Solenidade de Cristo,
Rei do Universo - Ano B
XXXIV Domingo Comum
No 34º Domingo do Tempo Comum,
celebramos a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo. A
Palavra de Deus que nos é proposta neste último domingo do ano litúrgico
convida-nos a tomar consciência da realeza de Jesus; deixa claro, no entanto,
que essa realeza não pode ser entendida à maneira dos reis deste mundo: é uma
realeza que se concretiza de acordo com uma lógica própria, a lógica de Deus.
O Evangelho, especialmente, explica qual é a lógica da realeza de
Jesus.
A primeira leitura anuncia que Deus
vai intervir no mundo, a fim de eliminar a crueza, a ambição, a violência, a
opressão que marcam a história dos reinos humanos. Através de um “filho de
homem” que vai aparecer “sobre as nuvens”, Deus vai devolver à história a sua
dimensão de “humanidade”, possibilitando que os homens sejam livres e vivam na
paz e na tranquilidade. Os cristãos verão nesse “filho de homem” vitorioso um
anúncio da realeza de Jesus.
Na segunda leitura, o autor do Livro do Apocalipse apresenta Jesus
como o Senhor
do Tempo e da História, o
princípio e o fim de todas as coisas, o “príncipe dos reis da terra”, Aquele
que há-de vir “por entre as nuvens” cheio de poder, de glória e de majestade
para instaurar um reino definitivo de felicidade, de vida e de paz. É,
precisamente, a interpretação cristã dessa figura de “filho de homem” de que
falava a primeira leitura.
O Evangelho apresenta-nos, num quadro dramático, Jesus a assumir a
sua condição de rei diante de Pontius Pilatus. A cena revela, contudo, que a
realeza reivindicada por Jesus não assenta em esquemas de ambição, de poder, de
autoridade, de violência, como acontece com os reis da terra. A missão “real”
de Jesus é dar “testemunho da verdade”; e concretiza-se no amor, no serviço, no
perdão, na partilha, no dom da vida.
LEITURA I – Dan 7,13-14
Já vimos, no domingo anterior,
que o Livro de Daniel aparece na primeira metade do século II a.C., numa época
em que o rei selêucida Antíoco IV Epífanes procurava impor, pela força, a
cultura grega ao Povo de Deus. As imposições de Antíoco IV Epífanes foram,
contudo, mal acolhidas e depararam com uma tenaz resistência, sobretudo por
parte dos sectores mais tradicionais do judaísmo. Uns judeus optaram
abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos
seus heróicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à
prepotência dos reis helênicos com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste
contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos
seus antepassados, interessado em defender a sua religião, apostado em mostrar
aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria
recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos. Contando a história de
um tal Daniel, um judeu exilado na Babilônia, que soube manter a sua fé num
ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus
concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis
à religião e aos valores dos seus pais. Neste Livro, o autor garante-lhes que
Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua fidelidade à Lei e aos
mandamentos.
O texto que nos é proposto
integra a segunda parte do Livro de Daniel (Dan 7,1-
12,13). Aí o autor, recorrendo à
“figura” da “visão”, apresenta-nos uma leitura profética da história, cuja
finalidade é transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da sua fé
e dos seus valores tradicionais.
Na primeira das “visões”
propostas (Dan 7,1-28), o autor do Livro apresenta “quatro grandes animais” (o
primeiro “era semelhante a um leão”; o segundo era “semelhante a um urso”; o
terceiro era “parecido com uma pantera”; o quarto era “horroroso, aterrador e
de uma força excepcional” e “tinha dez chifres”, embora lhe tivesse depois
nascido um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como homem e uma boca
que proferia palavras arrogantes” – Dan 7,4-8). Esses “quatro animais” evocam a
sucessão dos impérios humanos… O primeiro seria o império neo-babilônico, o
segundo representaria o império dos medos, o terceiro referir-se-ia ao império
persa e o quarto seria o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas
eram os herdeiros diretos. Os “dez chifres” desse quarto animal referem-se a
uma série de dez reis que se sucederam uns aos outros; e o décimo primeiro
chifre, mais pequeno do que os outros, seria, seguramente, Antíoco IV Epífanes,
o rei perseguidor do Povo de Deus.
Em paralelo com o quadro
histórico destes impérios – todos eles conotados com o
mal, com o imperialismo, com a
opressão, com a perseguição ao Povo de Deus – o autor coloca, numa outra cena,
“um ancião” com os cabelos e as vestes brancos “como a neve; sentado num trono
feito de chamas e servido “por milhares e dezenas de milhares”, esse “ancião”
decretou a morte do décimo primeiro “chifre”, bem como o fim do poderio dos
“quatro animais” (Dan 7,9-12). É precisamente aqui que começa a cena descrita
pelo texto da nossa primeira leitura: a entronização do “Filho do Homem” (Dan
7,13-14).
A “visão” descrita por Daniel
desde 7,1 amplia-se, agora, com o aparecimento de um “filho de homem”. Ao
contrário dos “animais” apresentados nos versículos anteriores (que vêm do mar
– na simbólica judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das forças que se
opõe a Deus e à felicidade do homem), esse “filho de homem” aparece “sobre as
nuvens do céu” (vers. 13) e tem, portanto, uma origem transcendente. Ele vem de
Deus e pertence ao mundo de Deus.
O “filho de homem” recebe de Deus
um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e nações O serviram” –
vers. 14) e um poder que não é limitado pelo tempo, nem pela finitude que
caracteriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais, e o
seu reino não será destruído” – vers. 14).
Com o anúncio do aparecimento
“sobre as nuvens” desse “filho de homem”, o autor do Livro de Daniel anuncia
aos crentes perseguidos por Antíoco IV Epífanes a chegada de um tempo em que Deus vai intervir no
mundo, a fim de eliminar a crueza, a voracidade, a ferocidade, a violência (os
reinos dos “quatro animais”), que oprimem os homens; em contrapartida, Deus vai
devolver à história a sua dimensão de “humanidade”, possibilitando que os
homens sejam livres e vivam na paz e na tranquilidade.
Para a teologia judaica, esse
“filho de homem” que há-de chegar para instaurar o “reino de Deus” sobre a
terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua intervenção irá pôr fim à
perseguição dos justos e possibilitar a vitória dos santos sobre as forças da
opressão e da morte. É esta esperança que anima os corações dos crentes na
época imediatamente anterior à chegada de Jesus.
De acordo com vários textos
neo-testamentários, Jesus aplicará esta imagem do “filho de homem que vem sobre
as nuvens” à sua própria pessoa. Ao ser interrogado pelo sumo-sacerdote Caifás,
Jesus assumirá claramente que é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, o “Filho
do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do céu” (Mc
14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta imagem para sublinhar a
glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a história humana (cf. At
7,55-
56). Para os cristãos, Cristo é,
efetivamente, esse “filho de homem” anunciado em Dan 7, que irá libertar os
santos das garras do poder opressor e instaurar o reino definitivo da
felicidade e da paz.
ATUALIZAÇÃO
♦ O texto que nos é proposto como
primeira leitura na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo,
aparece inserido numa reflexão mais ampla sobre a história e sobre os valores
sobre os quais são construídos os impérios humanos. Os reinos construídos pelos
homens baseiam-se, frequentemente, num poder arrogante e são geradores de
exploração, de miséria, de violência. Trata-se de uma realidade que os modernos
impérios perpetuam e que, hoje como ontem, marca a história humana. A
humanidade estará, irremediavelmente, condenada a viver sob o domínio da
injustiça e da opressão? Nunca nos libertaremos desse ciclo de morte? Deus
assiste, indiferente e de braços cruzados, a esta dinâmica de violência e de
violação dos direitos mais elementares dos povos e das nações? O “profeta”
autor do Livro de Daniel acredita que o reino do mal não será eterno e que Deus
intervém na história para destruir essas forças de morte que impedem os homens
de alcançar a liberdade, a paz, a vida plena. Numa época em que os
imperialismos, os fundamentalismos, os colonialismos, a cegueira dos líderes
das nações poderosas multiplicam o sofrimento de tantos homens e mulheres, a
profecia de Daniel convida-nos à esperança e à confiança: Deus não abandona o
seu Povo em marcha pela história e saberá derrubar todos os poderes humanos que
impedem a realização plena do homem.
♦ O anúncio de um “filho de
homem” que virá “sobre as nuvens” para instaurar um reino que “não será
destruído” leva-nos a Jesus. Ele veio ao encontro dos homens para lhes propor
uma nova ordem, em que os pobres, os débeis, os fracos, os marginalizados,
aqueles que não podem fazer ouvir a sua voz nos grandes areópagos
internacionais não mais serão humilhados e espezinhados. Jesus introduziu na
história uma nova lógica, substituindo a lógica do orgulho e do egoísmo, por
uma lógica de amor, de serviço, de doação. É verdade que, mais de dois mil anos
depois do nascimento de Jesus, esse reino ainda não se tornou uma realidade
plena na nossa história; contudo, o reino proposto por Jesus está presente na
vida do mundo, como uma semente a crescer ou como o fermento a levedar a massa.
Compete-nos a nós, discípulos de Jesus, fazer com que esse reino seja, cada vez
mais, uma realidade bem viva, bem presente, bem atuante no nosso mundo.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 92 (93)
LEITURA II – Ap 1,5-8
“Apocalipse” significa
“manifestação de algo que está oculto”. O nosso “Livro do Apocalipse” – do qual
é retirado o trecho da nossa segunda leitura – é um livro que se apresenta como
uma “revelação” sobre “as coisas que brevemente devem acontecer” (Ap 1,1) e que
um tal João, exilado na ilha de Patmos (uma pequena ilha do Mar Egeu) por causa
da sua fé, tem por missão comunicar aos seus irmãos na fé.
Estamos na fase final do reinado
do imperador Domiciano (à volta do ano 95). As comunidades cristãs da Ásia Menor
vivem numa grave crise interna, resultante das heresias, da falta de
entusiasmo, da tibieza, da indiferença, do medo de dar testemunha da própria
fé. Por outro lado, há também uma crise que resulta de causas externas,
sobretudo da violenta perseguição que o imperador ordenou contra os cristãos:
muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados e outros, cheios de
medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade
dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava mesmo, como senhor
todo-poderoso, era o imperador de Roma.
É neste contexto de crise, de
perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o Apocalipse. O objetivo
do autor é levar os crentes a revitalizarem o seu compromisso com Jesus e a não
perderem a esperança. Nesse sentido, o autor do livro começa por fazer um
convite à conversão (primeira parte – Ap 1-3); passa, depois, a apresentar uma
leitura profética da história humana, que dá conta da vitória final de Deus e
dos
seus fiéis sobre as forças do mal
(segunda parte – Ap 4-22). Estes conteúdos são apresentados com o recurso
sistemático ao símbolo (como é típico da literatura apocalíptica), o que torna
este livro estranho e difícil mas, ao mesmo tempo, muito belo e interpelante.
O texto da segunda leitura de
hoje apresenta-nos alguns dos primeiros versículos do Livro do Apocalipse.
Trata-se de uma espécie de introdução litúrgica, onde se apresenta o diálogo
litúrgico entre um leitor e a comunidade cristã reunida para escutar uma
proclamação. Neste diálogo, a comunidade é convidada a aceitar Cristo como o
centro da história humana, a razão de ser da comunidade, a coordenada
fundamental à volta da qual se estrutura e organiza toda a vida cristã.
O leitor começa por apresentar Jesus à comunidade
reunida para celebrar o seu Senhor, recorrendo a três títulos cristológicos
(vers. 5a) que deviam fazer parte da catequese da comunidade joânica:
“testemunha fiel”, “primogênito dos mortos”, “príncipe dos reis da terra”.
Jesus é a “testemunha fiel” porque, com a sua vida, com as suas palavras, com
os seus gestos de serviço, de amor e de doação, com a sua entrega até à morte,
testemunhou, de forma perfeita, o que Deus queria revelar aos homens e mostrou
aos homens o rosto do Deus-amor. Jesus é o “primogênito dos mortos”, porque foi
o primeiro a vencer a morte e o pecado e demonstrou-nos, com essa vitória, que
quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas está destinado
à vida eterna. Jesus é o “príncipe dos reis da terra”, porque inaugurou uma
nova forma de ser e um reino novo, de vida e de felicidade sem fim.
Depois de escutar esta
proclamação, a comunidade, reconhecida, louva o seu Senhor: “àquele que nos ama
e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes
para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém”
(vers. 5b-6). Os membros da comunidade cristã têm consciência de que a entrega
de Jesus na cruz é expressão do amor sem medida com que Ele ama todos os
homens… Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do pecado; porque
ama, Jesus convidou os homens a integrar um reino novo, de amor e de paz;
porque ama, Jesus associou os homens à sua missão, tornando-os sacerdotes que
oferecem a Deus o culto das suas próprias vidas. Jesus inseriu os homens numa
dinâmica de vida nova, aproximou-os de Deus, convidou-os a integrar a família
de Deus. A comunidade cristã, consciente desta realidade, manifesta no culto o
seu reconhecimento.
A “liturgia” prossegue com o
leitor a recordar à comunidade reunida que Jesus há-de vir ao encontro dos
seus, cheio de poder e majestade, a fim de inaugurar uma nova era de vida e de
paz sem fim (“entre as nuvens” – vers. 7. A imagem é tirada do Antigo Testamento e
está associada às manifestações de Deus. No Livro de Daniel – cf. Dan
7,13 – o “filho de homem” que
aparece sobre as nuvens está associado à vitória de Deus sobre os reinos e os
poderes do mundo). Recorda-se, assim, aos crentes que a última palavra nunca é
dos maus e dos perseguidores, mas sim de Deus. Por outro lado, todos os homens
poderão ver o coração trespassado de Cristo (vers. 7a.b) e tomarão consciência
de quanto Ele ama os homens. A vitória de Cristo concretizar-se- á através do
seu amor, feito dom a todos os homens, sem exceção.
A comunidade manifesta a sua
adesão a Cristo e às verdades proclamadas respondendo: “sim. Amém” (vers. 7c).
O leitor conclui a sua
apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de
todas as coisas (o “alfa” e o “ômega”,
a primeira e a última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História
e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há-de vir” –
vers. 8). Os cristãos que participam nesta “liturgia” percebem, assim, que
podem confiar incondicionalmente nesse Jesus que é a referência fundamental da
história humana; e percebem, também, que são convidados a fazer de Jesus o
centro das suas vidas.
ATUALIZAÇÃO
♦ A figura de Jesus que é
proposta à comunidade pelo autor do nosso texto é a figura do Senhor do Tempo e
da História, princípio e fim de todas as coisas; é a figura do “príncipe dos
reis da terra”, que há-de vir “por entre as nuvens” cheio de poder, de glória e
de majestade para instaurar um reino definitivo de felicidade, de vida e de
paz. Esta imagem de Jesus apela à confiança e à esperança: sejam quais forem as
circunvoluções e as derrapagens da história humana, o caminho dos homens não
será um caminho sem saída, destinado ao fracasso; mas será um caminho que
desembocará inevitavelmente nesse reino novo de vida e de paz sem fim que Jesus
veio anunciar e propor.
♦ A ação de Jesus como Senhor da
História não se concretizará, contudo, numa lógica de poder, de autoridade, de
força, à imagem dos reis da terra. Na sua catequese, o autor do Livro do
Apocalipse sublinha o amor de Jesus, manifestado no dom da vida para libertar
os homens do egoísmo e do pecado, para os inserir numa dinâmica de vida nova,
para os integrar na família de Deus. Jesus, o nosso rei, é um rei que ama os
seus com um amor sem limites e que, por amor, ofereceu a sua vida em favor da
liberdade e da realização plena do homem. Neste dia em que celebramos a
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, somos convidados (com
as comunidades a quem o Livro do Apocalipse se destinava) a agradecer pelo amor
de Jesus que nos libertou do egoísmo e da morte; e somos convidados, também, a
ter a mesma atitude de Jesus, substituindo os esquemas de egoísmo, de poder e
de prepotência, pelo amor que se faz doação e serviço aos homens.
♦ Na apresentação feita pelo
autor do Livro do Apocalipse, os crentes são convidados a ver Jesus como o
centro da história e a fazerem d’Ele a coordenada fundamental à volta da qual
se constrói a existência humana, em geral, e a existência cristã, em particular. Jesus
é, efetivamente, o centro da história humana? Que impacto tem a sua proposta na
construção do nosso mundo? Jesus está, efetivamente, no centro das nossas
comunidades cristãs? Ele é a referência fundamental para os crentes? Os seus
valores, os seus ensinamentos condicionam a vida dos crentes, a sua forma de
ver o mundo, os compromissos que eles assumem com os outros homens?
ALELUIA – Mc 11,9.10
Aleluia. Aleluia.
Bendito o que vem em nome do
Senhor, bendito o reino do nosso pai David.
EVANGELHO – Jo 18,33b-37
O Evangelho da Solenidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, apresenta-nos uma cena do processo
de Jesus diante de Pontius Pilatus, o governador romano da Judeia. Para trás
havia já ficado o frente a frente de Jesus com os líderes judaicos, nomeadamente
com Anás (sogro de Caifás, o sumo-sacerdote; Anás, apesar de ter deixado o
cargo de sumo-sacerdote, continuava a ser um personagem muito influente e foi
ele, provavelmente, quem liderou o processo contra Jesus – cf. Jo
18,12-14.19-24).
Pontius Pilatus, o interlocutor
romano de Jesus, governou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36. As
informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam-no como um governante duro e
violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de opositores sem um
processo legal. As queixas de excessiva crueldade apresentadas contra ele pelos
samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, o legado romano na Síria, a tomar
posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do imperador. Pontius
Pilatus foi deposto do seu cargo de governador da Judeia logo a seguir.
Curiosamente, o autor do Quarto
Evangelho descreve Pontius Pilatus como um homem fraco, indeciso e volúvel, uma
espécie de marionete habilmente manobrada pelos líderes judaicos. Esta
apresentação – que contradiz os dados deixados pelos historiadores da época –
não deve ter grandes bases históricas: deve ser, apenas, uma tentativa de
livrar os romanos de qualquer culpa no processo de Jesus. Na época em que o
autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), não era conveniente
para os cristãos acusar Roma, afirmando a sua responsabilidade no processo que
levou Jesus à morte. Assim, os escritores cristãos da época preferiram
branquear o papel do poder imperial e, por outro lado, fazer recair sobre as
autoridades judaicas toda a culpa pela condenação de Jesus.
O interrogatório de Jesus começa
com uma pergunta direta, posta por Pontius Pilatus (vers. 33b): «Tu és o Rei
dos judeus?» Este início de interrogatório revela qual era a acusação
apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: Ele tinha pretensões
messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos
opressores. Esta linha de
acusação vê em Jesus um agitador político empenhado em mudar o mundo pela
força, que fundamenta as suas pretensões e a sua ação no poder das armas e na
autoridade dos exércitos. Esta acusação tem fundamento? Jesus aceita-a?
A resposta de Jesus situa as
coisas na perspectiva correta. Ele assume-se como o messias que Israel esperava
e confirma, claramente, a sua qualidade de rei; no entanto, descarta qualquer
parecença com esses reis que Pontius Pilatus conhece (vers. 36). Os reis deste
mundo apoiam-se na força das armas e impõem aos outros homens o seu domínio e a
sua autoridade; a sua realeza baseia-se na prepotência e na ambição e gera
opressão, injustiça e sofrimento… Jesus, em contrapartida, é um prisioneiro
indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos,
abandonado pelo povo; não se impõe pela força, mas veio ao encontro dos homens
para os servir; não cultiva os próprios interesses, mas obedece em tudo à
vontade de Deus, seu Pai; não está interessado em afirmar o seu poder, mas em
amar os homens até ao dom da própria vida… A sua realeza é de uma outra ordem,
da ordem de Deus. É uma realeza que toca os corações e que, em vez de produzir
opressão e morte, produz vida e liberdade. Jesus é rei e messias, mas não vai
impor a ninguém o seu reinado; vai apenas propor aos homens um mundo novo,
assente numa lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.
A declaração de Jesus causa
estranheza a Pontius Pilatus. Ele não consegue entender que um rei renuncie ao
poder e à força e fundamente a sua realeza no amor e na doação da própria vida.
A expressão posta na boca de Pontius Pilatus «então, Tu és Rei» (vers. 37a)
parece uma “deixa” de alguém para quem as declarações do seu interlocutor não
são claras e que conserva a porta aberta a ulteriores explicações… Na
sequência, Jesus confirma a sua realeza e define o sentido e o conteúdo do seu
reinado.
A realeza de que Jesus Se
considera investido por Deus consiste em «dar testemunho
da verdade» (vers. 37b). Para o
autor do Quarto Evangelho, a “verdade” é a realidade de Deus. Essa “verdade”
manifesta-se nos gestos de Jesus, nas suas palavras, nas suas atitudes e, de
forma especial, no seu amor vivido até ao extremo do dom da vida. A “verdade”
(isto é, a realidade de Deus) é o amor incondicional e sem medida que Deus
derrama sobre o homem, a fim de o fazer chegar à vida verdadeira e definitiva.
Essa “verdade” opõe-se à “mentira”, que é o egoísmo, o pecado, a opressão, a
injustiça, tudo aquilo que desfeia a vida do homem e o impede de alcançar a
vida plena. A “realeza” de Jesus concretiza-se, por um lado, na luta contra o
egoísmo e o pecado que escravizam o homem e que o impedem de ser livre e feliz;
por outro lado, a realeza de Jesus consuma-se na proposição de uma vida feita
amor e entrega a Deus e aos irmãos. Esta meta não se alcança através de uma
lógica de poder e de força (que só multiplicam as cadeia de mentira, de
injustiça, de violência); mas alcança-se através do amor, da partilha, do
serviço simples e humilde em favor dos irmãos. É esse “reino” que Jesus veio
propor; é a esse “reino” que Ele preside.
A proposta de Jesus provoca uma
resposta livre do homem. Quem escuta a voz de Jesus adere ao seu projeto e se
compromete a segui-l’O, renuncia ao egoísmo e ao pecado e faz da sua vida um
dom de amor a Deus e aos irmãos (vers. 37c). Passa, então, a integrar a
comunidade do “Reino de Deus”.
ATUALIZAÇÃO
♦ As declarações de Jesus diante
de Pontius Pilatus não deixam lugar a dúvidas: Ele é “rei” e recebeu de Deus,
como diz a primeira leitura, “o poder, a honra e a realeza” sobre todos os
povos da terra. Ao celebrarmos a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei
do Universo, somos convidados, antes de mais, a descobrir e interiorizar esta
realidade: Jesus, o nosso rei, é princípio e fim da história humana, está
presente em cada passo da caminhada dos homens e
conduz a humanidade ao encontro
da verdadeira vida. Os inícios do séc. XXI estão marcados por uma profunda
crise de liderança a nível mundial. Os grandes líderes das nações são,
frequentemente, homens com uma visão muito limitada do mundo, que não se
preocupam com o bem da humanidade e que conduzem as suas políticas de acordo
com lógicas de ambição pessoal ou de interesses particulares. Sentimo-nos, por
vezes, perdidos e impotentes, arrastados para um beco sem saída por líderes
medíocres, prepotentes e incapazes… Esta constatação não deve, no entanto, lançar-nos
no desânimo: nós sabemos que Cristo é o nosso rei, que Ele preside à história e
que, apesar das falhas dos homens, continua a caminhar conosco e a apontar-nos
os caminhos da salvação e da vida.
♦ No entanto, a realeza de Jesus
não tem nada a ver com a lógica de realeza a que o mundo está habituado. Jesus,
o nosso rei, apresenta-Se aos homens sem qualquer ambição de poder ou de
riqueza, sem o apoio dos grupos de pressão que fazem os valores e a moda, sem
qualquer compromisso com as multinacionais da exploração e do lucro. Diante dos
homens, Ele apresenta-se só, indefeso, prisioneiro, armado apenas com a força
do amor e da verdade. Não impõe nada; só propõe aos homens que acolham no seu
coração uma lógica de amor, de serviço, de obediência a Deus e aos seus projetos,
de dom da vida, de solidariedade com os pobres e marginalizados, de perdão e
tolerância. É com estas “armas” que Ele vai combater o egoísmo, a
auto-suficiência, a injustiça, a exploração, tudo o que gera sofrimento e
morte. É uma lógica desconcertante e incompreensível, à luz dos critérios que o
mundo avaliza e enaltece. A lógica de Jesus fará sentido? O mundo novo, de vida
e de felicidade plena para todos os homens nascerá de uma lógica de força e de
imposição, ou de uma lógica de amor, de serviço e de dom da vida?
♦ Nós, os que aderimos a Jesus e optamos
por integrar a comunidade do Reino de Deus, temos de dar testemunho da lógica
de Jesus. Mesmo contra a corrente, a nossa vida, as nossas opções, a forma de
nos relacionarmos com aqueles com quem todos os dias nos cruzamos, devem ser
marcados por uma contínua atitude de serviço humilde, de dom gratuito, de
respeito, de partilha, de amor. Como Jesus, também nós temos a missão de lutar
– não com a força do ódio e das armas, mas com a força do amor – contra todas
as formas de exploração, de injustiça, de alienação e de morte… O
reconhecimento da realeza de Cristo convida-nos a colaborar na construção de um
mundo novo, do Reino de Deus.
♦ A forma simples e
despretensiosa como Jesus, o nosso Rei, Se apresenta, convida-nos a repensar
certas atitudes, certas formas de organização e certas estruturas que criamos…
A comunidade de Jesus (a Igreja) não pode estruturar-se e organizar-se com os
mesmos critérios dos reinos da terra… Deve interessar-se mais por dar um
testemunho de amor e de solidariedade para com os pobres e marginalizados do
que em controlar as autoridades políticas e os chefes das nações; deve
preocupar-se mais com o serviço simples e humilde aos homens do que com os
títulos, as honras, os privilégios; deve apostar mais na partilha e no dom da
vida do que na posse de bens materiais ou na eficiência das estruturas. Se a
Igreja não testemunhar, no meio dos homens, essa lógica de realeza que Jesus
apresentou diante de Pontius Pilatus, está a ser gravemente infiel à sua
missão.
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