Miguel Reale Jr: anteprojeto de Código Penal “não tem conserto. É uma obscenidade”
Prof. Miguel Reale Junior
A entrevista do Prof. Miguel Reale Junior à revista Consultor Jurídico
não deixa dúvidas quanto à inépcia da comissão de juristas nomeada pelo
Senado que elaborou o anteprojeto de reforma do Código Penal.
Expressões como “o projeto é uma obscenidade, é gravíssimo” ou que
“não têm nenhum conhecimento técnico-científico” conceitua os juristas
chefiados pelo ministro Gilson Dipp.
A avaliação do eminente professor pesa mais quando define que “faltou
experiência à comissão. Tanto no manejo de termos técnicos e
científicos quanto na elaboração de leis.
Entre os erros citados, o mais grave, para Reale Júnior, foi a
inclusão de doutrina e termos teóricos e a apropriação, segundo ele,
indiscriminada, da lei esparsa no código”.
E a palavra final é: “Não tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não tem mais como consertar.”
Se o leitor tem dúvidas, leia estes trechos da entrevista:
ConJur — Qual sua avaliação do projeto de reforma do Código Penal?
Miguel Reale Júnior — É uma obscenidade, é gravíssimo. Erros da
maior gravidade técnica e da maior gravidade com relação à criação dos
tipos penais, de proporcionalidade. E a maior gravidade de todas está na
parte geral, porque é uma utilização absolutamente atécnica,
acientífica, de questões da maior relevância, em que eles demonstram não
ter o mínimo conhecimento de dogmática penal e da estrutura do crime.
ConJur — Onde isso aconteceu?
Miguel Reale — Basta ler. Para começar, no
primeiro artigo. Está escrito lá: Legalidade. “Não há crime sem lei
anterior”. É anterioridade da lei penal! Não existe lei anterior. E eles
põem a rubrica de penal na legalidade. Nas causas de exclusão da
antijuridicidade, eles colocam “exclusão do fato criminoso”, como se
fossem excluir um fato naturalístico. Não é o fato criminoso que
desaparece, é a ilicitude que desaparece. É ilógico. De repente,
desaparece o fato. Veja o parágrafo 1º: “Também não haverá fato
criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições:
mínima ofensividade, inexpressividade da lesão jurídica”. Mas uma coisa
se confunde com a outra.
Quem já está surpreso, não leu tudo. Leia isto:
ConJur — São erros banais?
Miguel Reale — Banais. Em suma, trouxeram toda a legislação
especial sem se preocupar em melhorar essa legislação esparsa que estava
aí, extravagante, que tinha erros manifestos já anotados pela crítica e
transpõe sem mudar nada. Crimes financeiros, crimes ambientais. Eu
defendo que a lei dos crimes ambientais foi a pior lei brasileira. Mas
esse projeto ganha por quilômetros…
ConJur — A Lei de Crimes Ambientais é tão ruim?
Miguel Reale — Ela diz que a responsabilidade da
pessoa jurídica só ocorrerá se houver uma decisão colegiada pela conduta
criminosa, cometida por decisão do seu representante legal ou por ordem
do colegiado, em interesse e benefício da entidade. Mas a maior parte
dos crimes ambientais são culposos, os mais graves. Quando vaza petróleo
na Chevron, por exemplo, não houve uma decisão: “Vamos estourar o cano
aqui e destruir ecossistemas…” Pela lei, precisa haver uma decisão de
prática do delito. Deixar escrito: “Vamos praticar o delito.” No projeto
de Código Penal, eles reproduzem a lei ambiental, mas têm a capacidade,
que eu mesmo imaginava inexistente, de aumentar ainda mais as tolices.
Em outro trecho da entrevista, ele exemplifica o absurdo das penas ambientais:
ConJur — Foi para diminuir as penas das condenações?
Miguel Reale — Pelo contrário, as penas são elevadíssimas! E
para fatos irrelevantes. “Artigo 394: omissão de socorro para animal.” A
qualquer animal. Se você passa e encontra um animal em estado de perigo
e não presta socorro a esse animal, sem risco pessoal, sabe qual é a
pena? De um a quatro anos. Agora, omitindo socorro a criança extraviada,
abandonada ou pessoa ferida, sabe qual a pena? Um mês. Ou seja, a pena
por não prestar socorro a um animal é 12 vezes maior do que a pena de
não prestar socorro a uma pessoa ferida. Outro exemplo: pescar ou
molestar cetáceo. Sabe qual é a pena? Dois a quatro anos. Mas se você
molestar um filhote de cetáceo, é três anos. Se você só pesca o cetáceo é
dois, mas se o cetáceo morre, passa para quatro anos. Você vai pescar
para quê? Para colocar a baleia no aquário dentro de casa? Quem puder
dormir com um barulho destes deve atentar para o brocardo “dormientibus non sucurrit jus” – o direito não socorre a quem dorme.
Fonte: Blog O que está acontecendo na América Latina?
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