Pode a perfeição do ilimitado alcançar uma maior perfeição?
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Mt 18,21-35
Refletindo:
O Senhor havia ensinado aos seus discípulos como proceder na correção no caso de alguém que cometesse um pecado. (Mt 18,15ss).
Então Pedro pergunta: o que fazer se um irmão pede perdão arrependido, mas depois volta a pecar, e isto não uma, mas “sete vezes”?
Na mentalidade hebraica o número sete significava totalidade. Aplica-se ao que é pleno, acabado, perfeito. Pedro ao perguntar se de vê perdoar “sete vezes”, quer saber se o perdão deve ser ilimitado. É como dizer: “Devo perdoar sempre? Ou se deve colocar algum limite no perdão?”
Era uma questão discutida entre os mestres da Lei, sobre qual devia ser o número legal para perdoar a quem reincidia no pecado. Geralmente se considerava que até quatro vezes. O perdão devia ter para os mestres da Lei um limite, um número. Pedro propõe até “sete vezes”. Acaso os discípulos haviam compreendido que a misericórdia de Jesus não tinha limites. Pôr um limite no perdão seria convertê-lo num ato imperfeito. Era como se dissesse ao irmão arrependido: “está bem, te perdôo, mas olho vivo, estou contando e o perdão tem um limite”. No fundo, não se trata de um perdão real, senão tão só condicionado à emenda, com a possibilidade de que, pela reincidência e recorrência, o pecador possa ficar definitivamente excluído do perdão, mesmo quando mostre um reiterado arrependimento.
O Senhor não só afirma a Pedro que se deve perdoar sem limite: os discípulos têm que perdoar não só “sete vezes”, e sim “setenta vezes sete”. Setenta, múltiplo de sete e dez, indica o mesmo que sete: plenitude e totalidade. Setenta vezes sete? Pode a perfeição do ilimitado alcançar uma maior perfeição? O Senhor não só pede um perdão ilimitado, senão também absoluto, um perdão que ao proceder da experiência de alguém haver sido perdoado por Deus, da experiência da misericórdia infinita de Deus, se expressa não só no número ilimitado de vezes que se perdoa ao pecador arrependido, senão não atitude interior de perdoar, de não fazer conta, de não dizer “perdôo, mas estou contando para lançar na cara em algum momento”. O perdão que o Senhor pede a seus discípulos deve ser tão perfeito como o perdão que Deus oferece ao pecador que se arrepende, um perdão que em vez de ficar contando os pecados ou o tamanho da dívida, busca sempre e antes de tudo recuperar o pecador, o filho, a filha.
O Senhor propõe imediatamente uma parábola ou comparação, para insistir na necessidade de perdoar ao irmão para alcançar um mesmo perdão de Deus. Na parábola o Senhor Jesus quer expressar que Deus se compadece e perdoa ao pecador que lhe suplica misericórdia, inclusive quando a dívida é exorbitante. O Senhor fala de alguém que deve dez mil talentos a seu rei. Esta soma equivalia a sessenta milhões de denários, sendo naquela época um denário a diária de um trabalhador. Em outras palavras o Senhor quer dizer que esta dívida era simplesmente impagável. Essa dívida foi perdoada daquele devedor «porque me foi pedido».
O Senhor fala também de um companheiro que por sua vez deviam a ele tão somente cem denários, uma soma irrisória comparada com os sessenta milhões de denários que havia sido condenado justo antes. Não deveria este, também, ter compaixão por seu companheiro e perdoar-lhe essa dívida ínfima, quando o rei tanto havia perdoado? Do mesmo modo Deus espera que aquele a quem Ele perdoou todos os seus pecados seja capaz de perdoar ao próximo que pede perdão.
A conclusão do Senhor é forte, clara e contundente: Deus retirará seu perdão para aquele que, sendo ele mesmo perdoado, feche seu coração para a compaixão e se negue a praticar o perdão com seus irmãos humanos.
LUZES PARA A VIDA CRISTÃ
Quem, ao receber uma ofensa, não sente o imediato impulso interior de querer ser ressarcido? A dor experimentada, o orgulho ferido, a ira que se acende em nossos corações, nos impulsiona a querer castigar ou vingar de algum modo o dano recebido, acreditando que fazendo o outro sofrer “o que me fez sofrer” poderemos aliviar nossa própria dor ou encontrar a paz.
É possível ir contra toda essa corrente interior de sentimentos tão fortes que se despertam em nós quando nos causam dano, quando nos ofendem? É possível deixar de lado o ódio, resistir ao desejo de vingança e purificar o coração de todo ressentimento? Isso é o que o Senhor pede a seus discípulos: perdoar sempre a quem nos causa dano ou nos ofende, inclusive a quem o faz reiteradamente, cada vez que se mostre arrependido.
Mas podemos dizer que devemos oferecer o perdão inclusive para aquele que não está arrependido do dano que nos tenha feito, involuntária ou voluntariamente. Isto é mais difícil ainda, certamente. Mas sobre isso dá exemplo e lição o mesmo Senhor Jesus na Cruz quando reza e implora o perdão para aqueles que o estão crucificando sem misericórdia, e que não mostram nenhum tipo de arrependimento senão que estão cheios de ódio e malícia.
Oferecer o perdão a quem nos causou mal é um ato heroico que só pode brotar de um amor que é maior que o mal. Este perdão não só é uma porta aberta para o pecador para que possa se arrepender, se corrigir e voltar ao bom caminho. Também é o caminho que traz a paz para aquele que sofreu o dano ou a ofensa. Quem se nega a perdoar e alimenta o ressentimento, o rancor e o desejo de vingança em seu próprio coração, jamais encontrará a paz do espírito. Quem crê que pode curar sua ferida e mitigar sua dor dirigindo seu ódio e rancor contra a pessoa que lhe causou uma dor e um dano acaso irreparável, tão-somente acrescenta ao dano recebido outro pior: seu rancor é um veneno que se volta contra si mesmo; a amargura envenena e mata sua própria alma e se difunde ao redor, tornando dura e infeliz a vida de quem está à sua volta pela amargura que carrega em si mesmo. Só o perdão oferecido a quem nos ofende é capaz de curar as próprias feridas! Quem oferece o perdão, recebe em troca a paz do próprio coração.
Talvez entendamos melhor isso com uma comparação: Se uma serpente venenosa te morde, irias atrás dela, pensando em teu interior: “quando matá-la, ficarei curado”? Seria néscio e insensato caso pensasse e agisse assim, não é verdade? No entanto, é exatamente o que fazemos quando alguém nos causa dano e passamos a ter ódio e ressentimento no coração, buscando —mesmo que só seja no pensamento— devolver o mal recebido como forma de sermos “ressarcidos”. Pode ser que de momento “te sintas bem” matando a serpente a paulada, mas tu também morrerás pelo veneno que foi inoculado em ti. Ao contrário, quem perdoa de coração é como aquele que, sem se preocupar em perseguir a serpente e sem perder um segundo, vai correndo ao posto médico para buscar o antídoto e salvar sua própria vida.
O antídoto para o veneno do ódio, do rancor, do pensamento é o Amor, que vem de Deus. Quem se deixa tocar pelo Amor do Senhor, quem experimenta sua misericórdia que supera o maior de nossos pecados, é capaz de amar como Ele, é capaz como Ele de perdoar toda ofensa ou dano recebido, por muito grave que seja.
PADRES DA IGREJA
Santo Agostinho: «Irmão, que não haja desavenças entre vós... Talvez, no pensamento dizeis: “Quero fazer as pazes, mas é o irmão que me ofendeu... e não quer pedir perdão”. O que fazer então?... Faz falta que se interponham entre vós um terceiro, um amigo da paz... Quanto a ti, sê pronto para perdoar, totalmente disposto para lhe perdoar sua volta do mais profundo do coração. Se estás disposto para perdoar-lhe a falta, de fato, já lhe foi perdoado».
»Falta ainda a ti orar: ora por ele para que peça perdão, porque sabes que não é bom para ele não fazê-lo... Diga ao Senhor: “Tu sabes que eu não ofendi ao irmão... e o prejudica fazer-me ofendido; quanto a mim, te peço de coração que o perdoes”».
São Cesáreo de Arles: «Sabeis o que vamos dizer a Deus na oração antes de nos aproximar para comungar: “Perdoa nossas ofensas como nós perdoamos aos que nos ofendem”. Preparai-vos interiormente para perdoar, porque estas palavras voltarás a encontrar na oração. Como vai dizê-las? Não vai pronunciá-las? Porque no final das contas, esta é a questão: direis estas palavras ou não? Detestas o teu irmão e pronuncias as palavras “perdoa nossas ofensas como nós perdoamos aos que nos ofendem”? “Evito estas palavras”, me dirás. Mas então, estás realmente orando? Tenham atenção, meus irmãos. Num instante pronunciareis a oração. Perdoamos de todo coração!».
São Juan Crisóstomo: «Cristo nos pede duas coisas: condenar nossos pecados e perdoar o que desperta de seus pecados será menos severo para com seu companheiro de miséria. E perdoar não só de palavra, senão do mais profundo do coração, para não voltar contra nós mesmos o ferro com o qual queremos perfurar os outros. Que mal pode fazer a ti teu inimigo que seja comparável ao que tu mesmo fazes a ti com tua atitude?».
»Se deres rédea solta para tua indignação e cólera, não é a injúria que te foi feita que te ferirá, e sim o ressentimento que tens contra ele».
»Não diga, pois: “Ultrajou-me, caluniou-me, me fez enorme quantidade de misérias”. Quanto mais diga que te causou dano, mais demonstras que te fez bem, pois te deu a ocasião de purificar teus pecados. Assim, quanto mais te ofende, mas te põe em condições de obter de Deus o perdão de tuas faltas. Porque se não queremos, ninguém poderá nos prejudicar; inclusive nossos inimigos nos fazem desse modo um grande serviço».
»Considera, pois, quantas vantagens tira se sabes suportar humildemente e com doçura uma injúria. Primeiramente mereces —e é o mais importante— o perdão de teus pecados. Além disso, exercite a paciência e a valentia. Em terceiro lugar, adquira a doçura e a caridade, porque quem é incapaz de se enfurecer contra os que lhe desgostam, será muito mais caritativo ainda com os que o amam. Em quarto lugar, arranca da raiz a cólera de teu coração, o que é um bem sem igual. Libertando sua alma da cólera, evidentemente arranca dela a tristeza: não gastará sua vida em penas e vãs inquietudes. Assim, odiando os outros castigamos a nós mesmos; amando-os fazemos o bem a nós mesmos. Por outro lado, todos te venerarão, inclusive teus inimigos, mesmo que sejam os demônios. Muito melhor, comportando-se assim já não terás mais inimigo».
Concluindo:
«Mais adiante, quando crucificado, mostrará uma vez mais a grandeza de seu amor orando ao Pai por que o estão matando. São João Crisóstomo comenta: “Como o Senhor havia dito, rogai pelos que vos perseguirem, o pôs em prática enquanto subiu na Cruz. Por isto segue: ‘Mas Jesus dizia: Pai, perdoai-lhes’. Não porque Ele não pudesse perdoar, senão para nos ensinar a rogar pelos que nos perseguem, não só com a palavra, senão também com a obra”».
«Perdoa nossas ofensas como também perdoamos aos que nos ofendem»
Esta súplica se encontra no segundo grupo de petições do Pai Nosso. Nela nos dirigimos com esperança Àquele que reconhecemos como Pai, com uma clara consciência da própria debilidade e pecado, com a esperança da conversão e o perdão. A parábola do Filho Pródigo, que bem poderia se chamar parábola da reconciliação, revela com profundidade a paternal ternura de Deus que acolhe ao filho arrependido, que regressa depois de haver-se submergido na mais terrível alienação por um mal
Nesta petição invocamos o perdão do Pai. Antes de tudo por mim próprio. E, tendo consciência da comum fragilidade, pela qual «em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível como real e concreta, o pecado de cada um repercute de certa maneira nos demais» (Reconciliatio et paenitentia, 16e. 46), expressamos uma adesão à causa comum de suplicar perdão por todos, confiando sempre na divina Misericórdia.
Portanto, a segunda parte da invocação —«como também nós perdoamos os que nos ofendem»— põe uma medida clara para nossa consciência, e ao mesmo tempo constitui uma exigência segundo a qual nos comprometemos no dinamismo da cooperação, deixando-nos impulsionar pela graça para tornar concreto o perdão e a reconciliação.
Assim como também nós perdoamos, são palavras de um compromisso sério que nos levam a tomar consciência de um programa de vida cristã cotidiana. A consciência de chegar a pedir perdão, tornando a vida cotidiana um exercício dessa dimensão reconciliativa da existência, é fundamental na vida coerente de um cristão. Sendo pouco, temos aí a parábola do Mestre que evidencia o que se passa com aquele que em seu envaidecimento e cegueira pede perdão para si por suas ofensas mas não perdoa as ofensas de que tenha sido vítima. Toda suscetibilidade própria que leve a um tão mesquinho proceder deve desvanecer-se no mar imenso da misericórdia e caridade divinas que alcança as próprias dívidas. Esses dons de Deus convidam a viver com ardor e perseverança todo o alcance do perdão. A mais intensa concórdia fraterna, centrada na verdade e caridade, se abre como experiência de vida.
Nunca devemos duvidar de que a iniciativa do perdão vem do Pai que «nos reconciliou pela morte de seu Filho» e «nos perdoou em Cristo». Junto a um fundamental sentido de equidade e de gratuidade, põe-se evidente a unidade indivisível do amor na Igreja: «quem não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê».
No caminho da busca de perfeição a que todo filho da Igreja é chamado, em virtude da vocação de todos à santidade, a dimensão de perdão é fundamental: o perdão de mim próprio, e certamente o perdão aos demais, dimensão fundamental da caridade, e, também, de uma vida sã. Assim ensina o Papa João Paulo II, quando disse: «O mundo dos homens pode tornar-se “cada vez mais humano”, somente se em todas as relações recíprocas que plasmam seu rosto moral introduzimos o momento do perdão, tão essencial para o Evangelho. O perdão testemunha que no mundo está presente o amor mais forte que o pecado». Por ele devemos abraçar a dinâmica reconciliativa, em seu rico desdobrar, laborando pela comunhão, conscientes da grande tarefa de contribuir para isso, o que implica aderir plenamente à Fé da Igreja.
Na Oração Dominical encontramos, pois, um convite para aprofundar e viver a dinâmica reconciliativa que brota do Desígnio amoroso do Pai, transforma nossa realidade, nos impulsiona a viver essa reconciliação com nossos irmãos e nos situa ante o desafio de anunciar a Boa Nova da Reconciliação a todos os seres humanos.
A†Ω
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