns dos outros e versando questões diversas –
temos vários temas a cruzar o nosso texto. O tema principal (uma vez que é
também o tema da primeira leitura) aparece na primeira parte do Evangelho…
Refere-se à necessidade de a comunidade cristã ser uma comunidade aberta,
acolhedora, tolerante, capaz de aceitar como sinais de Deus os gestos
libertadores que acontecem no mundo.
Nos
primeiros versículos deste texto, João (desta vez o porta-voz do grupo)
queixa-se pelo facto de terem encontrado alguém a “expulsar demónios” em nome
de Jesus, embora não pertencesse ao grupo dos discípulos; considerando um abuso
a utilização do nome de Jesus por parte de alguém que não fazia parte da
comunidade messiânica, os discípulos procuraram impedi-l’O de actuar (vers.
38-41).
A
atitude dos discípulos mostra, antes de mais, arrogância, sectarismo,
intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez, pretensão de monopolizar
Jesus e a sua proposta, presunção de serem os donos exclusivos do bem e da
verdade… Mas, por detrás da reacção dos discípulos, deve estar também uma
grande preocupação com a concretização dos projectos pessoais de prestígio e
grandeza que quase todos eles alimentavam. Pouco tempo antes, eles tinham
estado a discutir uns com os outros acerca de quem seria o maior e de quem iria
herdar os postos mais importantes no Reino que, com Jesus, ia nascer (cf. Mc
9,33-37); agora, eles estão inquietos e preocupados, porque apareceu alguém de
fora do grupo que pretende actuar em nome de Jesus e que pode, num futuro
próximo, disputar-lhes os lugares de relevo na estrutura política do Reino.
Jesus
procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta da
missão. Na perspectiva de Jesus, quem luta pela justiça e faz obras em favor do
homem, está do lado de Jesus e vive na dinâmica do Reino, mesmo que não esteja
formalmente dentro da estrutura eclesial. A comunidade de Jesus não pode ser
uma comunidade fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes
quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida nos seus
privilégios e direitos pelo facto de o Espírito de Deus actuar fora das
fronteiras da Igreja… A comunidade de Jesus deve ser uma comunidade que põe,
acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem; e deve ser uma
comunidade que sabe acolher, apoiar e estimular todos aqueles que atuam em
favor da libertação dos irmãos.
Na
segunda parte do nosso texto (vers. 42-48), temos outros “ditos” de Jesus que
abordam outros temas. Constituem também indicações aos discípulos sobre as
atitudes a assumir para integrar plenamente a comunidade do Reino. Nesses
“ditos”, são usadas imagens fortes, expressivas, hiperbólicas, bem ao gosto dos
pregadores da época, destinadas a impressionar profundamente os ouvintes. Não
são expressões para traduzir à letra; mas são expressões que pretendem marcar a
necessidade de fazer escolhas acertadas, de optar com radicalidade pelos
valores do Reino.
O
primeiro desses “ditos” é um aviso àqueles que “escandalizam” os “pequeninos”
(vers. 42). Na nossa cultura, “escandalizar” é protagonizar um mau exemplo ou
um facto revoltante que melindra ou fere a susceptibilidade daqueles que
testemunham essa acção. Na linguagem de Marcos, no entanto, “escandalizar” tem
um significado um tanto diferente… O verbo grego “scandalidzô” aqui utilizado
define, em Marcos, a acção de desistir de seguir Jesus, de não ter coragem para
assumir a proposta que Jesus veio fazer (cf. Mc 4,17; 8,35.38). Os “pequeninos”
de que Jesus fala são os membros da comunidade que estão numa situação de dependência,
de debilidade, de necessidade… Os membros da comunidade do Reino devem,
portanto, abster-se de qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente
os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele veio
propor. Fazer algo que afaste uma dessas pessoas de Cristo e da comunidade é
algo verdadeiramente inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor
seria que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o
lançassem ao mar” – vers- 42).
O
segundo “dito” de Jesus (vers. 43-48) refere-se à absoluta necessidade de
arrancar da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis
com a opção por Cristo e pela sua proposta. Quando Jesus fala em cortar a mão
(a mão é, nesta cultura, o órgão da acção, através do qual se concretizam os
desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é
ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos
desejos), está a sublinhar, com toda a veemência, a necessidade de actuar, lá
onde as acções más do homem têm origem e eliminar na fonte as raízes do mal.
Estando em jogo o destino último do homem, não se pode protelar ou adiar
“cortes” importantes nas atitudes de egoísmo e de auto-suficiência que afastam
os homens de Deus e da vida plena.
Há
ainda, neste segundo “dito”, referências sucessivas a um castigo na “Geena”,
“onde o verme não morre e o fogo não se apaga”, para aqueles que recusarem
cortar com as atitudes e os sentimentos incompatíveis com o seguimento de
Jesus. A palavra “Geena” vem do hebraico “Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”).
Refere-se a um vale situado a sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os
mortos e onde, dia e noite, era queimado o lixo produzido pelos habitantes da
cidade. Era considerado, portanto, um lugar maldito, impuro, tenebroso, que
convinha evitar. Jesus usa aqui a imagem do “Ge Hinnon”, para falar de uma vida
perdida, frustrada, destruída, maldita, sem sentido. Quem não for capaz de
cortar com o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, é como se, em lugar de
viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no “Ge Hinnon”.
ATUALIZAÇÃO
•
O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito
atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em
termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses
egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos de
grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso
cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a
radicalidade que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos
apresentam no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também fazem
parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos… Assim, a
instrução que, neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a
nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas;
pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a
comunidade do Reino.
•
Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino não pode
ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga a posse
exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe qual
o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo do bem e
da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de esperança
que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da acção de não crentes
ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O verdadeiro discípulo
não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes se Deus actua através
de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade nem ter o exclusivo
de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia, por testemunhar os
valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de Deus em tantos irmãos
com outros percursos religiosos, que lutam por construir um mundo mais justo e
mais fraterno.
•
Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a acção
de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus sonhos
pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos discípulos
não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia “mover” os
membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses
egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de
gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também
pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e
continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio… Quando afastamos (com o
pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade, ou
tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e
a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a
proteger os interesses de Deus ou os nossos projectos, os nossos esquemas
interesseiros, as nossas apostas pessoais?
•
No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os
sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O
discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas está sempre
atento e vigilante, procurando detectar e eliminar da sua existência tudo
aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao
egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e
de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um processo difícil
e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de vida nova. O que é
que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha vida, para me
identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para
ser mais livre e mais feliz?
•
O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar” (afastar da
comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos,
enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os que
têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente,
aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e
rejeita… Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo lhes faz, ou
encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo? Quem vê o
nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou para se afastar de Cristo?
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