32º Domingo do Tempo Comum - Ano B
Qual é o verdadeiro culto que Deus espera de nós?
A liturgia do 32º Domingo do Tempo Comum fala-nos do verdadeiro culto,
do culto que devemos prestar a Deus. A Deus não interessam grandes
manifestações religiosas ou ritos externos mais ou menos sumtuosos, mas uma
atitude permanente de entrega nas suas mãos, de disponibilidade para os seus
projetos, de acolhimento generoso dos seus desafios, de generosidade para
doarmos a nossa vida em benefício dos nossos irmãos.
A primeira leitura apresenta-nos o exemplo de uma mulher pobre de
Sarepta, que, apesar da sua pobreza e necessidade, está disponível para acolher
os apelos, os desafios e os dons de Deus. A história dessa viúva que reparte
com o profeta os poucos alimentos que tem, garante-nos que a generosidade, a
partilha e a solidariedade não empobrecem, mas são geradoras de vida e de vida
em abundância.
O Evangelho diz através do exemplo de outra mulher pobre, de outra
viúva, qual é o verdadeiro culto que Deus quer dos seus filhos: que eles sejam
capazes de Lhe oferecer tudo, numa completa doação, numa pobreza humilde e
generosa (que é sempre fecunda), num despojamento de si que brota de um amor
sem limites e sem condições.
Só os pobres, isto é, aqueles que
não têm o coração cheio de si próprios, são capazes de oferecer a Deus o culto
verdadeiro que Ele espera.
A segunda leitura oferece-nos o exemplo de Cristo, o sumo-sacerdote
que entregou a sua vida em favor dos homens. Ele mostrou-nos, com o seu
sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos
seus filhos. Mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós
o dom da nossa vida, ao serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os
homens e para o mundo.
LEITURA I – 1 Re
17,10-16
Encontramos no Livro dos Reis um
conjunto de tradições ligadas à vida e à ação de uma figura central do
profetismo bíblico: o profeta Elias. Essas tradições aparecem, de forma
intermitente, entre 1 Re 17,1 e 2 Re 2,12.
Elias (cujo nome significa “o meu
Deus é o Senhor” – o que, por si só, constitui logo um programa de vida) atua
no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé
jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros
(especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente,
estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de
facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não
são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério
profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz
também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).
Elias é o grande defensor da
fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que
recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num
episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal
para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas
de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma
apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a
Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros
povos.
Para além da questão do culto,
Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua
defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da
usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta
sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que
subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.
O ciclo de Elias começa com o
anúncio, diante do rei Acab, de uma seca que irá atingir Israel (cf. 1 Re
17,1). Essa seca é apresentada, não tanto como um castigo pelos pecados do rei,
mas sobretudo como uma forma de mostrar que é Jahwéh (e não Baal, o deus
cananeu das colheitas e da fertilidade, cujo culto era favorecido por Jezabel,
a esposa fenícia de Acab) o verdadeiro senhor da vida que brota, cada ano, nos
campos e nos rebanhos. A implacável seca leva, contudo, Elias para a cidade de
Sarepta (hoje Sarafand), uma pequena cidade da costa fenícia, a cerca de 15 quilômetros a sul
de Sídon. É aí que o nosso texto nos situa.
Elias chega a Sarepta e,
correspondendo à indicação de Jahwéh, dirige-se a uma viúva da cidade. Pede-lhe
água para beber e um pedaço de pão para comer. Nesse tempo dramático de fome e
de seca, a mulher apenas tem um punhado de farinha e um pouco de azeite, que se
prepara para comer com o filho, antes de se deitar à espera da morte; mas
prepara o pão para Elias… E, por acção de Deus, durante todo o tempo que Elias
aí permaneceu, nem a farinha se acabou na panela, nem o azeite faltou na
almotolia.
Trata-se de uma história de cariz
popular que, contudo, apresenta interessantes ensinamentos…
1. Com ela, o autor
deuteronomista sugere que nessa luta entre Jahwéh e Baal pela supremacia, o
Deus de Israel é o vencedor, pois é Ele que dá o trigo e o azeite de que o Povo
se alimenta; mais, Jahwéh atua até em casa do seu “adversário” e entre os seus
súbditos (Baal era o deus mais popular na Fenícia).
2. O fato de os beneficiários da
ação de Jahwéh serem uma viúva e um órfão (os exemplos clássicos, na Bíblia,
dos pobres, dos débeis, dos desfavorecidos, dos marginalizados) sugere que
Jahwéh tem uma especial predileção pelos fracos, pelos pobres, por aqueles que
nada têm, por aqueles que necessitam especialmente da proteção, da bondade e da
misericórdia de Deus.
3. O pão e o azeite que a mulher
reparte com o profeta multiplicam-se milagrosamente. O fato mostra que, quando
alguém é capaz de sair do seu egoísmo e tem disponibilidade para partilhar os
dons recebidos de Deus, esses dons chegam para todos e ainda sobram. A generosidade,
a partilha e a solidariedade não empobrecem, mas são geradoras de vida e de
vida em abundância.
4. A história sugere, ainda,
que a graça de Deus é universal e se destina a todos os povos, sem distinção de
raças, de fronteiras ou de crenças religiosas.
ATUALIZAÇÃO
• A nossa história – como tantas
outras histórias bíblicas – fala-nos da predileção de Deus pelos
desfavorecidos, pelos débeis, pelos pobres, pelos explorados, por aqueles que
são colocados à margem da vida. Porquê? Porque Deus vê a história humana na
perspectiva da luta de classes e escolhe um lado em detrimento do outro?
Obviamente, não. No entanto, Deus opta preferencialmente pelos pobres porque,
em primeiro lugar, eles vivem numa situação dramática de necessidade e precisam
especialmente da bondade, da misericórdia e da ajuda de Deus; e, em segundo
lugar, porque os pobres – sem bens materiais que os distraiam do essencial –
estão sempre mais atentos e disponíveis para acolher os apelos, os desafios e
os dons de Deus. Os “ricos”, ao contrário, estão sempre preocupados com os seus
bens, com os seus interesses egoístas, com os seus projetos e preconceitos e
não têm espaço para acolher as propostas que Deus lhes faz. Isto deve
lembrar-nos, permanentemente, a necessidade de sermos “pobres”, de nos
despirmos de tudo aquilo que pode atravancar o nosso coração e que pode
impedir-nos de acolher os desafios e as propostas de Deus.
• A mulher de Sarepta tinha,
apenas, uma quantidade mínima de alimento, que queria guardar para si e para o
seu filho; mas, desafiada a partilhar, viu esse escasso alimento ser
multiplicado uma infinidade de vezes… A história convida-nos a não nos
fecharmos em esquemas egoístas de acumulação e de lucro, esquecendo os apelos
de Deus à partilha e à solidariedade com os nossos irmãos necessitados. Quando
repartimos, com generosidade e amor, aquilo que Deus colocou à nossa
disposição, não ficamos mais pobres; os bens repartidos tornam-se fonte de vida
e de bênção para nós e para todos aqueles que deles beneficiam.
• A nossa história prova que só
Jahwéh dá ao homem vida em abundância. É um aviso que não podemos ignorar…
Todos os dias somos confrontados com propostas de felicidade e de vida plena
que, quase sempre, nos conduzem por caminhos de escravidão, de dependência, de
desilusão. Não é à volta do dinheiro, do carro, da casa, do cargo que temos na
empresa, dos títulos acadêmicos que ostentamos, das honras que nos são
atribuídas que devemos construir a nossa existência. Só Deus nos dá a vida
plena e verdadeira; todos os outros “deuses” são elementos acessórios, que não
devem afastar-nos do essencial.
SALMO RESPONSORIAL –
Salmo 145 (146)
Refrão 1: Ó minha
alma, louva o Senhor.
Refrão 2: Aleluia.
O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.
O Senhor ilumina os olhos do cego,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.
O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.
O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.
LEITURA II – Heb
9,24-28
No passado domingo, o autor da
Carta aos Hebreus apresentava Cristo como o sumo-sacerdote por excelência, não
na linha do sacerdócio levítico, mas na linha do sacerdócio de Melquisedec…
Hoje, passamos a outra secção (cf. Heb 8,1-9,28), na qual o autor apresenta
Cristo como o sacerdote perfeito e explica em que consiste essa perfeição e
quais as suas consequências para a vida dos fiéis.
Depois de refletir sobre a
imperfeição do culto antigo (cf. Heb 8,1-6), a imperfeição da antiga Aliança
(cf. Heb 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios oferecidos no Templo de
Jerusalém (cf. Heb 9,1-10), o autor passa a explicar aos cristãos a quem a
Carta se destina porque é que o sacrifício oferecido por Cristo é perfeito (cf.
Heb 9,11-14) e como é que, por esse sacrifício, Cristo se torna o mediador da
Nova Aliança (cf. Heb 9,15-22). No último parágrafo desta secção (cf. Heb
9,23-28), o autor tira, para a vida dos fiéis, as consequências de tudo o que
disse atrás, a propósito do sacerdócio perfeito de Cristo.
Dirigindo-se a cristãos em
dificuldade, que já perderam o entusiasmo inicial e que, diante das
dificuldades, correm o risco de renunciar ao compromisso assumido no dia do
Baptismo, o autor da Carta procura animá-los e revitalizar a sua experiência de
fé.
No final da sua caminhada terrena com os homens, Cristo, o
sacerdote perfeito, entrou no verdadeiro santuário que é o céu – a própria
realidade de Deus, a comunhão com Deus. Vivendo em comunhão com o Pai, Ele
continua a interceder pelos homens e a dispor o coração do Pai em favor dos
homens (vers. 24).
Mais: enquanto que o sumo-sacerdote da antiga Aliança tinha
que entrar no santuário todos os anos (o autor refere-se ao Dia da Expiação – o
“Yom Kippur” – o único dia do ano em que o sumo-sacerdote entrava no “Santo dos
Santos” do Templo de Jerusalém, a fim de aspergir o “propiciatório” com o
sangue de um animal imolado e obter, assim, o perdão de Deus para os pecados do
Povo), Cristo entrou uma só vez no santuário perfeito, levando o seu próprio
sangue, e obteve a redenção de toda a humanidade – desde a fundação do mundo,
até ao final dos tempos. A entrega de Cristo, o seu sacrifício consumado no dom
da vida, teve uma eficácia total e universal; com ela, Cristo conseguiu a
destruição da condição pecadora do homem. A humanidade fica, a partir desse
instante, definitivamente salva.
Quando Cristo voltar a manifestar-Se, no final dos tempos
(parusia), não será nem para oferecer um novo sacrifício, nem para condenar o
homem; mas será para oferecer a salvação definitiva àqueles que Ele, com o seu
sacrifício, libertou do pecado.
ATUALIZAÇÃO
• A ideia de que Cristo nos
libertou do pecado com o seu sacrifício domina este texto. O que é que o autor
da Carta aos Hebreus quer dizer com isto? Cristo veio a este mundo para
libertar o homem das cadeias de egoísmo e de pecado que o prendiam. Nesse
sentido, Cristo pediu uma “metanoia” (transformação radical) do coração, da mente,
dos valores, das atitudes do homem e propôs, com a sua palavra, com o seu
exemplo, com a sua vida, que o homem passasse a percorrer o caminho do amor, da
partilha, do serviço, do perdão, do dom da vida. A sua entrega na cruz é a
lição suprema que Ele quis deixar-nos – a lição do amor que renuncia ao egoísmo
e que se faz dom total aos irmãos, até às últimas consequências. Mais, a sua
luta contra o pecado levou-O a confrontar-Se com as estruturas políticas,
sociais ou religiosas geradoras de injustiça e de opressão; a sua morte,
arquitetada pelos detentores do poder (as autoridades políticas e religiosas do
país), foi, também, a consequência da sua luta contra as estruturas que
oprimiam o homem e que geravam egoísmo e morte. Ele ofereceu, de facto, a sua
vida em sacrifício para nos libertar do pecado. A sua ressurreição revelou que
Deus aceitou o seu sacrifício e que não deixará mais que o pecado roube ao
homem a vida. Aderir a Jesus, ser cristão, é procurar viver, dia a dia, no
seguimento de Jesus e fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; é,
também, lutar contra todas as estruturas que geram injustiça e pecado. Gastar a
vida dessa forma é participar da missão de Jesus, é colaborar com Ele para
eliminar o pecado.
• As outras leituras deste
domingo falam-nos de desapego, de partilha, de capacidade para “dar tudo”.
Cristo, com a entrega total da sua vida a Deus e aos homens, realizou
plenamente esta dimensão. Ele mostrou-nos, com o seu sacrifício, qual é o dom
perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos seus filhos. Mais do que
dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós o dom da nossa vida, ao
serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os homens e para o mundo.
• A certeza de que Jesus Cristo,
o sacerdote perfeito, venceu o pecado e está agora junto de Deus, intercedendo
por nós e esperando o momento de nos oferecer a vida eterna, deve dar-nos
confiança e esperança, ao longo da nossa caminhada diária pela vida. A Palavra
de Deus que hoje nos é oferecida garante-nos que as nossas fragilidades e
debilidades não podem afastar-nos da comunhão com Deus, da vida eterna; e, no
final do nosso caminho, Jesus, o nosso libertador, lá estará à nossa espera
para nos oferecer a vida definitiva.
ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Mc
12,38-44
O nosso texto situa-nos em
Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão, julgamento e morte de Jesus. Por
esta altura, adensam-se as polêmicas de Jesus com os representantes do Judaísmo
oficial. A cada passo fica mais claro que o projeto do Reino (proposto por
Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos líderes judaicos. Num ambiente
carregado de dramatismo, adivinha-se o inevitável choque decisivo entre Jesus e
a instituição judaica e prepara-se o cenário da Cruz.
Jesus tem consciência de que os
líderes da comunidade judaica tinham transformado a religião de Moisés – com os
seus ritos, exigências legais, proibições e obrigações – numa proposta vazia e
estéril. Mal-servida e manipulada pelos seus líderes religiosos, a comunidade
judaica tinha-se transformado numa figueira seca (cf. Mc 11,12-14. 20-26), onde
Deus não encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o
amor, a justiça, a misericórdia). O próprio Templo – o espaço onde se
desenrolavam abundantes ritos cultuais e sumtuosas cerimônias litúrgicas –
tinha deixado de ser o lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e
tinha-se tornado um lugar de exploração e de injustiça, “um covil de ladrões”
(cf. Mc 11,15-19)…
Jesus tem presente tudo isto
quando ensina nos átrios do Templo, rodeado pelos discípulos. À sua volta
desenrola-se esse folclore religioso, feito de ritos externos, de grandes
gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo. Os “doutores da Lei”
(geralmente, do partido dos fariseus; estudavam e memorizavam as Escrituras e
ensinavam aos seus discípulos as regras – ou “halakot” – que deviam dirigir
cada passo da vida dos fiéis israelitas), com as suas vestes especiais e os
traços característicos de quem se julgava com direito a todas as deferências,
honras e privilégios, são mais um elemento no quadro desse culto de mentira que
Jesus tem diante dos olhos.
Em contraponto, Jesus repara no
“átrio das mulheres”, onde uma viúva deposita, no tesouro do Templo, a sua
humilde oferta (dons voluntários eram feitos com frequência, tendo por
finalidade, por exemplo, cumprir votos). As viúvas, no ambiente palestino de
então (sobretudo quando não tinham filhos que as protegessem e alimentassem),
eram o modelo clássico do pobre, do explorado, do débil.
O nosso texto compõe-se,
portanto, de duas partes. Na primeira parte (vers. 38-40), Jesus faz incidir a
atenção dos seus discípulos sobre o grupo dos doutores da Lei. Aparentemente,
os doutores da Lei são figuras intocáveis da comunidade, com uma atitude
religiosa irrepreensível. São estimados, admirados e adulados pelo povo, que os
tem em alto conceito. Contudo, o olhar avaliador de Jesus não se detém nas
aparências, mas penetra na realidade das coisas… Uma análise mais cuidada
mostra que esses doutores da Lei são hipócritas e incoerentes: fazem as coisas,
não por convicção, mas para serem considerados e admirados pelo povo; procuram
os primeiros lugares, preocupam-se em afirmar a sua superioridade diante dos
outros, exibem uma devoção de fachada, fazem do cumprimento dos ritos e regras
da Lei um espetáculo para os outros aplaudirem… A sua vida é, portanto, um
imenso repertório de mentira, de incoerência, de hipocrisia… Como se isso não
bastasse, estes doutores da Lei aproveitam-se, frequentemente, da sua posição e
da confiança que inspiram – como intérpretes autorizados da Lei de Deus – para
explorar os mais pobres (aqueles que são os preferidos de Deus); servem-se da
religião para satisfazer a sua avareza, não têm escrúpulos em aproveitar-se
boa-fé das pessoas para aumentar os seus proveitos; exploram as viúvas, que
lhes confiam a administração dos próprios bens, alinham em esquemas de
corrupção e de exploração…
Os doutores da Lei, com os seus
comportamentos hipócritas, mostram que os ritos externos, os gestos teatrais, o
cumprimento das regras religiosamente corretas não chegam para aproximar os
homens de Deus e da santidade de Deus. Ao olhar para a atitude dos doutores da
Lei, os discípulos de Jesus têm de estar conscientes de que este não é o
comportamento que Deus pede àqueles que querem fazer parte da sua família.
Na segunda parte (vers. 41-44),
Jesus convida os discípulos a perceber a essência do verdadeiro culto, da
verdadeira atitude religiosa. Em profundo contraste com o quadro dos doutores
da Lei, Jesus aponta aos discípulos a figura de uma pobre viúva, que se
aproxima de um dos treze recipientes situados no átrio do Templo, onde se
depositavam as ofertas para o tesouro do Templo. A mulher deposita aí duas
simples moedas (dois “leptá”, diz o texto grego. O “leptá” era uma moeda de
cobre, a mais pequena e insignificante das moedas judaicas); contudo, aquela
quantia insignificante era tudo o que a mulher possuía. Ninguém, exceto Jesus,
repara nela ou manifesta admiração pelo seu gesto. Apenas Jesus – que lê os fatos
com os olhos de Deus e sabe ver para além das aparências – percebe naquelas
duas insignificantes moedas oferecidas a marca de um dom total, de um completo
despojamento, de uma entrega radical e sem medida. O encontro com Deus, o culto
que Deus quer passa por gestos simples e humildes, que podem passar
completamente despercebidos, mas que são sinceros, verdadeiros, e expressam a
entrega generosa e o compromisso total. O verdadeiro crente não é o que cultiva
gestos teatrais e espampanantes, que impressionam as multidões e que são
aplaudidos pelos homens; mas é o que aceita despojar-se de tudo, prescindir dos
seus interesses e projectos pessoais, para se entregar completa e gratuitamente
nas mãos de Deus, com humildade, generosidade, total confiança, amor verdadeiro.
É este o exemplo que os discípulos de Jesus devem imitar; é esse o culto
verdadeiro que eles devem prestar a Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Qual é o verdadeiro culto que
Deus espera de nós? Qual deve ser a nossa resposta à sua oferta de salvação? A
forma como Jesus aprecia o gesto daquela pobre viúva não deixa lugar a qualquer
dúvida: Deus não valoriza os gestos espetaculares, cuidadosamente encenados e
preparados, mas que não saem do coração; Deus não se deixa impressionar por
grandes manifestações cultuais, por grandes e impressionantes manifestações
religiosas, cuidadosamente preparadas, mas hipócritas, vazias e estéreis… O que
Deus pede é que sejamos capazes de Lhe oferecer tudo, que aceitemos
despojar-nos das nossas certezas, das nossas manifestações de orgulho e de
vaidade, dos nossos projectos pessoais e preconceitos, a fim de nos entregarmos
confiadamente nas suas mãos, com total confiança, numa completa doação, numa
pobreza humilde e fecunda, num amor sem limites e sem condições. Esse é o
verdadeiro culto, que nos aproxima de Deus e que nos torna membros da família
de Deus. O verdadeiro crente é aquele que não guarda nada para si, mas que, dia
a dia, no silêncio e na simplicidade dos gestos mais banais, aceita sair do seu
egoísmo e da sua auto-suficiência e colocar a totalidade da sua existência nas
mãos de Deus.
• Como na primeira leitura,
também no Evangelho temos um exemplo de uma mulher pobre (ainda mais, uma
viúva, que pertence à classe dos abandonados, dos débeis, dos mais pobres de
entre os pobres), que é capaz de partilhar o pouco que tem. Na reflexão
bíblica, os pobres, pela sua situação de carência, debilidade e necessidade,
são considerados os preferidos de Deus, aqueles que são objeto de uma especial
proteção e ternura por parte de Deus. Por isso, eles são olhados com simpatia e
até, numa visão simplista e idealizada, são retratados como pessoas pacíficas,
humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus” (isto é, que se colocam
diante de Deus com serena confiança, em total obediência e entrega). Este
retrato, naturalmente um pouco estereotipado, não deixa de ter um sólido fundo
de verdade: só quem não vive para as riquezas, só quem não tem o coração
obcecado com a posse dos bens (falamos, naturalmente, do dinheiro, da conta
bancária; mas falamos, igualmente, do orgulho, da auto-suficiência, da vontade
de triunfar a todo o custo, do desejo de poder e de autoridade, do desejo de
ser aplaudido e admirado) é capaz de estar disponível para acolher os desafios
de Deus e para aceitar, com humildade e simplicidade, os valores do Reino.
Esses são os preferidos de Deus. O exemplo desta mulher garante-nos que só quem
é “pobre” – isto é, quem não tem o coração demasiado cheio de si próprio – é
capaz de viver para Deus e de acolher os desafios e os valores do Reino.
• A figura dos doutores da Lei
está em total contraste com a figura desta mulher pobre. Eles têm o coração
completamente cheio de si; estão dominados por sentimentos de egoísmo, de
ambição e de vaidade, apostam tudo nos bens materiais, mesmo que isso implique
explorar e roubar as viúvas e os pobres… Na verdade, no seu coração não há
lugar para Deus e para os outros irmãos; só há lá lugar para os seus interesses
mesquinhos e egoístas. Eles são a antítese daquilo que os discípulos de Jesus devem
ser; não apreciam os valores do Reino e, dessa forma, não podem integrar a
comunidade do Reino. Podem ter atitudes que, na aparência, são religiosamente
corretas, ou podem mesmo ser vistos como autênticos pilares da comunidade do
Povo de Deus; mas, na verdade, eles não fazem parte da família de Deus. Nunca é
demais refletirmos sobre este ponto: quem vive para si e é incapaz de viver
para Deus e para os irmãos, com verdade e generosidade, não pode integrar a
família de Jesus, a comunidade do Reino.
• Jesus ensina-nos, neste
episódio, a não julgarmos as pessoas pelas aparências. Muitas vezes é
precisamente aquilo que consideramos insignificante, desprezível, pouco
edificante, que é verdadeiramente importante e significativo. Muitas vezes Deus
chega até nós na humildade, na simplicidade, na debilidade, nos gestos
silenciosos e simples de alguém em quem nem reparamos. Temos de aprender a ir
ao fundo das coisas e a olhar para o mundo, para as situações, para a história
e, sobretudo, para os homens e mulheres que caminham ao nosso lado, com o olhar
de Deus. É precisamente isso que Jesus faz.
• Uma das críticas que Jesus faz aos doutores da Lei é
que eles se servem da religião, da sua posição de intérpretes oficiais e
autorizados da Lei, para obter honras e privilégios. Trata-se de uma tentação
sempre presente, ontem como hoje… Em nenhum caso a nossa fé, o nosso lugar na
comunidade, a consideração que as pessoas possam ter por nós ou pelas funções
que desempenhamos podem ser utilizadas, de forma abusiva, para “levar a água ao
nosso moinho” e para conseguir privilégios particulares ou honras que não nos
são devidas. Utilizar a religião para fins egoístas é um comércio ilícito e
abominável, e constitui
um enorme contra-testemunho para
os irmãos que nos rodeiam.
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