33º Domingo do Tempo Comum - Ano
B
O mundo novo sonhado por Deus é uma realidade escatológica.
A liturgia do 33º Domingo do Tempo Comum apresenta-nos,
fundamentalmente, um convite à esperança. Convida-nos a confiar nesse Deus
libertador, Senhor da história, que tem um projeto de vida definitiva para os
homens. Ele vai – dizem os nossos textos – mudar a noite do mundo numa aurora
de vida sem fim.
A primeira leitura anuncia aos crentes perseguidos e desanimados a
chegada iminente do tempo da intervenção libertadora de Deus para salvar o Povo
fiel. É esta a esperança que deve sustentar os justos, chamados a permanecerem
fiéis a Deus, apesar da perseguição e da prova. A sua constância e fidelidade
serão recompensadas com a vida eterna.
No Evangelho, Jesus garante-nos que, num futuro sem data marcada, o
mundo velho do egoísmo e do pecado vai cair e que, em seu lugar, Deus vai fazer
aparecer um mundo novo, de vida e de felicidade sem fim. Aos seus discípulos,
Jesus pede que estejam atentos aos sinais que anunciam essa nova realidade e
disponíveis para acolher os projeto, os apelos e os desafios de Deus.
A segunda leitura lembra que Jesus veio ao mundo para concretizar o
projeto de Deus no sentido de libertar o homem do pecado e de o inserir numa
dinâmica de vida eterna. Com a sua vida e com o seu testemunho, Ele ensinou-nos
a vencer o egoísmo e o pecado e a fazer da vida um dom de amor a Deus e aos
irmãos. É esse o caminho do mundo novo e da vida definitiva.
LEITURA I – Dan 12,1-3
Leitura da Profecia de Daniel
Em 333 a.C., Alexandre da Macedônia
derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de Issos (Síria). A Palestina,
até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império de Alexandre.
Alexandre procurou impor a ideia da “oikouméne”, quer dizer, a ideia de um
mundo em que todos os homens eram uma só família, unidos sob uma só lei divina,
em que todos os cidadãos do império eram cidadãos de uma mesma cidade e
comungavam dos mesmos valores e da mesma cultura.
Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., o império foi
disputado pelos seus generais. A Palestina foi, então, objeto de disputa entre
os ptolomeus, que ocupavam o Egito, e os selêucidas, que dominavam a Síria e a
Mesopotâmia. Num primeiro momento, os ptolomeus asseguraram o domínio da
Palestina e da Síria; mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe V da Macedônia,
acabou por vencer os ptolomeus (batalha das fontes do Jordão, ano 200 a.C.) e por conquistar o
domínio da Palestina.
Se o período ptolomaico tinha
sido uma época de relativa benevolência para com a cultura judaica, a situação
mudou radicalmente durante o reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.). Este rei,
interessado em impor a cultura helênica em todo o seu império, praticou uma
política de intolerância para com a cultura e a religião judaicas. A perseguição
foi dura e as marcas da intolerância selêucida provocaram feridas muito graves
no universo social e religioso judaico. Se muitos judeus renegaram a sua fé e
assumiram os valores helênicos, muitos outros resistiram, defenderam a sua
identidade cultural e religiosa. Uns optaram abertamente pela insurreição
armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heróicos seguidores);
outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helênicos com
a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste
contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos
seus antepassados, interessado em defender a sua cultura e a sua religião,
apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores
tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos.
Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilônia, que soube
manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel
pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição de Antíoco
IV Epífanes e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais.
Neste livro, o autor garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que
recompensará a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos. Estamos na segunda
metade do séc. II a.C., pouco antes do desaparecimento de cena de Antíoco (que
aconteceu em 164 a.C.).
Com o livro de Daniel,
inaugura-se a literatura apocalíptica. Num tempo de perseguição, o autor
pretende – servindo-se de um género literário que recorre, frequentemente, a
símbolos e a uma linguagem cifrada – restaurar a esperança e assegurar ao seu
Povo a vitória de Deus e dos seus fiéis sobre os opressores.
Aos crentes perseguidos, o autor
do livro anuncia a chegada iminente do tempo da intervenção salvadora de Deus
para salvar o Povo fiel. Nesse sentido, ele refere-se à intervenção de
“Miguel”, o chefe do exército celestial, que Deus enviará para castigar os
perseguidores e para proteger os santos. No imaginário religioso judaico,
“Miguel” é concebido como um espírito celeste (uma espécie de anjo protetor)
que vela pelo Povo de Deus e que, por mandato divino, opera a libertação dos
justos perseguidos, cujo nome está inscrito “no livro da vida” (vers. 1).
Essa intervenção iminente de Deus
não atingirá, na perspectiva do nosso autor, somente aqueles que ainda caminham
na história; mas Deus irá, também, ressuscitar os que já morreram, a fim de
lhes dar o prêmio pela sua vida de fidelidade ou o castigo pelas maldades que
praticaram (vers. 2). Em concreto, o autor estará a falar daquilo que
costumamos chamar “o fim do mundo”? O que ele está a falar é de uma intervenção
de Deus que porá fim ao mundo da injustiça, da opressão, da prepotência, de
morte e que iniciará um mundo novo, de justiça, de felicidade, de paz, de vida
verdadeira.
Aqueles que, apesar da
perseguição e do sofrimento, se mantiveram fiéis a Deus e aos seus valores,
esses estão destinados à “vida eterna”. O autor deste texto não explica diretamente
em que consistirá essa “vida eterna”; mas os símbolos utilizados
(“resplandecerão como a luminosidade do firmamento”; “brilharão como as
estrelas com um esplendor eterno” – vers. 3) evocam a transfiguração dos
ressuscitados. Essa vida nova que os espera não será uma vida semelhante à do
mundo presente, mas será uma vida transfigurada.
É esta a esperança que deve
sustentar os justos, chamados a permanecerem fiéis a Deus, apesar da
perseguição e da prova. A sua vida não é – garante-nos o nosso autor – sem
sentido e não está condenada ao fracasso; mas a sua constância e fidelidade
serão recompensadas com a vida eterna. Embora sem dados muito concretos e sem
definições muito claras, começa aqui a esboçar-se a teologia da ressurreição.
ATUALIZAÇÃO
• A mensagem de esperança que o
nosso texto nos deixa destinava-se a animar os crentes que sofriam a
perseguição numa época e num contexto particulares. No entanto, é uma mensagem
válida para os crentes de todas as épocas e lugares. A “perseguição” por causa
da fidelidade aos valores em que acreditamos é uma realidade que todos
conhecemos e que faz parte da nossa existência comprometida. Hoje, essa
“perseguição” nem sempre é sangrenta; manifesta-se, muitas vezes, em atitudes
de marginalização ou de rejeição, em ditos humilhantes, em atitudes provocatórias,
na colagem de “rótulos” (“conservadores”, “atrasados”, “fora de moda”), em
julgamentos apressados e injustos, em preconceitos e oposições… Contudo, é
sempre uma realidade que faz sofrer o Povo de Deus. Este texto garante-nos que
Deus nunca abandona o seu Povo em marcha pela história e que a vitória final
será daqueles que se mantiverem fiéis às propostas e aos caminhos de Deus. Esta
certeza constitui um “capital de esperança” que deve animar a nossa caminhada
diária pelo mundo.
• O Livro de Daniel põe, também,
a questão da fidelidade aos valores verdadeiramente importantes, que estão para
além das conveniências políticas e sociais, ou das imposições e perspectivas de
quem dita a moda… Daniel, o personagem central do livro, é uma figura interpelante,
que nos convida a não transigirmos com os valores efêmeros, sobretudo quando
eles põem em causa os valores essenciais. O cristão não é uma “cana agitada
pelo vento” que, por interesse ou por cálculo, esquece os valores e as
exigências fundamentais da sua fé; mas é “profeta” que, em permanente diálogo
com o mundo e sem se alhear do mundo, procura dar testemunho dos valores
perenes, dos valores de Deus.
• A certeza da presença de Deus a
acompanhar a caminhada dos crentes e a convicção de que a vitória final será de
Deus e dos seus fiéis, permite-nos olhar a história da humanidade com confiança
e esperança. O cristão não pode ser, portanto, um “profeta da desgraça”, que
tem permanentemente uma perspectiva negra da história e que olha o mundo com
azedume e pessimismo; mas tem de ser uma pessoa alegre e confiante, que olha
para o futuro com serenidade e esperança, pois sabe que, presidindo à história
dos homens, está esse Deus que protege, que cuida e que ama cada um dos seus
filhos.
• O nosso texto garante a vida
eterna àqueles que procuraram viver na fidelidade aos valores de Deus. A
certeza de que a vida não acaba na morte liberta-nos do medo e dá-nos a coragem
do compromisso. Podemos, serenamente, enfrentar neste mundo as forças da
opressão e da morte, porque sabemos que elas não conseguirão derrotar-nos: no
final da nossa caminhada por este mundo, está sempre a vida eterna e
verdadeira, que Deus reserva para os que estão “inscritos no livro da vida”.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 15
(16)
Refrão 1: Defendei-me, Senhor:
Vós sois o meu refúgio.
Refrão 2: Guardai-me, Senhor,
porque esperei em Vós.
Senhor, porção da minha herança e
do meu cálice,
está nas vossas mãos o meu
destino.
O Senhor está sempre na minha
presença,
com Ele a meu lado não vacilarei.
Por isso o meu coração se alegra
e a minha alma exulta
e até o meu corpo descansa
tranquilo.
Vós não abandonareis a minha alma
na mansão dos mortos,
nem deixareis o vosso fiel sofrer
a corrupção.
Dar-me-eis a conhecer os caminhos
da vida,
alegria plena em vossa presença,
delícias eternas à vossa direita.
LEITURA II – Heb 10,11-14.18
Leitura da Epístola aos Hebreus
Pela última vez, neste ano
litúrgico, é-nos apresentado um texto da Carta aos Hebreus. Esta “Carta” (que,
mais do que uma “carta”, é uma “homilia”) destina-se a comunidades cristãs que
vivem dias complicados… À falta de entusiasmo de muitos dos seus membros na
vivência do compromisso cristão, junta-se a hostilidade dos inimigos e as
confusões causadas à fé comunitária por certos pregadores pouco ortodoxos que
ensinam doutrinas estranhas e pouco cristãs. São, portanto, comunidades
fragilizadas, cansadas e desalentadas, que necessitam de redescobrir o seu
entusiasmo inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar
numa fé mais coerente e mais empenhada.
Nesse sentido, o autor da “Carta”
apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é
pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a
comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes são chamados a
fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta
forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé
primitiva, capaz de revitalizar uma experiência de fé enfraquecida pela
hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento
do entusiasmo inicial.
O texto que nos é proposto é
parte da conclusão da reflexão sobre o sacerdócio de Cristo (cf. Heb 10,1-18).
Aí, o autor repete temas desenvolvidos nos capítulos precedentes, procurando,
uma vez mais, pôr em relevo a dimensão salvadora da missão sacerdotal de Jesus.
O objetivo é despertar no coração dos crentes uma resposta adequada ao amor de
Deus, manifestado na ação de Jesus.
Os “sacrifícios pelo pecado”
constituíam um dos pilares do culto israelita. Introduzidos no sistema cultual
de Israel em época relativamente tardia (alguns autores duvidam mesmo da sua
existência antes do Exílio na Babilônia), tinham a função de expiar os pecados
do Povo e de refazer a comunhão entre os crentes e Deus. Ao oferecer, sobre o
altar do Templo, a vida de um animal, o crente pedia a Jahwéh perdão pelo
pecado, manifestava a sua intenção de continuar a pertencer à comunidade de
Deus e mostrava a sua vontade de reatar essa relação com Deus que o pecado
tinha interrompido. O autor da Carta aos Hebreus está convencido, no entanto,
que os sacrifícios oferecidos pelo pecado não eram eficazes e não conseguiam,
de forma duradoura, restabelecer essa corrente de vida e de comunhão entre o
Povo e Deus. Tratava-se de ritos externos e superficiais, que nunca lograram
transformar os corações duros e egoístas dos homens em corações capazes de
viverem no amor a Deus e aos irmãos.
Jesus, no entanto, com a entrega
da sua vida, conseguiu concretizar esse objetivo de aproximar os homens de
Deus. Ele obedeceu a Deus em tudo e ofereceu a sua vida em dom de amor aos
homens. Com o seu exemplo e testemunho, Ele propôs aos homens um caminho novo,
mudou os seus corações e ensinou-os a viverem numa total disponibilidade para
com os projetos de Deus, na entrega total aos irmãos. Dessa forma, Jesus venceu
a lógica do egoísmo e do pecado e colocou os homens no caminho certo para
integrarem a família de Deus. O sacrifício de Jesus, oferecido de uma só vez,
libertou, efetivamente, os homens de uma dinâmica de egoísmo e de pecado e
permitiu-lhes aproximarem-se de Deus com um coração renovado. Assim, Ele “tornou
perfeitos para sempre os que são santificados” (vers. 14).
Cumprida a sua missão na terra,
Jesus “sentou-Se para sempre à direita de Deus” (vers. 12). Esta imagem de
triunfo e de glória mostra, não apenas como o caminho percorrido por Cristo é
um caminho que tem a aprovação de Deus mas, sobretudo, qual é a “meta” final da
caminhada do homem: a divinização, a comunhão com Deus, a pertença à família de
Deus. Se o caminho da fidelidade aos projectos de Deus e da entrega por amor
aos irmãos levou Jesus a sentar-Se à direita do Pai, também aqueles que seguem
Jesus chegarão à mesma meta e sentar-se-ão, por sua vez, à direita de Deus.
Desta forma, o autor da Carta aos
Hebreus exorta os cristãos a viverem na fidelidade aos compromissos que
assumiram com Cristo no dia do seu Batismo. Quem, apesar das dificuldades,
percorre o mesmo caminho de Cristo, está destinado a sentar-se “à direita de
Deus” e a viver, para sempre, em comunhão com Deus.
ATUALIZAÇÃO
• O pecado, consequência da nossa
finitude, é sempre uma realidade que impede a comunhão plena com Deus e o
acesso à vida verdadeira. É, portanto, algo que constitui um obstáculo à nossa
realização plena, ao aparecimento do Homem Novo. Estaremos, em consequência,
fatalmente condenados a não realizar a nossa vocação de comunhão com Deus e a
não concretizar o nosso desejo de vida em plenitude? A segunda leitura deste
domingo garante-nos que Deus não abandona o homem que faz, mesmo
conscientemente, opções erradas. O nosso egoísmo, o nosso orgulho, a nossa
auto-suficiência, o nosso comodismo, o nosso pecado não têm a última palavra e
não nos afastam decisivamente da comunhão com Deus e da vida eterna; a última
palavra é sempre do amor de Deus e da sua vontade de salvar o homem.
• Jesus, o Filho amado de Deus,
veio ao mundo para concretizar o projeto de Deus no sentido de nos libertar do
pecado e de nos inserir numa dinâmica de vida eterna. Com a sua vida e com o
seu testemunho, Ele ensinou-nos a vencer o egoísmo e o pecado e a fazer da vida
um dom de amor a Deus e aos irmãos. No dia do nosso Batismo, aderimos ao projeto
de vida que Jesus nos apresentou e passamos a integrar a comunidade dos filhos
de Deus. Resta-nos, agora, seguir os passos de Jesus e percorrer, dia a dia,
esse caminho de amor e de serviço que Ele nos deixou em herança. É um
compromisso sério e exigente, que necessita de ser continuamente renovado. O
nosso compromisso com Jesus e com a sua proposta de vida exige que, como Ele,
vivamos no amor, na partilha, no serviço, se necessário até ao dom total da
vida; exige que lutemos, sem desanimar, contra tudo aquilo que rouba a vida do
homem e o impede de chegar à vida plena; exige que sejamos, no meio do mundo,
testemunhas de uma dinâmica nova – a dinâmica do amor. A nossa vida tem sido
coerente com esse compromisso?
• Cristo gastou toda a sua
existência na luta contra tudo aquilo que escraviza o homem e lhe rouba o
acesso à vida verdadeira. A sua morte na cruz foi uma consequência de ter
enfrentado as forças do egoísmo e do pecado que oprimiam os homens. Contudo, a
morte não O venceu e Ele “sentou-Se para sempre à direita de Deus”. O seu
triunfo garante-nos que uma vida feita dom de amor não é uma vida perdida e
fracassada, mas é uma vida destinada à eternidade. Quem, como Ele, luta para
vencer o pecado que escraviza os homens, há-de chegar à comunhão plena com
Deus, à vida eterna. Esta certeza deve animar a nossa caminhada e dar-nos a
coragem do compromisso. Ainda que as forças da morte nos ameacem, o exemplo de
Cristo deve animar-nos a prosseguir o nosso combate contra o egoísmo, a
injustiça, a opressão, o pecado.
ALELUIA – Lc 21,36
Aleluia. Aleluia.
Vigiai e orai em todo o tempo,
para poderdes comparecer diante
do Filho do homem.
EVANGELHO – Mc 13,24-32
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo São Marcos
O texto que nos é hoje proposto
como Evangelho situa-nos em Jerusalém, pouco antes da paixão e morte de Jesus.
É o terceiro dia da estadia de Jesus em Jerusalém, o dia dos “ensinamentos” e
das polêmicas mais radicais com os líderes judaicos (cf. Mc 11,20-13,1-2). No
final desse dia, já no “Jardim das Oliveiras”, Jesus oferece a um grupo de
discípulos (Pedro, Tiago, João e André – cf. Mc 13,3) um amplo e enigmático
ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” (cf. Mt
13,3-37).
A maior parte dos estudiosos do
Evangelho segundo Marcos consideram que este discurso, apresentado com uma
linguagem profético-apocalíptica, descreve a missão da comunidade cristã no
período que vai desde a morte de Jesus até ao final da história humana. É um
texto difícil, que emprega imagens e linguagens marcadas pelas alusões enigmáticas,
bem ao jeito do género literário “apocalipse”. Não seria tanto uma reportagem
jornalística de acontecimentos concretos, mas antes uma leitura profética da
história humana. O seu objetivo seria dar aos discípulos indicações acerca da
atitude a tomar frente às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da
comunidade, até ao momento em
que Jesus vier para instaurar, em definitivo, o novo céu e a
nova terra.
Os quatro discípulos
referenciados no início do “discurso escatológico” representam a comunidade
cristã de todos os tempos… Os quatro são, precisamente, os primeiros discípulos
chamados por Jesus (cf. Mc 1,16-20) e, como tal, convertem-se em representantes
de todos os futuros discípulos. O discurso escatológico de Jesus não seria,
assim, uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma mensagem
destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história com os
olhos postos no encontro final com Jesus e com o Pai.
A missão que Jesus (que está
consciente de ter chegado a sua hora de partir ao encontro do Pai) confia à sua
comunidade não é uma missão fácil… Jesus está consciente de que os seus
discípulos terão que enfrentar as dificuldades, as perseguições, as tentações
que “o mundo” vai colocar no seu caminho. Essa comunidade em marcha pela
história necessitará, portanto, de estímulo e de alento. É por isso que surge
este apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância… No horizonte último da
caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o reencontro
definitivo dos discípulos com Jesus.
O “discurso escatológico”
divide-se em três partes, antecedidas de uma introdução (cf. Mc 13,1-4). Na
primeira parte (cf. Mc 13,5-23), o discurso anuncia uma série de vicissitudes
que vão marcar a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada:
vigilância e lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva
do Filho do Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo
velho (cf. Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto
ao “tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para
que estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (cf.
Mc 13,28-37). O nosso texto apresenta-nos, precisamente, a segunda parte e
alguns versículos da terceira parte do “discurso escatológico”.
Os dois primeiros versículos do
nosso texto referem-se – com imagens tiradas da tradição profética e
apocalíptica – à queda desse mundo velho que se opõe a Deus e que persegue os
crentes (vers. 24-25). Em Is 13,10, o obscurecimento do sol, da lua e das
estrelas anuncia o dia da intervenção justiceira de Jahwéh para destruir o
império babilônico e para libertar o Povo de Deus exilado numa terra
estrangeira (cf. Is 34,4); em Jl 2,10, as mesmas imagens são usadas para
descrever os acontecimentos do “dia do Senhor”, o dia em que Jahwéh vai intervir
na história para castigar os opressores e para salvar os seus eleitos. Ora, é
esta linguagem que Marcos vai utilizar para descrever a falência dos impérios
que lutam contra Deus e contra os seus santos. Trata-se de uma linguagem
tradicional que, no entanto, é perfeitamente perceptível para leitores de
Marcos. No mundo grego, por exemplo, o sol e a lua (“Élios”, e “Selénê”) eram
adorados como deuses; e, no mundo romano, o imperador identificava-se como “o
sol” (o imperador Nero, o primeiro perseguidor dos cristãos de Roma, fez erigir
no palácio imperial uma estátua de bronze com trinta metros de altura que o
representava como o deus “sol”). A mensagem é evidente: está para acontecer uma
viragem decisiva na história; a velha ordem religiosa e política, os poderes
que se opõem a Deus e que perseguem os santos, irão ser derrubados, a fim de
darem lugar a um mundo novo, construído de acordo com os critérios e os valores
de Deus. Marcos não se refere, aqui, àquilo que nós costumamos chamar “o fim do
mundo”; mas refere-se, genericamente, à vitória de Deus sobre o mal que oprime
e escraviza aqueles que optaram por Deus e pelas suas propostas.
A queda desse mundo velho aparece
associada à vinda do Filho do Homem (vers. 26). A imagem leva-nos a Dn 7,13-14,
onde se anuncia a vinda de um “Filho do Homem” “sobre as nuvens do céu” para
afirmar a sua soberania sobre “todos os povos, todas as nações e todas as
línguas”. O “Filho do Homem, cheio de poder e de glória, que virá “reunir os
seus eleitos” (vers. 27), não pode ser outro senão Jesus. Com esta imagem,
Marcos assegura aos crentes o triunfo definitivo de Cristo sobre os poderes
opressores e a libertação daqueles que, apesar das perseguições, continuaram a
percorrer com fidelidade os caminhos de Deus.
A mensagem proposta por Marcos
aos seus leitores é clara: espera-vos um caminho marcado pelo sofrimento e pela
perseguição; no entanto, não vos deixeis afundar no desespero porque Jesus vem.
Com a sua vinda gloriosa (de ontem, de hoje, de amanhã), cessará a escravidão
insuportável que vos impede de conhecer a vida em plenitude e nascerá um mundo
novo, de alegria e de felicidade plenas. O quadro destina-se, portanto, não a
amedrontar, mas a abrir os corações à esperança: quando Jesus vier com a sua
autoridade soberana, o mundo velho do egoísmo e da escravidão cairá e surgirá o
dia novo da salvação/libertação sem fim.
Na segunda parte do nosso texto
(vers. 28-32), Jesus responde à questão posta pelos discípulos em Mc 13,4:
“Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que tudo está para
acabar”.
Para Jesus, mais importante do
que definir o tempo exato da queda do mundo velho é ter confiança na chegada do
mundo novo e estar atento aos sinais que o anunciam. O aparecimento nas
figueiras de novos ramos e de novas folhas acontece, sem falhas, cada ano e
anuncia ao agricultor a chegada do Verão e do tempo das colheitas (vers.
28-29); da mesma forma, os crentes são convidados a esperar, com confiança, a
chegada do mundo novo e a perceber, nos sinais de desagregação do mundo velho,
o anúncio de que o tempo da sua libertação está a chegar. Certos da vinda do
Senhor, atentos aos sinais que O anunciam, os crentes podem preparar o seu coração
para O acolher, para aceitar os desafios que Ele traz, para agarrar as
oportunidades que Ele oferece.
Não há uma data marcada para o
advento dessa nova realidade (vers. 32). De uma coisa, no entanto, os crentes
podem estar certos: as palavras de Jesus não são uma bela teoria ou um piedoso
desejo; mas são a garantia de que esse mundo novo, de vida plena e de
felicidade sem fim, irá surgir (vers. 31).
ATUALIZAÇÃO
• Ver os telejornais ou escutar
os noticiários é, com frequência, uma experiência que nos intranquiliza e que
nos deprime. Os dramas dessa aldeia global que é o mundo entram em nossa casa,
sentam-se à nossa mesa, apossam-se da nossa existência, perturbam a nossa
tranquilidade, escurecem o nosso coração. A guerra, a opressão, a injustiça, a
miséria, a escravidão, o egoísmo, a exploração, o desprezo pela dignidade do
homem atingem-nos, mesmo quando acontecem a milhares de quilômetros do pequeno
mundo onde nos movemos todos os dias. As sombras que marcam a história atual da
humanidade tornam-se realidades próximas, tangíveis, que nos inquietam e nos
desesperam. Feridos e humilhados, duvidamos de Deus, da sua bondade, do seu
amor, da sua vontade de salvar o homem, das suas promessas de vida em plenitude. A Palavra
de Deus que hoje nos é servida abre, contudo, a porta à esperança. Reafirma,
uma vez mais, que Deus não abandona a humanidade e está determinado a
transformar o mundo velho do egoísmo e do pecado num mundo novo de vida e de
felicidade para todos os homens. A humanidade não caminha para o holocausto,
para a destruição, para o sem sentido, para o nada; mas caminha ao encontro da
vida plena, ao encontro desse mundo novo em que o homem, com a ajuda de Deus,
alcançará a plenitude das suas possibilidades.
• Os cristãos, convictos de que
Deus tem um projeto de vida para o mundo, têm de ser testemunhas da esperança.
Eles não lêem a história atual da humanidade como um conjunto de dramas que
apontam para um futuro sem saída; mas vêem os momentos de tensão e de luta que
hoje marcam a vida dos homens e das sociedades como sinais de que o mundo velho
irá ser transformado e renovado, até surgir um mundo novo e melhor. Para o
cristão, não faz qualquer sentido deixar-se dominar pelo medo, pelo pessimismo,
pelo desespero, por discursos negativos, por angústias a propósito do fim do
mundo… Os nossos contemporâneos têm de ver em nós, não gente deprimida e
assustada, mas gente a quem a fé dá uma visão otimista da vida e da história e
que caminha, alegre e confiante, ao encontro desse mundo novo que Deus nos
prometeu.
• É Deus, o Senhor da história,
que irá fazer nascer um mundo novo; contudo, Ele conta com a nossa colaboração
na concretização desse projeto. A religião não é ópio que adormece os homens e
os impede de se comprometerem com a história… Os cristãos não podem ficar de
braços cruzados à espera que o mundo novo caia do céu; mas são chamados a
anunciar e a construir, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus
gestos, esse mundo que está nos projetos de Deus. Isso implica, antes de mais,
um processo de conversão que nos leve a suprimir aquilo que, em nós e nos
outros, é egoísmo, orgulho, prepotência, exploração, injustiça (mundo velho);
isso implica, também, testemunhar em gestos concretos, os valores do mundo novo
– a partilha, o serviço, o perdão, o amor, a fraternidade, a solidariedade, a
paz.
• Esse Deus que não abandona os
homens na sua caminhada histórica vem continuamente ao nosso encontro para nos
apresentar os seus desafios, para nos fazer entender os seus projetos, para nos
indicar os caminhos que Ele nos chama a percorrer. Da nossa parte, precisamos
de estar atentos à sua proximidade e reconhecê-l’O nos sinais da história, no
rosto dos irmãos, nos apelos dos que sofrem e que buscam a libertação. O
cristão não pode fechar-se no seu canto e ignorar Deus, os seus apelos e os
seus projetos; mas tem de estar atento e de notar os sinais através dos quais
Deus Se dirige aos homens e lhes aponta o caminho do mundo novo.
• É preciso, ainda, ter presente
que este mundo novo – que está permanentemente a fazer-se e depende do nosso
testemunho – nunca será uma realidade plena nesta terra (a nossa caminhada
neste mundo será sempre marcada pela nossa finitude, pelos nossos limites, pela
nossa imperfeição). O mundo novo sonhado por Deus é uma realidade escatológica,
cuja plenitude só acontecerá depois de Cristo, o Senhor, ter destruído
definitivamente o mal que nos torna escravos.
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