Missa do Natal do Senhor - Ano C
O menino de Belém, é o Deus que vem
ao encontro dos homens
O tema desta Eucaristia pode
resumir-se na expressão “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz”.
A primeira leitura anuncia a
chegada de um menino, da descendência de David, dom de Deus para o Povo, que
eliminará as causas objetivas de sofrimento, de injustiça e de morte, e
inaugurará uma era de alegria, de felicidade e de paz sem fim.
O Evangelho apresenta a
concretização da promessa profética: Jesus, o menino de Belém, é o Deus que vem
ao encontro dos homens para lhes oferecer – sobretudo aos mais pobres e débeis
– a salvação. Não se trata de uma salvação imposta, mas de uma salvação
oferecida com ternura e amor.
A segunda leitura lembra que
acolher a salvação de Deus, tornada presente na história dos homens em Jesus,
significa renunciar aos valores do mundo, sempre que eles estejam em
contradição com a proposta do menino de Belém.
LEITURA I – Is 9,1-6
O texto que nos é apresentado faz
parte dos “oráculos messiânicos” atribuídos ao profeta Isaías. Não é seguro se
se trata de um texto de Isaías, ou de um texto posterior à época do profeta,
enxertado pelos editores finais da obra na mensagem de Isaías.
Se for de Isaías, pode pertencer
à fase final da atividade do profeta (inícios do séc. VII a.C.). Por essa
altura, o rei Ezequias, ignorando os avisos de Isaías, continua a jogar no
xadrez político internacional e a alinhar em alianças contra os assírios,
enviando embaixadas ao Egito, à Fenícia e à Babilônia, a fim de consolidar uma
frente anti-assíria. O profeta, desiludido com essas iniciativas (que considera
um abandono de Deus e um colocar a confiança e a esperança, não em Jahwéh, mas
nos exércitos estrangeiros), começa a sonhar com um tempo novo, sem
imperialismos, sem guerra nem armas, e onde reinam a justiça e o direito.
O “menino” aqui anunciado, da
descendência de David, pode também estar em relação com o “sinal do Emanuel” de
que o profeta fala ao rei Acaz em Is 7,14-17. Seja como for, é um texto que dá
fôlego à corrente messiânica e que alimenta a esperança de Israel num futuro
novo de paz e de felicidade para o Povo de Deus.
Para descrever esse tempo novo de
alegria e de felicidade que, no futuro, Jahwéh prepara para o seu Povo, o
profeta utiliza imagens muito sugestivas: será como no tempo da colheita,
quando todo o Povo dança feliz pela abundância dos alimentos; será como após
uma caçada coroada de êxito, quando os caçadores dividem com alegria a presa.
Porquê esta alegria, celebrada na
festa? Porque a guerra, a injustiça, a violência e a opressão foram vencidos e
vai ser inaugurada uma nova era, de vida, de abundância, de paz e de felicidade
para todos.
Quem é responsável por esta “nova
ordem”? Na linguagem de Isaías, é “um menino”, enviado por Deus com a missão de
restaurar o trono de David, que reinará no direito e na justiça
(“mishpat/zedaqa”: estas palavras evocam, na linguagem profética, uma sociedade
onde as decisões dos tribunais fundamentam uma recta ordem social, onde os
direitos de todos são respeitados e onde não há lugar para a exploração e a
injustiça). O quádruplo nome desse “menino” evoca títulos de Deus ou qualidades
divinas: o título “conselheiro maravilhoso” celebra a capacidade de conceber
desígnios prodigiosos e é um atributo de Deus – cf. Is 25,1; 28,29; o título
“Deus forte” é um nome do próprio Deus – cf. Dt 10,17; Jr 32,18; Sl 24,8; o título
“príncipe da paz” leva também a Jahwéh, aquele que é “a Paz” – cf. Is 11,6-9;
Mi 5,4; Zac 9,10; Sl 72,3.7. Quanto ao título “Pai eterno”, é um título do rei
– cf. 1 Sm 24,12 – e é um título dado ao faraó pelos seus vassalos,
nomeadamente nas cartas de Tell el-Amarna. Fica, assim, claro que esse “menino”
é um dom de Deus ao seu Povo e que, com ele, Deus residirá no meio do seu Povo,
outorgando-lhe a justiça e a felicidade para sempre.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização da
mensagem deste texto podem fazer-se de acordo com as seguintes coordenadas:
¨ É Jesus que dá sentido a esta
“profecia messiânica”. Ele é o “menino” anunciado por Isaías, dom de Deus aos
homens para inaugurar o mundo do direito e da justiça, da paz e da felicidade
para todos. O nascimento de Jesus significa que, efetivamente, este “reino” encarnou
no meio dos homens. Jesus chamou a este mundo proposto por Deus, “reino de
Deus”. Em que medida este “reino”, semeado por Jesus, foi acolhido pelos homens
e se tornou uma realidade viva, a crescer na nossa história?
¨ E nós, cristãos, que acolhemos
Jesus como a concretização das promessas de Deus, lutamos pela efetivação deste
“reino” de justiça e de paz? Como lidamos com tudo o que é exploração,
injustiça, egoísmo, violência e morte? Qual a mensagem que propomos a esse
mundo que exalta e cultiva a exploração, o egoísmo e a injustiça?
¨ Reparemos no “jeito de Deus”:
Ele não Se serve da força e do poder para intervir na história e realizar a
salvação; mas é através de um “menino”, na sua fragilidade e dependência, que
Deus propõe aos homens um projeto revolucionário de salvação/libertação. Temos
consciência de que é na simplicidade e na humildade que Deus age no mundo? E
nós? Seguimos os passos de Deus e respeitamos a sua lógica quando queremos
propor algo aos nossos irmãos?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 95
(96)
Refrão: Hoje nasceu o nosso
salvador, Jesus Cristo, Senhor.
Cantai ao Senhor um cântico novo,
cantai ao Senhor, terra inteira,
cantai ao Senhor, bendizei o seu
nome.
Anunciai dia a dia a sua
salvação,
publicai entre as nações a sua
glória,
em todos os povos as suas
maravilhas.
Alegrem-se os céus, exulte a
terra,
ressoe o mar e tudo o que ele
contém,
exultem os campos e quanto neles
existe,
alegrem-se as árvores das
florestas.
Diante do Senhor que vem,
que vem para julgar a terra:
julgará o mundo com justiça
e os povos com fidelidade.
LEITURA II – Tito 2,11-14
A “Carta a Tito” dirige-se,
presumivelmente, a esse Tito que foi convertido por Paulo (cf. Tt 1,4), que
acompanhou o apóstolo ao Concílio de Jerusalém (cf. Ga 2,1-2), que esteve com
Paulo em Éfeso e que, por duas vezes, foi enviado por Paulo a Corinto com
missões delicadas, numa altura que o ânimo dos coríntios estava exaltado contra
Paulo (cf. 2 Cor 7,6-7; 8,16-17). O autor desta carta sugere que Paulo, na
parte final da sua vida, teria confiado a Tito a animação da Igreja de Creta
(cf. Tt 1,5).
A “Carta a Tito”, no geral,
parece ser um texto tardio, quando a preocupação fundamental das comunidades
cristãs já não se centrava na vinda iminente do Senhor, mas em definir a
conduta dos cristãos no tempo presente. Depois de apresentar uma série de
conselhos práticos (para os anciãos, para os jovens, para os escravos – cf. Tt
2,1-10), o autor da carta procura fundamentar a prática cristã nos sólidos
fundamentos da fé. É neste contexto que aparece a leitura que nos é proposta.
Porque é que os anciãos, os
jovens e os escravos (isto é, a totalidade dos membros da comunidade crente)
devem pautar a sua vida pelas referências cristãs? Porque “manifestou-se a
graça (“kharis”) de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Ele nos
ensina a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos para vivermos, (…) com
temperança, justiça e piedade, aguardando (…) a manifestação da glória do nosso
grande Deus e Salvador, Jesus Cristo” (Tt 2,12-13).
O amor de Deus – tantas vezes e
de tantas formas manifestado na história – tem, pois, um projeto de salvação
que foi apresentado aos homens na vida, nas palavras, nos gestos e na
morte/ressurreição de Jesus Cristo. Esse projeto convida-nos a ter um olhar
crítico sobre os valores que o mundo propõe e a ser sensíveis aos valores
apresentados por Deus, em
Jesus. Acolher esse projeto de amor e viver em consequência é
a forma de aguardar, na esperança, a vinda de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização da
segunda leitura de hoje podem fazer-se a partir dos seguintes pontos:
¨ Temos consciência do amor de
Deus e que a encarnação de Jesus é o sinal mais expressivo desse amor por nós?
¨ Aprendemos, com Jesus, a ter um
olhar crítico sobre os valores que o mundo nos propõe e a confrontar, dia a
dia, a nossa vida com os valores do Evangelho?
¨ É assumindo e percorrendo
caminhos de simplicidade, de justiça e de comunhão com Deus que aguardamos a
“vinda” de Jesus?
ALELUIA – Lc 2,10-11
Aleluia. Aleluia.
Anuncio-vos uma grande alegria:
Hoje nasceu o nosso salvador,
Jesus Cristo, Senhor.
EVANGELHO – Lc 2,1-14
É duvidoso que Quirino, como
governador, tenha ordenado um recenseamento na época em que Jesus nasceu (só por
volta do ano 6 d.C. é que ele se tornou governador da Síria, embora possa ter
sido “legado” romano na Síria entre 12 e 8 a.C. Pode, realmente, nessa altura, ter
ordenado um recenseamento que teve efeitos práticos na Palestina por volta dos
anos 6/7 a.C., altura do nascimento de Jesus). De qualquer forma, Lucas não
está a escrever “história”, mas a fazer teologia e a apresentar uma catequese
sobre Jesus, o Filho de Deus prometido, que veio ao encontro dos homens para
lhes apresentar uma proposta de salvação.
Com estas indicações de caráter
histórico, Lucas está interessado em situar o nascimento de Jesus numa época e
num espaço concreto, sugerindo que não se trata de um acontecimento lendário,
mas de algo perfeitamente integrado na história e na vida dos homens.
A primeira indicação vem da
referência a Belém como o lugar efetivo do nascimento de Jesus… Lucas sugere,
assim, que este Jesus é o Messias, da descendência de David, anunciado pelos
profetas (cf. Miq 5,1). Fica, desde já, claro que o nascimento de Jesus se
integra no plano de salvação que Deus tem para os homens – plano que os
profetas anunciaram e cuja realização o Povo de Deus aguardava ansiosamente.
São também importantes os
elementos que definem a simplicidade do quadro do nascimento – a manjedoura, a
falta de lugar na hospedaria, os panos que envolvem a criança, as testemunhas
do acontecimento (os pastores): é na pobreza, na simplicidade, na fragilidade
que Deus vem ao encontro dos homens para lhes propor um projeto de salvação e
de felicidade. Não é um projeto imposto do alto de um trono, pela força de um
cetro ou pelo poder das armas, do dinheiro ou da comunicação social; mas é uma
proposta que chega ao coração dos homens através da simplicidade, da fraqueza e
da ternura de um “menino”. É assim que Deus entra na nossa história; é assim a
lógica de Deus.
Finalmente, detenhamo-nos nas
“testemunhas” do nascimento: os pastores. Trata-se de gente considerada
violenta e marginal, que invadia com os rebanhos as propriedades alheias e que
tinha fama de se apropriar da lã, do leite e das crias dos rebanhos. Os
pastores eram, com frequência, colocados ao lado dos publicanos e dos cobradores
de impostos, todos incapazes de reconhecer a quem tinham prejudicado e,
portanto, incapazes de oferecer uma reparação. Lucas coloca, precisamente,
estes marginais como as “testemunhas” que acolhem a chegada de Jesus ao mundo.
É para estes pecadores e marginalizados que a chegada de Jesus é uma “boa
notícia”, recebida com alegria: chegou a salvação/libertação; a partir de agora
os pobres, os débeis, os marginalizados e os pecadores são convidados a
integrar essa comunidade dos filhos amados de Deus. Sugere-se que Deus não os
rejeita nem marginaliza, mas quer apresentar-lhes uma proposta de salvação que
os leve a integrar a comunidade da Nova Aliança, a comunidade do Reino.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão deste texto pode
seguir as seguintes indicações:
¨ O menino de Belém leva-nos a
contemplar o incrível amor de um Deus que Se preocupa com a vida e a felicidade
dos homens e que envia o próprio Filho ao encontro dos homens para lhes
apresentar um projeto da salvação/libertação. Nesse menino de Belém, Deus grita-nos
a radicalidade do seu amor por nós.
¨ O presépio apresenta-nos a
lógica de Deus que não é, tantas vezes, igual à lógica dos homens: a salvação
de Deus não se manifesta na força das armas, na autoridade prepotente, nos
gabinetes ministeriais, nos conselhos das empresas, nos salões onde se
concentram as estrelas do “jet-set”, mas numa gruta de pastores onde brilha a
fragilidade, a ternura, a simplicidade, a dependência de um bebê recém-nascido.
Qual é a lógica com que abordamos o mundo – a lógica de Deus ou a lógica dos
homens?
¨ A presença libertadora de Jesus
neste mundo é uma “boa notícia” que devia encher de felicidade os pobres, os
débeis, os marginalizados, e dizer-lhes que Deus veio ao seu encontro para lhes
propor a salvação/libertação. É essa a proposta que nós, os seguidores de
Jesus, passamos ao mundo? Nós, Igreja, não estaremos demasiado ocupados a
discutir questões laterais (poderiam abundar exemplos…), esquecendo o essencial
(o anúncio libertador aos pobres)?
¨ Jesus – o Jesus da justiça, do
amor, da fraternidade e da paz – já nasceu de forma efetiva na vida de cada um
de nós, nas nossas famílias, nas nossas comunidades cristãs, nas nossas casas
religiosas?
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