Somos profetas que testemunham, diante do mundo, o projeto
de Deus?
15º DOMINGO DO TEMPO COMUM- ANO B
A
liturgia do 15º Domingo do Tempo Comum recorda-nos
que Deus atua no mundo através dos homens e mulheres que Ele chama e envia como
testemunhas do seu projeto de salvação. Esses “enviados” devem ter como grande
prioridade a fidelidade ao projeto de Deus e não a defesa dos seus próprios
interesses ou privilégios.
A primeira leitura apresenta-nos o exemplo do
profeta Amós. Escolhido, chamado e enviado por Deus, o profeta vive para propor
aos homens – com verdade e coerência – os projetos e os sonhos de Deus para o
mundo. Atuando com total liberdade, o profeta não se deixa manipular pelos
poderosos nem amordaçar pelos seus próprios interesses pessoais.
A segunda leitura garante-nos que Deus tem um projeto
de vida plena, verdadeira e total para cada homem e para cada mulher – um projeto
que desde sempre esteve na mente do próprio Deus. Esse projeto, apresentado aos
homens através de Jesus Cristo, exige de cada um de nós uma resposta decidida,
total e sem subterfúgios.
No Evangelho, Jesus envia os discípulos em missão. Essa missão –
que está no prolongamento da própria missão de Jesus – consiste em anunciar o
Reino e em lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem e que o
impede de ser feliz. Antes da partida dos discípulos, Jesus dá-lhes algumas
instruções acerca da forma de realizar a missão… Convida-os especialmente à
pobreza, à simplicidade, ao despojamento dos bens materiais.
LEITURA
I – Am 7,12-15
Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o
seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C.
(possivelmente, por volta de 762
a. C.), durante o reinado de Jeroboão II. É uma época de
prosperidade econômica e de tranquilidade política: as conquistas de Jeroboão
II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a entrada de
tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e têxtil)
desenvolveram-se significativamente… As construções da burguesia urbana
atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.
A prosperidade e bem-estar das classes
favorecidas contrastavam, porém, com a miséria das classes baixas. O sistema de
distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o
bem-estar econômico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos
bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por
se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe
dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes,
impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os
direitos dos menos poderosos.
Entretanto, a religião florescia num esplendor
ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um
culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que
esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que
participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o
pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Ainda mais: os ricos
ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências
culpadas e a fim de assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios
escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os
israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Jahwéh misturava-se com
rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão
religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé jahwista.
É neste contexto que aparece o profeta Amós.
Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é
profeta profissional; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o
reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza
do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do
ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade
israelita da época.
O episódio que a primeira leitura deste
domingo nos propõe leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina.
Trata-se de um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo
com Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Jahwéh. Mais tarde,
Betel aparece como o local onde se reúne a assembleia de “todo o Israel” para
“consultar Deus” (cf. Jz 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade
(cf. Jz 20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz 21,2). Tudo isto reflete a
importância cultual do lugar.
Quando o Povo de Deus se dividiu em dois
reinos, após a morte de Salomão (932
a.C.), os reis do norte (Israel) potenciaram o culto em
Betel, para impedir que os seus súbditos tivessem de deslocar-se a Jerusalém,
situado no reino inimigo do sul (Judá). Então, Betel transformou-se numa
espécie de “santuário oficial” do regime, onde o culto era financiado, em
grande parte, pelo próprio rei. O sacerdote que presidia ao culto era uma
espécie de “funcionário real”, encarregado de zelar para que os interesses do
rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos
fiéis de Israel. Na época em
que Amós exerce o seu ministério profético em Betel, o
sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias. Alguns elementos que
chegaram até nós parecem indiciar também a existência em Betel de uma imagem de
um bezerro, que representava Jahwéh e que era adorado pelos fiéis (cf. Os
10,5).
Betel é um dos lugares onde ecoa a denúncia
profética de Amós. Provavelmente, Amós criticou as injustiças cometidas pelo
rei e pela classe dirigente; e, certamente, denunciou, nesse lugar, um culto
que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas
corruptos dos poderosos.
O nosso texto descreve o confronto entre o
sacerdote Amasias e o profeta Amós. É um texto fundamental para entendermos a
missão do profeta, a sua liberdade face aos interesses do mundo e dos poderes
instituídos.
O sacerdote Amasias é o homem da religião
oficial, enfeudada aos interesses do rei e da ordem estabelecida, comprometida
com o poder político. Para ele, o que interessa é manter intocável um sistema
que assegura benefícios mútuos, quer ao trono, quer ao altar. Nesse sistema, o
rei é o guardião supremo da ordem instituída e não há lugar (nem necessidade)
de uma intervenção que ponha em causa a ordem estabelecida. A tarefa da
religião é, na perspectiva de Amasias, proteger e legitimar os interesses do
rei; em troca, o rei sustenta o santuário. Trono e religião são, assim,
cúmplices ligados por interesses mútuos, que fazem tudo para manter o “statu
quo” e os privilégios. O próprio Amasias tem muito a perder, se as coisas não
correrem bem, já que é um funcionário real cuja função é defender os interesses
do rei. A religião de Amasias é uma religião escrava dos interesses, que se
ajoelha diante dos poderosos e que está completamente fechada aos desafios de
Deus (que, se fossem escutados e acolhidos, poderiam desarranjar o sistema).
Nesta perspectiva, a denúncia de Amós soa a rebelião contra os interesses
enlaçados do poder e da religião, a doutrina subversiva que põe em causa as
estruturas e que abala os fundamentos da ordem estabelecida. Por isso, há que
usar toda a força do sistema para calar a voz incomoda do profeta. Amós é,
portanto, denunciado, convidado a deixar o santuário e a voltar à sua terra
para “ganhar aí o seu pão”.
A resposta de Amós deixa claro que o profeta é
um homem livre, que não atua por interesses humanos (próprios ou alheios), mas
por mandato de Deus. A iniciativa de ser profeta não foi sua… Deus é que veio
ao seu encontro, interrompeu a normalidade da sua vida e convocou-o para a
missão. De resto, a profecia não é, para ele, uma ocupação profissional, ou uma
forma de realizar interesses pessoais. Amós é profeta porque Deus irrompeu na
sua vida com uma força irresistível, tomou conta dele e enviou-o a Israel. O
profeta não está, portanto, preocupado com os interesses do rei ou com os
interesses do sacerdote Amasias, ou com a perpetuação de uma ordem social
injusta e opressora… Ele foi convocado para ser a voz de Deus e só lhe interessa
cumprir a missão que Deus lhe confiou. Doa a quem doer, é isso que Amós
procurará fazer. Ele não pode, nem quer ficar calado… A sua missão (ainda que
isso custe a Amasias e ao rei) tem autoridade por si própria, porque vem de
Deus e Deus é infinitamente maior do que o rei. Munido dessa autoridade (que
não só o legitima na sua ação profética, mas até o obriga a ser fiel à missão
que lhe foi confiada), Amós anuncia (num desenvolvimento que o texto que nos é
proposto não conservou – cf. Am 7,16-17) o castigo para o rei, para Amasias e
para toda a nação infiel.
ATUALIZAÇÃO
• Neste texto – como em tantos outros textos
proféticos – transparece a absoluta convicção de que o profeta é um homem de
Deus, escolhido por Deus, chamado por Deus, enviado por Deus, legitimado por
Deus. Deus está na origem da vocação profética; e a atuação do profeta só faz
sentido se partir de Deus e se tiver como objetivo apresentar aos homens as
propostas de Deus. É preciso que nós crentes – constituídos profetas pelo Batismo
– tenhamos Deus como a referência de onde parte e para onde se orienta a nossa
ação e missão proféticas. Nenhum profeta o é por sua iniciativa pessoal, ou
para anunciar propostas pessoais; mas é Deus que nos chama, que nos envia e que
está na base desse testemunho que somos chamados a dar no meio dos homens.
• O profeta é um homem livre, que não se
amedronta nem se dobra face aos interesses dos poderosos. Por isso, o profeta
não pode calar-se perante a injustiça, a opressão, a exploração, tudo o que
rouba a vida e impede a realização plena do homem. Amasias – o sacerdote que
alinha ao lado dos poderosos, que defende intransigentemente a ordem
estabelecida, que se compromete com ela, que vende a sua consciência para
manter o lugar e que transige com a injustiça para não incomodar os poderosos –
é um exemplo a não seguir… Amós, o profeta que não se cala nem se vende, que
está disposto a arriscar tudo (inclusive a própria vida) para defender os
pequenos e os fracos e que não hesita em propor os projetos de Deus para o
homem e para o mundo, deve ser o modelo para qualquer crente a quem Deus chama
a cumprir uma missão profética no meio do mundo.
• Amasias é o homem comodamente instalado nos
seus privilégios, benesses, que cala a voz da própria consciência porque tem
muito a perder e não quer arriscar; Amós é o profeta livre da preocupação com
os bens materiais, que não está preocupado com a defesa dos próprios
interesses, mas sim com a defesa intransigente dos interesses dos pobres e
marginalizados, que são os interesses de Deus. A diferença entre os dois é a
diferença entre aquele para quem os valores materiais são a prioridade
fundamental e aquele para quem os valores de Deus são a prioridade fundamental.
O verdadeiro profeta não pode colocar os bens materiais como a sua prioridade
fundamental; se isso acontecer, perderá a sua liberdade profética e tornar-se-á
um escravo de quem lhe paga.
• Este texto fala-nos também da promiscuidade
entre a religião e o poder. Trata-se de uma combinação que não produz bons frutos
(como, aliás, a história da Igreja tem demonstrado nas mais diversas épocas e
lugares). A Igreja, para poder exercer com fidelidade a sua missão profética,
tem de evitar colar-se aos poderosos e depender deles, sob pena de ser infiel à
missão que Deus lhe confiou. Uma Igreja que está preocupada em não incomodar o
poder para manter privilégios fiscais, ou para continuar a receber dinheiro
para as instituições que tutela, será uma Igreja escrava, de mãos atadas,
dependente, que está longe de Jesus Cristo e da sua proposta libertadora.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)
Refrão 1: Mostrai-nos, Senhor, o vosso amor
e
dai-nos a vossa salvação.
Refrão 2: Mostrai-nos, Senhor, a vossa
misericórdia.
Deus fala de paz ao seu povo e aos seus fiéis
e a quantos de coração a Ele se convertem.
A sua salvação está perto dos que O temem
e a sua glória habitará na nossa terra.
Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade,
abraçaram-se a paz e a justiça.
A fidelidade vai germinar da terra
e a justiça descerá do Céu.
O Senhor dará ainda o que é bom,
e a nossa terra produzirá os seus frutos.
A justiça caminhará à sua frente
e a paz seguirá os seus passos.
LEITURA
II – Ef 1,3-14
A cidade de Éfeso, capital da Província romana
da Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. O seu importante
porto e a sua numerosa população faziam dela uma cidade florescente. Paulo
passou em Éfeso na sua segunda viagem missionária (cf. Act 18,19-21) e, durante
a sua terceira viagem missionária, fez de Éfeso o quartel-general, a partir do
qual evangelizou toda a zona ocidental da Ásia Menor.
A nossa Carta aos Efésios é, provavelmente, um
dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor,
numa altura em que Paulo
está na prisão (em Cesareia? Em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico.
Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese
da teologia paulina, numa altura em que a missão do apóstolo está praticamente
terminada no oriente. O tema mais importante da carta aos Efésios é aquilo que
o autor chama “o mistério”: trata-se do projeto salvador de Deus, definido e
elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado
plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado
presente no mundo pela Igreja.
O texto que nos é hoje proposto aparece no
início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades
cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Este hino dá graças pela ação do
Pai (cf. Ef 1,3-6), do Filho (cf. Ef 1,7-12) e do Espírito Santo (cf. Ef
1,13-14), no sentido de oferecer aos homens a salvação.
A ação de graças dirige-se a Deus, pois Ele é
a fonte última de todas as graças concedidas aos homens. Essas graças atingiram
os homens através do Filho, Jesus Cristo.
Qual é então, segundo este hino, a ação do
Pai?
O Pai, no seu amor, elegeu-nos desde sempre
(“antes da criação do mundo”). Elegeu-nos para quê? A resposta é: “para sermos
santos e irrepreensíveis”. A palavra “santo” indica a situação de alguém que
foi separado do mundo e consagrado a Deus, para o serviço de Deus; a palavra
“irrepreensível” era usada para falar das vítimas oferecidas em sacrifício a
Deus, que deviam ser imaculadas e sem defeito… Significa, pois, uma santidade
(isto é, uma consagração a Deus) verdadeira e radical.
Além de nos eleger, o Pai predestinou-nos
“para sermos seus filhos adotivos”. Através de Cristo, o Pai ofereceu-nos a sua
vida e integrou-nos na sua família na qualidade de filhos. O fim desta ação de
Deus é o louvor da sua glória.
“Eleição” e “adoção como filhos” resultam do
imenso amor de Deus pelos homens – um amor que é gratuito, incondicional e
radical.
E Jesus Cristo, o Filho, que papel teve neste
processo?
Nos vers. 7-10, o autor do hino refere-se ao
sangue derramado de Cristo e ao seu significado redentor. A morte de Jesus na
cruz é o sinal evidente do espantoso amor de Deus pelos homens; e dessa forma,
Deus ensinou-nos a viver no amor, no amor total e radical. Através de Cristo,
Deus derramou sobre nós a sua graça, tornando-nos pessoas novas e diferentes,
capazes de viver no amor. Assim, Deus manifestou-nos o seu projeto de salvação
(que o hino chama “o mistério”) e que consiste em levar-nos a uma identificação
plena com Jesus (na sua ilimitada capacidade de amar e de dar vida), a uma
unidade e harmonia totais com Jesus. Identificando-nos com Cristo e
ensinando-nos a viver no amor total e radical, Deus reconciliou-nos consigo,
com todos os outros e com a própria natureza. Da ação redentora de Cristo
nasceu, pois, um Homem Novo, capaz de um novo tipo de relacionamento (não
marcado pelo egoísmo, pelo orgulho, pela auto-suficiência, mas marcado pelo
amor e pelo dom da vida) com Deus, com os outros homens e mulheres e com toda a
criação.
Dessa forma, em Cristo fomos constituídos
filhos de Deus e herdeiros da salvação, conforme o projeto de Deus preparado
desde toda a eternidade em nosso favor (vers. 11-12).
Os crentes que aderiram a Jesus foram marcados
pelo “selo” do Espírito. Esse “selo” é a marca que atesta a nossa integração na
família divina e a garantia de que um dia participaremos na vida eterna, plena
e verdadeira, conforme o plano que Deus tem para nós (vers. 13-14).
ATUALIZAÇÃO
• O nosso texto afirma, de forma clara, que
Deus tem um projeto de vida plena e total para os homens, um projeto que desde
sempre esteve na mente de Deus. É muito importante termos isto em conta: não
somos um acidente de percurso na evolução inexorável do cosmos, mas somos atores
principais de uma história de amor que o nosso Deus sempre sonhou e que Ele
quis escrever e viver conosco… No meio das nossas desilusões e dos nossos
sofrimentos, da nossa finitude e do nosso pecado, dos nossos medos e dos nossos
dramas, não esqueçamos que somos filhos amados de Deus, a quem Ele oferece
continuamente a vida definitiva, a verdadeira felicidade.
• De acordo com o nosso texto, Deus
“elegeu-nos… para sermos santos e irrepreensíveis”. Já vimos que “ser santo”
significa ser consagrado para o serviço de Deus. O que é que isto implica em
termos concretos? Entre outras coisas, implica tentar descobrir o plano de
Deus, o projeto que Ele tem para cada um de nós e concretizá-lo dia a dia com
verdade, fidelidade e radicalidade. No meio das solicitações do mundo e das
exigências da nossa vida profissional, social e familiar, temos tempo para
Deus, para dialogar com Ele e para tentar perceber os seus projetos e
propostas? E temos disponibilidade e vontade de concretizar as suas propostas, mesmo
quando elas não são conciliáveis com os nossos interesses pessoais?
• O nosso texto afirma ainda a centralidade de
Cristo nesta história de amor que Deus quis viver conosco… Jesus veio ao nosso
encontro, cumprindo com radicalidade a vontade do Pai e oferecendo-Se até à
morte para nos ensinar a viver no amor. Como é que assumimos e vivemos essa
proposta de amor que Jesus nos apresentou? Aprendemos com Ele a amar sem exceção
e com radicalidade? Somos profetas que testemunham, diante do mundo, o projeto
de Deus? Aqueles que caminham pelo mundo ao nosso lado encontram nos nossos
gestos e atitudes sinais vivos do amor de Deus revelado em Jesus?
ALELUIA – cf. Ef 1,17-18
Aleluia. Aleluia.
Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
ilumine os olhos do nosso coração,
para sabermos a que esperança fomos chamados.
EVANGELHO – Mc 6,7-13
Toda a primeira parte do Evangelho segundo
Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) está montada à volta da ideia de que Jesus é o
Messias que proclama o Reino de Deus. Como ponto de partida está um
sumário-anúncio inicial (cf. Mc 1,14-15) onde se proclama a chegada do Reino;
em seguida, Jesus apresenta a proposta do Reino a um grupo de discípulos, que
escutam o apelo e aceitam embarcar na aventura do Reino de Deus (cf. Mc
1,16-20); depois, Marcos descreve como Jesus, com palavras e com gestos
concretos, vai propondo essa nova realidade que é o Reino e vai intercalando as
propostas de Jesus com as respostas positivas ou negativas dos fariseus, do
povo e dos próprios discípulos (cf. Mc 1,21-8,30).
À medida que o “caminho do Reino” avança, os
discípulos vão aparecendo cada vez mais ligados a Jesus e cada vez mais
implicados no projeto do Reino. Chamados por Jesus, eles responderam
positivamente a esse chamamento e seguiram-n’O; depois, durante a caminhada que
fizeram com Jesus, eles escutaram os ensinamentos de Jesus e testemunharam os
seus gestos e sinais. Formados por Jesus na “escola do Reino”, os discípulos
podem agora ser enviados ao mundo, a fim de anunciar a todos os homens a
chegada desse mundo novo que Jesus chamava o “Reino de Deus”.
O nosso texto é uma autêntica catequese sobre
a missão dos discípulos de Jesus no meio do mundo. As instruções postas aqui na
boca de Jesus conservam o seu sentido e valor para os discípulos de todo o
tempo e lugar.
Marcos começa por deixar claro que a
iniciativa do chamamento dos discípulos é de Jesus: Ele “chamou-os” (vers. 7).
Não há qualquer explicação sobre os critérios que levaram a essa escolha: falar
de vocação e de eleição é falar de um mistério insondável, que depende de Deus
e que o homem nem sempre consegue compreender e explicar.
Depois, Marcos aponta o número dos discípulos
que são enviados (“doze”). Porquê exatamente “doze”? Trata-se de um número
simbólico, que lembra as doze tribos que formavam o antigo Povo de Deus. Estes
“doze” discípulos representam simbolicamente a totalidade do Povo de Deus, do
novo Povo de Deus. É a totalidade do Povo de Deus que é enviada em missão.
Os “doze” são enviados “dois a dois”. É
provável que o envio “dois a dois” tenha a ver com o costume judaico de viajar
acompanhado, para ter ajuda e apoio em caso de necessidade; pode também
pensar-se que esta exigência de partir em missão “dois a dois” tenha a ver com
as exigências da lei judaica, de acordo com a qual eram necessárias duas
testemunhas para dar credibilidade a um qualquer anúncio (cf. Dt 19,15; Mt
18,16). Em qualquer caso, a exigência de partir em missão “dois a dois” sugere
também que a evangelização tem sempre uma dimensão comunitária. Os discípulos
nunca devem trabalhar sós, à margem do resto da comunidade; não devem anunciar as
suas ideias, mas a fé da Igreja. Quem anuncia o Evangelho, anuncia-o em nome da
comunidade; e o seu anúncio deve estar em sintonia com a fé da comunidade.
Em seguida, Marcos define a missão que Jesus
lhes confiou (“deu-lhes poder sobre os espíritos impuros). Os espíritos impuros
representam aqui tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de chegar à
vida em plenitude. A
missão dos discípulos é, pois, lutar contra tudo aquilo – seja de caráter
físico, seja de caráter espiritual – que destrói a vida e a felicidade do homem
(podemos dizer que a missão dos discípulos é lutar contra o “pecado”). É da ação
libertadora dos discípulos (que atuam por mandato de Jesus) que nasce um mundo
novo, de homens livres – o mundo do “Reino”.
Em seguida, vêm as instruções para a missão
(vers. 8-9). Na perspectiva de Jesus, os discípulos devem partir para a missão,
num despojamento total de todos os bens e seguranças humanas… Podem levar um
cajado (na versão de Mateus e de Lucas, os discípulos não deviam levar cajado –
cf. Mt 10,10; Lc 9,3); mas não devem levar nem pão, nem alforge, nem moedas
(essas pequenas moedas de cobre que o viajante levava sempre consigo para as
suas pequenas necessidades), nem duas túnicas. Os discípulos devem ser
totalmente livres e não estar amarrados a bens materiais; caso contrário, a
preocupação com os bens materiais pode roubar-lhes a liberdade e a
disponibilidade para a missão. Por outro lado, essa atitude de pobreza e de
despojamento ajudará também os discípulos a perceber que a eficácia da missão
não depende da abundância dos bens materiais, mas sim da ação de Deus.
Finalmente, a sobriedade e o desapego são sinais de que o discípulo confia em
Deus e contribuem para dar credibilidade ao testemunho.
Um outro gênero de instruções refere-se ao
comportamento dos discípulos diante da hospitalidade que lhes for oferecida
(vers. 10-11). Quando forem acolhidos numa casa, devem aí permanecer algum
tempo (seguramente para formar uma comunidade) e não devem saltar de um lugar
para o outro, ao sabor das amizades, dos interesses próprios ou alheios ou das
suas próprias conveniências pessoais. Quando não forem recebidos num lugar,
devem “sacudir o pó dos pés” ao abandonar esse lugar: trata-se de um gesto que
os judeus praticavam quando regressavam do território pagão e que simboliza a
renúncia à impureza. Aqui, deve significar o repúdio pelo fechamento às
propostas libertadoras de Deus.
Finalmente, Marcos descreve a realização da
missão dos discípulos (vers. 12-13): pregavam a conversão (“metanoia” – isto é,
uma mudança radical de mentalidade, de valores, de atitudes, um voltar-se para
Jesus Cristo e um acolher o seu projeto), expulsavam demônios, curavam os
doentes. Trata-se de continuar a missão de Jesus: libertar o homem de tudo
aquilo que o oprime e lhe rouba a vida, para fazer aparecer um mundo de homens
livres e salvos (“Reino de Deus”).
O anúncio que é confiado aos discípulos é o
anúncio que Jesus fazia (o “Reino”); os gestos que os discípulos são convidados
a fazer para anunciar o “Reino” são os mesmos que Jesus fez. Ao apresentar a
missão dos discípulos em paralelo e em absoluta continuidade com a missão de
Jesus, Jesus convida a Igreja (os discípulos) a continuar na história a obra
libertadora que Ele começou em favor do homem.
ATUALIZAÇÃO
• Como é que Deus age, hoje, no mundo? A
resposta que o Evangelho deste domingo dá é: através desses discípulos que
aceitaram responder positivamente ao chamamento de Jesus e embarcaram na
aventura do “Reino”. Eles continuam hoje no mundo a obra de Jesus e anunciam –
com palavras e com gestos – esse mundo novo de felicidade sem fim que Deus quer
oferecer aos homens.
• Atenção: Jesus não chama apenas um grupo de
“especialistas” para o seguir e para dar testemunho do “Reino”. Os “doze”
representam a totalidade do Povo de Deus. É a totalidade do Povo de Deus (os
“doze”) que é enviada, a fim de continuar a obra de Jesus no meio dos homens e
anunciar-lhes o “Reino”. Tenho consciência de que isto me diz respeito e que eu
pertenço à comunidade que Jesus envia em missão?
• Qual é a missão dos discípulos de Jesus? É
lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de
ser feliz. Hoje há estruturas que geram guerra, violência, terror, morte: a
missão dos discípulos de Jesus é contestá-las e desmontá-las; hoje há “valores”
(apresentados como o “último grito” da moda, do avanço cultural ou científico)
que geram escravidão, opressão, sofrimento: a missão dos discípulos de Jesus é
recusá-los e denunciá-los; hoje há esquemas de exploração (disfarçados de
sistemas econômicos geradores de bem estar) que geram miséria, marginalização,
debilidade, exclusão: a missão dos discípulos de Jesus é combatê-los. A
proposta libertadora de Jesus tem de estar presente (através dos discípulos) em
qualquer lado onde houver um irmão vítima da escravidão e da injustiça. É isso
que eu procuro fazer?
• As advertências de Jesus para que os
discípulos se apresentem sempre numa atitude de sobriedade e de despojamento
significam, em primeiro lugar, que o discípulo nunca deve fazer dos bens
materiais a sua prioridade fundamental. Se o discípulo estiver obcecado pelo
“ter”, tornar-se-á escravo dos bens, acomodar-se-á e não terá espaço nem
disponibilidade para se lançar na aventura do anúncio do Reino. Por outro lado,
o discípulo que erige os bens materiais como a prioridade da sua vida sentirá
sempre a tentação de se calar, de não incomodar os poderosos, a fim de
preservar os seus interesses econômicos e os seus benefícios particulares.
• As advertências de Jesus para que os
discípulos se apresentem sempre numa atitude de sobriedade e de despojamento
significam também o desapego das ideias e preconceitos, dos hábitos e costumes,
das paixões e afetos que podem constituir um obstáculo para a missão de
anunciar o Reino.
• As palavras de Jesus recomendam ainda aos
discípulos que atuam por um tempo prolongado num determinado lugar, a moderação
e o agradecimento para com aqueles que os acolhem. Quem é recebido numa casa ou
num lugar como hóspede, deve converter-se numa bênção para essa casa e
comportar-se com sobriedade, equilíbrio e maturidade.
• Com frequência os discípulos de Jesus têm de
lidar com a oposição e a recusa da proposta que eles testemunham. É um fato que
deve ser visto com normalidade e compreensão. No entanto, quando isto suceder,
é missão dos discípulos alertar os implicados para a gravidade da recusa. Quem
recusa as propostas de Deus, deve estar plenamente consciente de que está a
perder oportunidades únicas e a afastar-se da sua realização plena, da vida
verdadeira.
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