A Liturgia usa uma antífona extremamente poética para falar da Ascensão: “Cantai a Deus, tocai ao seu nome, abri caminho ao Cavaleiro das nuvens. Aleluia”.
A Esposa deseja que nada, em hipótese alguma, perturbe o supremo encanto desse momento glorioso. Abri caminho. É um desejo de amor, aspiração do apaixonado que quer somente o melhor para a pessoa amada.
Abri o caminho: que nada o estorve.
Jesus cumpriu a sua missão na terra. O Verbo se fez carne, homem como nós – como qualquer outro –, com exceção do pecado. Nasceu, trabalhou, padeceu, morreu. Ressuscitou ao terceiro dia e, quarenta dias depois, subiu aos céus do alto de um monte, diante dos seus discípulos, que o observavam, absortos, até que as nuvens – símbolo do poder e da transcendência do divino – o ocultaram.
O assombro cresce quando recordamos o tamanho da tristeza desses mesmos discípulos ao saberem, durante a Última Ceia, que Ele precisava deixá-los. Porque no momento em que Ele os deixa de fato, podíamos dizer que estão mais contentes que nunca. Quarenta dias foram suficientes para que conhecessem novos modos de viver. Viram Jesus com as chagas abertas pelos cravos e pela lança no Calvário, mas transbordante de vida, com domínio sobre o espaço, os muros, as portas, os caminhos e o tempo. Voltam para a casa felizes e logo põem em prática, com alegria e heroísmo, a missão recebida: Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura...
O segredo encerra-se nestas palavras: Eis que estarei convosco todos os dias até o fim do mundo. A presença real de Jesus Cristo dá-se de muitas maneiras. É verdade que ao mesmo tempo foi e ficou, porque está realmente presente na Eucaristia – com Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Também está presente de outra maneira – em Espírito – no coração do discípulo em graça de Deus. Por isso, podemos dizer que nós também ascendemos com ele à direita do Pai.
É o que diz Agostinho na segunda leitura da Liturgia das Horasna festa da Ascensão: “Hoje nosso Senhor Jesus Cristo subiu ao céu; suba também como Ele nosso coração. Ouçamos o que nos diz o Apóstolo: Se, portanto, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas lá de cima, e não às da terra. Pois, do mesmo modo que Ele subiu sem por isso afastar-se de nós, assim também nós estamos já com ele, embora ainda não se tenha realizado em nosso corpo o que nos foi prometido”.
Há uma comunhão maravilhosa e íntima entre Cristo-Cabeça e seus membros, entre a Videira e os sarmentos, entre os fiéis e seu Redentor. Formamos um só Corpo, que é a Igreja. É assim que Paulo a chama: “Corpo” (de Cristo). A natureza desse Corpo é misteriosa e por isso acrescentamos “místico”: Corpo místico. É como um organismo vivo, com a diferença de que os membros do Corpo Místico são pessoas livres. Mas todas estão em comunhão vital com a Cabeça e com os outros membros, de modo que cada um é membro não só da Cabeça, mas também dos outros membros. De um modo misterioso mas real, aquilo que um membro padece, a Cabeça e os outros membros padecem; aquilo que um membro goza, a Cabeça e os outros membros se alegram.
Assim, Cristo vive no céu e na terra e nós, na terra e no céu. As duas coisas são mesmo verdade. Paulo vê isso com clareza: viu Cristo ressuscitado. Agostinho vê com nitidez: “Ele já foi elevado ao mais alto dos céus; no entanto, continua a sofrer na terra todas as fadigas que nós, seus membros, experimentamos. Disso deu prova aquela voz vinda do céu: Saulo, Saulo, por que me persegues? E também: Tive fome, e me destes de comer”.
É preciso extrair todas as consequências: “Por que não nos esforçar sobre a terra”, pergunta São Agostinho, “de modo que pela fé, a esperança e a caridade, que nos unem a Ele, possamos desde já descansar com Ele nos céus? Ele continua conosco ainda que esteja lá; e nós, ainda que estejamos aqui, podemos estar com Ele lá. Ele está conosco por sua divindade, por seu poder e seu amor; nós, embora não possamos estar com Ele pela nossa divindade, podemos, sim, estar com Ele pelo amor que lhe temos. Deus não se afastou do céu quando desceu até nós; nem de nós, quando regressou aos céus. Ele próprio garante que estava lá enquanto estava aqui: Nenhum homem subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem que está no céu. Disse isso por causa da unidade que existe entre Ele, nossa cabeça, e nós, seu corpo”.
O bispo de Hipona termina o seu sermão: “Desceu, pois, do céu, por sua misericórdia, mas já não subiu só, visto que nós também subimos nEle pela graça. Assim, pois, Cristo desceu só, mas não ascendeu só; não se trata de confundir a dignidade da cabeça com a do corpo, mas, sim, de afirmar que a unidade de todo o corpo pede que este não seja separado da sua cabeça”.
Toda essa comunhão maravilhosa, que nos antecipa aqui a alegria da glória eterna, apoia-se na Comunhão eucarística: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna. Essa é a “vida eterna” que Cristo prepara aos seus: ser “por Ele, com Ele e nEle”.
A revelação cristã responde às perguntas mais peremptórias que se fazem à razão humana sobre além. Como será a vida para além da morte? À luz da palavra de Deus, fica claro que haverá vida, que haverá uma vida abundante, uma vida para a qual Ele é o caminho. O mesmo vale para as palabvras Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna. Desde já, neste mundo, neste tempo. Tempo que o Verbo encarnado tomou para si, que abriu, Ele próprio, à eternidade. A vida eterna nos é dada – quem poderia ter imaginado? – por meio de algo tão material como um corpo, o corpo humano do Crucificado que ressuscitou e possui a fonte de vida inextinguível que é o próprio Verbo, em quem está eternamente a Vida em absoluta plenitude.
O Mestre estabelece uma estreita relação entre a “vida eterna” e a Eucaristia. Não é possível desejar a vida eterna prometida e preparada por Cristo sem desejar a Eucaristia. Poderíamos mesmo falar, como ocorre com o Batismo, de uma comunhão eucarística “de desejo”.
A vida cristã não pode ser entendida sem a Eucaristia. A vida cristã é na terra, simultaneamente, temporal e eterna. Estamos “enxertados” em Cristo. E enxertos não produzem a seiva vivificante, mas a recebem: a sabedoria, o amor, o vigor, a imortalidade. Assim, como não dar mais importância ao eterno, em vez de dá-la ao transitório? Por mais interessante que seja, o que é tudo isso para a vida eterna?
Augusto Comte disse, quando contava dezenove anos, que “tudo é relativo, relativo principalmente ao tempo”; permaneceu cristalizado nesse erro até a morte. Teria acertado se tivesse dito: “Tudo é relativo, relativo principalmente ao Eterno”.
Sem absoluto, não há relativo. Se algo se move, é porque algo não se move. Se percebo a passagem do tempo, é porque há algo em mim que não passa com o tempo. O relativismo radical é como um círculo quadrado, uma impossibilidade, que chega a ser impensável, um absurdo, um bloqueador da razão, um maquinista louco que causa catástrofes ao mudar a direção do trilho de acordo com os seus caprichos. A ditadura do relativismo é a ditadura do caos intelectual e do crescente desajuste ético.
É preciso lançar âncoras no Absoluto
Com a âncora no Absoluto, firmes nEle, vemos como tudo o mais é relativo, relativo... ao Absoluto. Tanto é assim que mesmo as coisas relativas participam de alguma maneira, em graus muito diferentes, desde o mais ínfimo ao supremo, da “absolutez” do Absoluto. Tudo que existe está em relação com o Absoluto e, em consequência, devemos procurar contemplar tudo sob o prisma da eternidade. A eternidade não está em um futuro mais ou menos distante, já está no tempo, introduziu-se nele. O Verbo eterno do Pai estabeleceu a sua morada e habita no coração do homem. Mais: reside não apenas na minha alma, mas também no meu sangue. A comunhão com o Corpo e o Sangue de Cristo é para mim penhor da ressurreição, me confere um direito de ressuscitar. O grão de trigo enterra-se e morre. Parece que morre, mas ressurge – por obra do Criador – com uma nova e fecunda vitalidade.
Por que a vida eterna não nos instiga ou instiga tão pouco? Por que as coisas temporais nos estimulam muito mais? Desejamos a vida eterna com veemência? São questões que o Cardeal Joseph Ratzinger – hoje, graças a Deus, Bento XVI – propunha a si mesmo numa conferência ministrada na Academia Cristã de Praga (1992). Sua resposta era que a dificuldade em desejar a vida eterna “tem a ver essencialmente com a nossa imagem de Deus e da sua relação com o mundo [...]. Parece que não podemos mais imaginar que Deus realmente faça algo no mundo e nos homens, que Ele próprio seja um sujeito que age na história. Isso nos parece algo mítico e pré-moderno. Hoje, tornou-se completamente normal não considerar os milagres do Novo Testamento como milagres de fato; são reinterpretados como percepções de fatos condicionados pelo tempo em que surgiram. Também o nascimento virginal de Jesus e a sua ressurreição real, que livrou o seu corpo da decomposição, são, na melhor das hipóteses, privados de importância, vistos como questões marginais: parece incômodo admitir que Deus tenha intervindo em fenômenos biológicos ou físicos. O mundo, uma vez feito, está concluído, fixo em si próprio e em suas cadeias causais, ainda que a imagem que a física moderna faz dEle já não pareça definitiva e irrefutável, como a que os séculos anteriores pensaram ter alcançado.
“Hoje pensamos que os acontecimentos do mundo se explicam exclusivamente por meio de fatores internos a ele. Por isso, também não esperamos nada de ninguém, além de nós mesmos, que mais uma vez temos a certeza de estar em completa dependência das leis da natureza e da história. Deus já não é – digamos desde já – um sujeito que age na história; é, quando muito, uma hipótese marginal.
“O abandono da esperança na eternidade é, pois, simplesmente a outra face do abandono da fé no Deus vivo. A fé na vida eterna nada mais é que a aplicação à nossa própria existência da fé em Deus. E, por conseguinte, só poderá revitalizar-se se encontrarmos uma nova relação com Deus, se reaprendermos a compreender Deus como alguém que atua no mundo e em nós mesmos. «Espero a ressurreição dos mortos e vida do mundo que há de vir»: essa expressão não é uma mera exigência justaposta à nossa profissão de fé em Deus, [mas o] desenvolvimento daquilo que significa crer em Deus, no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Não descobrimos a vida eterna pela análise da nossa própria existência, nem observando a nós mesmos, nossas esperanças e necessidades; a vida eterna sempre escapa ao homem ensimesmado. É na entrega a Deus que o homem se mostra como é; é nela que o homem, observado e amado por Deus, toma parte na eternidade dEle...”
O tempo fabrica uma ilusão de eternidade e cega-nos para a verdadeira vida em Deus. Deixamo-nos levar como se Deus não existisse, e pode parecer que tudo vai bem.
“É preciso convencer-se de que Deus está junto de nós continuamente. Vivemos como se o Senhor estivesse lá longe, onde brilham as estrelas, e não consideramos que também está sempre ao nosso lado.
“E está como um Pai amoroso – quer mais a cada um de nós do que todas as mães do mundo podem querer a seus filhos –, ajudando-nos, inspirando-nos, abençoando... e perdoando.
“Quantas vezes fizemos desanuviar o rosto de nossos pais dizendo-lhes, depois de uma travessura: Não volto a fazer mais! – Talvez naquele mesmo dia tenhamos tornado a cair... – E o nosso pai, com fingida dureza na voz, de cara séria, repreende-nos..., ao mesmo tempo que se enternece o seu coração, conhecedor da nossa fraqueza, pensando: – Pobre criatura, que esforços faz para se portar bem!
“Necessário é que nos embebamos, que nos saturemos de que Pai e muito Pai nosso é o Senhor que está junto de nós e nos céus” (São Josemaria Escrivá, Caminho, 267).
Sempre ao nosso lado. Também Deus Filho, na sua humanidade: Estarei sempre convosco. A eternidade no tempo, tempo aberto à eternidade. Conhecer Cristo no Sacrifício eucarístico, nos sacrários onde está reservado, em nossos corpos quando comungamos, sempre no nosso espírito (com seu Espírito), não é viver na utopia, mas na realidade futura incoada no presente, a vida eterna.
São Paulo diz com palavras fortes: O homem terreno não aceita o que vem do Espírito de Deus (1 Cor 2, 14). Como poderá orientar-se pelo eterno alguém que nunca se detém a pensar na precariedade do tempo e no seu anelo de viver em plenitude? Sem dúvida, se achamos que para além da vida só há o vazio, esse mesmo vazio chega a preencher a vida, que passará a ser puro desespero ou, o que dá no mesmo, o carpe diem: o aferrar-se ao dia, ao momento, espremê-lo para que dê o que não pode dar, porque nada nem ninguém dá o que não tem. Quem não lança a âncora no Absoluto, relativiza o absoluto e absolutiza o relativo; a frustração é iminente.
São Agostinho resume a vida cristã em “um santo desejo”. Que desejo? O desejo da santidade, da vida eterna. Mas não uma vida eterna futura, mas uma vida eterna presente, ainda inabarcável, mas já possuída. São Paulo vê a si próprio na terra elevado com Cristo aos céus, sentado com Cristo junto a Deus Pai: Deus, que é rico em misericórdia, pelo amor imenso com que nos amou, precisamente a nós que estávamos mortos pelas nossas faltas, deu-nos a vida com Cristo – é pela graça que vós estais salvos – com Ele nos ressuscitou e nos sentou no alto do Céu, em Cristo (Ef 2, 4-6).
É bom situar-se lá em espírito e procurar olhar a partir dessas alturas as coisas desta terra que os nossos pés – por enquanto – não podem, não querem deixar de pisar. Cristo, com a sua vida, paixão, morte, ressurreição e ascensão, preparou-nos o caminho. Poupa-nos de angústias, desesperos, perplexidades, agonias, frenesis... Porque da eternidade vem sempre o olhar “com bondade” descrito no Cânon Romano, aconteça o que acontecer. Tudo passa, tudo é relativo, tudo... menos o Absoluto e aquilo que participa intensamente do Absoluto, a pessoa, cada pessoa: que não é o seu próprio fim, mas é um fim sim em si mesma. Abramos caminho porque vamos ascender juntos, acima das nuvens, para esse céu que começa na terra.
Então veremos os fatos do mundo na sua verdadeira medida. Compreenderemos aquilo que o papa Bento XVI dizia: “Com efeito, a história não está nas mãos de poderes obscuros, deixada ao caso ou unicamente às opções humanas. Contra o desencadear-se de energias malévolas que vemos, contra a irrupção veemente de satanás, contra o surgir de tantos flagelos e males, eleva-se o Senhor, árbitro supremo da vicissitude histórica. Ele a conduz sabiamente para o alvorecer dos novos céus e da nova terra, cantados na parte final do Apocalipse sob a imagem da nova Jerusalém”. O Santo Padre comentava o Cântico desse livro sagrado (15, 3-4), entoado pelos “justos da história, os vencedores da Besta satânica, os que através da derrota aparente do martírio são na realidade os verdadeiros construtores do mundo novo, com Deus artífice supremo”. Com este cântico, dizia, “reafirmar que Deus não é indiferente às vicissitudes humanas, mas penetra nelas realizando os seus «caminhos», isto é, os seus projetos e as suas «obras» eficazes”. E prossegue: “esta intervenção divina tem uma finalidade bem clara: ser um sinal que convida todos os povos da terra à conversão. Por conseguinte, o hino convida todos nós sempre de novo à conversão. As nações devem aprender a «ler» na história uma mensagem de Deus. A aventura da humanidade não é confusa e sem significado, nem está destinada sem apelo à prevaricação dos prepotentes e dos perversos”. Existe a possibilidade de reconhecer a atuação de Deus na historia e de “abrir-se assim ao temor do nome do Senhor”.
O Papa lembra, porém, que “na linguagem bíblica, este «temor» de Deus não é receio, não coincide com o medo, é algo totalmente diferente: é o reconhecimento do mistério da transcendência divina. [...] Graças ao temor do Senhor, não se tem medo do mal que se desencadeia na história e retoma-se com vigor o caminho da vida. [...] O hino termina com a previsão de uma procissão universal de povos que se apresentarão diante do Senhor da história, revelado através dos seus justos juízos. Eles prostrar-se-ão em adoração. E o único Senhor e Salvador parece repetir-lhes as palavras pronunciadas na última noite da sua vida terrena, quando disse aos seus Apóstolos: Tende confiança; eu venci o mundo!”
Passaram-se vinte séculos. E é verdade que em certas ocasiões Cristo parece fracassar, porque não vemos o reinado da paz na justiça, porque a civilização do amor parece escorrer por entre os dedos. Mas o fracasso não é dEle, é daqueles que dormem; e daqueles que têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem. Estes consideram-se o umbigo do mundo e estão convencidos de que Cristo fracassou. Mas a barca de Pedro continua a sulcar os mares do mundo e não atravessa o seu pior momento. Uma multidão inédita exclamou na praça de São Pedro durante quase uma hora: “Habemus Papam! Viva o Papa!” sem saber o seu nome, a sua origem, idade, idioma nativo, país de origem, cor de pele... Viu apenas a fumata bianca. Eu vi João XXIII e depois Paulo VI pela TV, depois João Paulo II, e agora Bento XVI. Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé, diz São João, que presenciou o fracasso do Gólgota, mas também a vida de Cristo ressuscitado e a sua ascensão ao céu. O poder do braço de Deus não encolheu. Convençam-se os incrédulos. Fala a História. Alegrem-se os crentes. E não durmam! Antonio Orozco-Delclós
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