23º Domingo do Tempo Comum - Ano C
“Quanto é exigente o caminho do
“Reino”.
( Se fazer discípulo )
A liturgia deste domingo
convida-nos a tomar consciência de quanto é exigente o caminho do “Reino”.
Optar pelo “Reino” não é escolher um caminho de facilidade, mas sim aceitar
percorrer um caminho de renúncia e de dom da vida.
É, sobretudo, o Evangelho que
traça as coordenadas do “caminho do discípulo”: é um caminho em que o “Reino”
deve ter a primazia sobre as pessoas que amamos, sobre os nossos bens, sobre os
nossos próprios interesses e esquemas pessoais. Quem tomar contacto com esta
proposta tem de pensar seriamente se a quer acolher, se tem forças para acolhê-la…
Jesus não admite meios-termos: ou se aceita o “Reino” e se embarca nessa
aventura a tempo inteiro e “a fundo perdido”, ou não vale a pena começar algo
que não vai levar a lado nenhum (porque não é um caminho que se percorra com
hesitações e com “meias tintas”).
A primeira leitura lembra a todos
aqueles que não conseguem decidir-se pelo “Reino” que só em Deus é possível
encontrar a verdadeira felicidade e o sentido da vida. Há, portanto, aí, um encorajamento
implícito a aderir ao “Reino”: embora exigente, é um caminho que leva à
felicidade plena.
A segunda leitura recorda que o
amor é o valor fundamental, para todos os que aceitam a dinâmica do “Reino”; só
ele permite descobrir a igualdade de todos os homens, filhos do mesmo Pai e
irmãos em Cristo.
Aceitar viver na lógica do “Reino” é reconhecer em cada homem
um irmão e agir em consequência.
LEITURA I – Sab
9,13-19
O Livro da Sabedoria é um texto
de caráter sapiencial (isto é, cujo objetivo é transmitir a “sabedoria”,
identificada com a arte de bem viver, de ter êxito e de ser feliz). O autor
apresenta-se como um “rei”, apaixonado pela “sabedoria” e que construiu um
templo na “montanha santa” e um altar na “cidade da habitação de Deus” (Sab
9,6-8). Tudo indica, pois, que o autor quer apresentar-se como sendo o rei
Salomão; mas trata-se de um livro escrito na primeira metade do séc. I a.C.
(Salomão é da primeira metade do séc. X a.C.) por um judeu piedoso,
provavelmente pertencente à comunidade judaica de Alexandria. O objetivo do
autor é duplo: por um lado, dirige-se aos seus compatriotas, mergulhados no
paganismo, na idolatria e na imoralidade, e mostra-lhes as vantagens de
perseverar na fé e de viver na justiça; por outro lado, dirige-se aos pagãos e
apresenta-lhes a superioridade da fé e dos valores israelitas. O autor
exprime-se em termos e concepções do mundo helênico, esforçando-se por exprimir
a sua fé e as suas convicções numa linguagem atualizada, erudita, bem ao gosto
da cultura grega da época.
O texto que nos é apresentado é o
final da segunda parte do livro (cf. Sab 6,1-9,18). Aí, o autor coloca na boca
de um rei (Salomão, embora o nome nunca seja referido explicitamente) o elogio
da “sabedoria”.
A questão fundamental para o
autor do texto é esta: só essa sabedoria que é um dom de Deus permite ao homem
compreender tudo, fazer o que agrada a Deus e ser salvo.
O autor parte da constatação da
nossa finitude, das nossas limitações, das nossas dificuldades típicas de seres
humanos, para concluir: por nós, não conseguimos compreender o alcance das
coisas, não conseguimos descobrir o verdadeiro sentido da nossa vida,
apercebermo-nos dos valores que nos levam, verdadeiramente, pelo caminho da
vida e da felicidade. Como chegar, portanto, a “conhecer os desígnios de Deus”?
O autor só encontra uma resposta:
o homem tem de acolher a “sabedoria”, dom de Deus para todos aqueles que estão
interessados em dar um verdadeiro sentido à sua vida. Só a ação de Deus que
derrama sobre os homens a “sabedoria” permite encontrar o sentido da vida e
discernir o verdadeiro do falso, o importante do inútil.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir
dos seguintes dados:
• Face ao contínuo cruzamento de
perspectivas, de desafios, de teorias, ficamos confusos e sem saber, tantas
vezes, como escolher. Por outro lado, as nossas escolhas acabam, tantas vezes,
por ser condicionadas pelos “media”, pelo politicamente correto, pela ideologia
dominante, pela moda, pelos valores que as telenovelas impõem pelas ideias das
pessoas que nos rodeiam, pela filosofia da empresa que nos paga ao fim do mês…
Será que esses caminhos que nos são mais ou menos impostos nos conduzem no
sentido da vida plena, da realização total, da felicidade?
• Para os crentes, o critério que
serve para julgar a validade ou a não validade dessas propostas é o Evangelho –
embora, muitas vezes, ele se apresente em absoluta contradição com os valores
que a sociedade propõe e impõe. Como é que eu me situo face a isto? O que é que
vale mais, quando tenho de decidir: os valores do Evangelho, ou as propostas
dessa máquina trituradora, impositiva, limitadora das escolhas individuais que
é a opinião pública?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão: Senhor, tendes sido o nosso refúgio
através das gerações.
Vós reduzis o homem ao pó da terra
e dizeis: «Voltai, filhos de Adão».
Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou
e como uma vigília da noite.
Vós os arrebatais como um sonho,
como a erva que de manhã reverdece;
de manhã floresce e viceja,
à tarde ela murcha e seca.
Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando…
Tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Desça sobre nós a graça do Senhor nosso Deus.
Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos.
LEITURA II – Flm
9b-10.12-17
A Carta a Filêmon é a mais breve
e pessoal das cartas de Paulo. É endereçada a um tal Filêmon, aparentemente um
membro destacado da Igreja de Colossos.
A partir dos dados da carta,
podemos reconstruir as circunstâncias em que o texto aparece. Onésimo, escravo
de Filêmon, fugiu de casa do seu senhor. Encontrou Paulo, ligou-se a ele e
tornou-se cristão. Paulo, que nessa altura estava na prisão (em Éfeso? Em
Roma?), fê-lo seu colaborador e manteve-o junto de si. No entanto, a situação
podia tornar-se delicada se Filêmon se ofendesse com Paulo; e, do ponto de
vista legal, ao dar guarida a um escravo fugitivo, Paulo era cúmplice de uma
grave infracção ao direito privado. Enfim, Onésimo corria o risco de ser preso,
devolvido ao seu senhor e severamente castigado.
É neste contexto que Paulo
resolve enviar Onésimo a Filêmon. Onésimo leva consigo uma carta, em que Paulo explica a Filêmon
a situação e intercede pelo escravo fugitivo. Com extrema delicadeza, Paulo
insinua a Filêmon que, sendo possível, lhe devolva Onésimo, já que este lhe vem
sendo de grande utilidade; no entanto, Paulo pede, sugere, mas sem impor nada e
deixando a decisão nas mãos de Filêmon.
É um texto belíssimo, carregado
de sentimentos, “verdadeira obra-prima de tacto e de coração”.
O que está em causa neste texto é
muito mais do que um problema privado, embora com alcance social; é, sobretudo,
um problema eclesial (embora com implicações sociais), e que deve ser resolvido
a partir desse valor supremo da ética cristã que é o amor.
Para Paulo, o amor deverá ser a
suprema e insubstituível norma que dirige e condiciona as palavras, os
comportamentos, as decisões dos crentes. Ora, o amor tem consequências bem
práticas, que os membros da comunidade cristã não podem olvidar: implica o ver
em cada homem um irmão – independentemente da sua raça, da sua cor, ou do seu
estatuto social. Vistas as coisas nesta perspectiva, não é de estranhar que
Paulo solicite a Filêmon que receba Onésimo não como o que era antes (um
escravo), mas sim como é agora – um irmão em Cristo. Se Filêmon
é, de fato, cristão, é essa a atitude que deve assumir para com Onésimo.
O problema da escravatura deve
ter-se posto, desde muito cedo, à comunidade eclesial. Mas os cristãos cedo
perceberam que a solução não estava na violência ou na revolta, mas no levar
até às últimas consequências a fraternidade que une todos os homens e que
resulta do fato de todos serem “filhos de Deus” e irmãos em Cristo. A violência,
quando muito, serviria para substituir uns escravos por outros, sem alterar a
situação; só o amor poderia mudar o coração dos homens, de forma a acabar com a
exploração do homem pelo outro homem. A conversão ao amor – exigência
fundamental para integrar a comunidade eclesial – exige o reconhecimento da
igualdade fundamental de todos os homens (“sem distinção entre judeu ou grego,
entre escravo ou homem livre, entre homem ou mulher, porque todos são um só em Cristo Jesus”, dirá
Paulo – Gal 3,28). A partir do amor, o “dono” do escravo descobre a igualdade
profunda de todos os homens, filhos do mesmo Deus e irmãos em Cristo; a partir
do amor, o escravo descobre a afirmação clara da sua dignidade de homem. É esta
a questão fundamental que o texto nos apresenta.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar as
seguintes questões:
• O amor – elemento que está no
centro da experiência cristã – exige ao cristão o reconhecimento efetivo da
igualdade de todos as pessoas, apesar das diferenças de cor da pele, de
estatuto social, de sexo, de opções políticas. O meu comportamento para com
aqueles que comigo se cruzam é sempre consequente com esta exigência? A cor da
pele alguma vez me levou a discriminar alguém? O fato de uma pessoa ser pobre
ou rica já alguma vez me levou a tratá-la com mais ou menos consideração? O fato
de uma pessoa ser homem ou mulher já alguma vez me levou a dar-lhe mais ou
menos importância ou dignidade?
• O amor – elemento que está no
centro da experiência cristã – exige que as nossas comunidades sejam espaços de
comunhão, de fraternidade, de acolhimento, sejam quais forem os defeitos dos
irmãos. As nossas comunidades têm facilidade em acolher? Como são tratados os
“diferentes” ou, então, aqueles que se afastaram ou que cometeram alguma falta?
Acolhemo-los com amor, ou marcamo-los toda a vida com o estigma da suspeita e
da desconfiança?
ALELUIA – Salmo 118 (119), 135
Aleluia. Aleluia.
Fazei brilhar sobre mim, Senhor, a luz do vosso rosto
e ensinai-me os vossos mandamentos.
EVANGELHO – Lc
14,25-33
Estamos, ainda, no “caminho para
Jerusalém”. Desta vez, o ensinamento de Jesus dirige-se “às multidões”, quer
dizer, a todos os discípulos presentes e futuros de Jesus.
A parábola anterior (cf. Lc
14,15-24) havia sugerido que o “banquete do Reino” estava aberto a todos os que
aceitassem o convite de Jesus, inclusive aos pobres, estropiados, cegos e
coxos… Agora, Lucas vai apresentar algumas exigências que devem cumprir todos
aqueles que entram no “banquete do Reino”. A “instrução” reúne diversos
ensinamentos de Jesus sobre a condição dos discípulos, predominando o tema da
renúncia.
Quais são então, na perspectiva
de Jesus, as exigências fundamentais para quem quer seguir o “caminho do
discípulo” e chegar a sentar-se à mesa do “Reino”? Jesus põe três exigências,
todas elas subordinadas ao tema da renúncia.
A primeira exige o preferir Jesus
à própria família (vers. 26). A este propósito, Lucas põe na boca de Jesus uma
expressão muito forte. Literalmente, podemos traduzir o verbo “misséô” aqui
utilizado como “odiar” (“quem não odeia o pai, a mãe… não pode ser meu
discípulo”). Para ser discípulo, é preciso odiar alguém? Não. Segundo a maneira
oriental de falar, “odiar” significa “pôr em segundo lugar algo porque,
entretanto, apareceu na vida da pessoa um valor que ainda é mais importante”. É
evidente que Jesus não está a pedir o ódio a ninguém, muito menos a esses a
quem nos ligam laços de amor… Está, sim, a exigir que as relações familiares
não nos impeçam de aderir ao “Reino”. Se for necessário escolher, a prioridade
deve ser do “Reino”.
A segunda exige a renúncia à
própria vida (vers. 27). O discípulo de Jesus não pode viver a fazer opções
egoístas, colocando em primeiro lugar os seus interesses, os seus esquemas,
aquilo que é melhor para ele; mas tem de colocar a sua vida ao serviço do
“Reino” e fazer da sua vida um dom de amor aos irmãos, se necessário até à
morte. Foi esse, de facto, o caminho de Jesus; e o discípulo é convidado a
imitar o mestre.
A terceira exige a renúncia aos
bens (vers. 33). Jesus sabe que os bens podem facilmente transformar-se em
deuses, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em
função deles; assim sendo, que espaço fica para o “Reino”? Por outro lado, dar
prioridade aos bens significa viver de forma egoísta, esquecendo as
necessidades dos irmãos; ora, viver na dinâmica do “Reino” implica viver no
amor e deixar que a vida seja dirigida por uma lógica de amor e de partilha…
Pode, então, viver-se no “Reino” sem renunciar aos bens?
Com este rol de exigências, fica
claro que a opção pelo “Reino” não é um caminho de facilidade e, por isso,
talvez não seja um caminho que todos aceitem seguir. É por isso que Jesus
recomenda o pesar bem as implicações e as consequências da opção pelo “Reino”.
A parábola do homem que, antes de construir uma torre, pensa se tem com que
terminá-la (vers. 28-30) e a parábola do rei que, antes de partir para a
guerra, pensa se pode opor-se a outro rei com forças superiores (vers. 31-32)
convidam os candidatos a discípulos tomar consciência da sua força, da sua
vontade, da sua decisão em corresponder aos desafios do Evangelho e em assumir,
com radicalidade, as exigências do “Reino”.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e partilhar,
considerar as seguintes questões:
• Jesus não é um demagogo que faz
promessas fáceis e cuja preocupação é juntar adeptos ou atrair multidões a
qualquer preço. Ele é o Deus que veio ao nosso encontro com uma proposta de
salvação, de vida plena; no entanto, essa proposta implica uma adesão séria,
exigente, radical, sem “paninhos quentes” ou “meias tintas”. O caminho que
Jesus propõe não é um caminho de “massas”, mas um caminho de “discípulos”:
implica uma adesão incondicional ao “Reino”, à sua dinâmica, à sua lógica; e
isso não é para todos, mas apenas para os discípulos que fazem séria e
conscientemente essa opção. Como é que eu me situo face a isto? O projeto de
Jesus é, para mim, uma opção radical, que eu abracei com convicção e a tempo
inteiro ou um projeto em que eu vou estando, sem grande esforço ou compromisso,
por inércia, por comodismo, por tradição?
• A forma exigente como Jesus põe
a questão da adesão ao “Reino” e à sua dinâmica faz-nos pensar na nossa
pastoral – vocacionada para ser uma pastoral de massas – e na tentação que sentem
os agentes da pastoral no sentido de facilitar as coisas, de não serem
exigentes… Às vezes, interessa mais que as estatísticas da paróquia apresentem
um grande número de batizados, de casamentos, de crismas, de comunhões, do que
propor, com exigência, a radicalidade do Evangelho e dos valores de Jesus… O
caminho cristão é um caminho de facilidade, onde cabe tudo, ou é um caminho
verdadeiramente exigente, onde só cabem aqueles que aceitam a radicalidade de
Jesus? A nossa pastoral deve facilitar tudo, ou ir pelo caminho da exigência?
• Às vezes, as pessoas procuram a
comunidade cristã por tradição, por influências do meio social ou familiar,
porque “a cerimônia religiosa fica bonita nas fotografias”… Sem recusarmos
nada, devemos, contudo, fazê-las perceber que a opção pelo batismo ou pelo
casamento religioso é uma opção séria e exigente, que só faz sentido no quadro
de um compromisso com o “Reino” e com a proposta de Jesus.
• Dentro do quadro de exigências
que Jesus apresenta aos discípulos, sobressai a exigência de preferir Jesus à
própria família. Isso não significa, evidentemente, que devamos rejeitar os
laços que nos unem àqueles que amamos… No entanto, significa que os laços afetivos,
por mais sagrados que sejam, não devem afastar-nos dos valores do “Reino”. As
pessoas têm mais importância para mim do que o “Reino”? Já me aconteceu
renunciar aos valores do “Reino” por causa de alguém?
• Outra exigência que Jesus faz
aos discípulos é a renúncia à própria vida e o tomar a cruz do amor, do
serviço, do dom da vida. O que é mais importante para mim: os meus interesses,
os meus valores egoístas, ou o serviço dos irmãos e o dom da vida?
• Uma terceira exigência de Jesus
pede aos candidatos a discípulos a renúncia aos bens. Os bens, a procura da
riqueza são, para mim, uma prioridade fundamental? O que é mais importante: a
partilha, a solidariedade, a fraternidade, o amor aos outros, ou o ter mais, o
juntar mais?
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