“subiu a um monte para orar, a sós”
19º DOMINGO DO TEMPO COMUM- ANO A
A liturgia do 19º Domingo do Tempo Comum tem como tema fundamental a revelação de Deus. Fala-nos de um Deus apostado em percorrer, de braço dado com os homens, os caminhos da história.
A primeira leitura convida os crentes a regressarem às origens da sua fé e do seu compromisso, a fazerem uma peregrinação ao encontro do Deus da comunhão e da Aliança; e garante que o crente não encontra esse Deus nas manifestações espetaculares, mas na humildade, na simplicidade, na interioridade.
O Evangelho apresenta-nos uma reflexão sobre a caminhada histórica dos discípulos, enviados à “outra margem” a propor aos homens o banquete do Reino. Nessa “viagem”, a comunidade do Reino não está sozinha, à mercê das forças da morte: em Jesus, o Deus do amor e da comunhão vem ao encontro dos discípulos, estende-lhes a mão, dá-lhes a força para vencer a adversidade, a desilusão, a hostilidade do mundo. Os discípulos são convidados a reconhecê-l’O, a acolhê-l’O e a aceitá-l’O como “o Senhor”.
A segunda leitura sugere que esse Deus, apostado em vir ao encontro dos homens e em revelar-lhes o seu rosto de amor e de bondade, tem uma proposta de salvação que oferece a todos. Convida-nos a estarmos atentos às manifestações desse Deus e a não perdermos as oportunidades de salvação que Ele nos oferece.
LEITURA I – 1 Reis 19,9a.11-13a
A nossa leitura situa-nos no Reino do Norte (Israel), durante o reinado de Acab (873-853 a.C.). No país multiplicam-se os lugares sagrados onde se adoram deuses estrangeiros. De acordo com 1 Re 16,31-33, o próprio rei – influenciado por Jezabel, a sua esposa fenícia – erige altares a Baal e Asserá e presta culto a esses deuses. Por detrás deste quadro está, provavelmente, a tentativa de Acab em abrir Israel a outras nações, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial. Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel.
Contra estes desvios à fé tradicional, levanta-se o profeta Elias. Ele aparece como o representante desses israelitas fiéis, que recusam a substituição de Jahwéh por deuses estranhos ao universo religioso de Israel. Num episódio dramático cuja memória é conservada no primeiro Livro dos Reis, o próprio Elias desafia os profetas de Baal para um duelo religioso, que termina com o massacre de quatrocentos profetas de Baal, no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma representação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.
O texto que nos é proposto como primeira leitura aparece, precisamente, na sequência do massacre do Carmelo. Jezabel, informada da morte dos profetas de Baal, promete matar Elias; e o profeta foge para o sul, a fim de salvar a vida. Atravessa o Reino do Sul (Judá), passa por Beer-Sheva e dirige-se para o deserto, em direção ao monte Horeb/Sinai (cf. 1 Re 19,1-8). É aí que o nosso texto nos situa.
A peregrinação de Elias ao Sinai/Horeb é uma espécie de regresso aos inícios. Com Elias, é todo o Israel – esse Israel infiel à aliança, que se deixou seduzir pelos cultos cananeus – que regressa às suas origens, ao lugar do seu compromisso inicial com Deus. Israel precisa de se encontrar de novo com Jahwéh e redescobrir a sua vocação de Povo da Aliança.
A cena descrita pelo texto que nos é proposto contém uma clara alusão à revelação de Deus a Moisés (cf. Ex 19,16-17; 33,18-23; 34,5-8): assim como Deus Se revelou a Moisés no Sinai/Horeb, assim também Se revela a Elias no mesmo lugar. Dessas revelações resulta, para um e para outro, um compromisso com a Aliança… Depois de receber a revelação de Jahwéh, Moisés torna-se o instrumento através do qual Deus propõe ao Povo uma Aliança; e Elias, depois de receber a revelação de Jahwéh, torna-se o instrumento através do qual Deus relança uma Aliança ameaçada de ruptura, devido à infidelidade do Povo.
Há, no entanto, uma diferença significativa… A Moisés, Deus revelou-Se no meio de fenômenos naturais aterrorizadores (“trovões e relâmpagos”, uma “pesada nuvem”, o “fumo” que envolvia toda a montanha, o “fogo”, o terremoto que fazia a montanha tremer – Ex 19,16-17). A Elias, Deus não Se revelou nos elementos típicos das manifestações teofânicas (o vento forte que “fendia as montanhas e quebrava os rochedos”, o terremoto, o fogo); mas revelou-Se na “brisa ligeira”. Diante da manifestação de Deus, Elias cumpriu o ritual adequado: “cobriu o rosto com o manto”, já que o homem não pode contemplar face a face o mistério de Deus.
A intenção dos autores deuteronomistas não parece ser polemizar contra a catequese tradicional das manifestações de Deus… Parece ser, antes, distanciar Jahwéh de Baal, considerado na mitologia cananéia o deus do trovão e da tempestade, que fazia a terra tremer com a sua voz poderosa. A intenção fundamental do autor seria mostrar que Jahwéh não Se manifesta em fenômenos assombrosos e espetaculares, mas sim na intimidade, na tranqüilidade, no silêncio que ecoa no coração de quem procura a comunhão com Deus.
O encontro com esse Deus que Se manifesta no silêncio, na intimidade, na simplicidade, na humildade, na interioridade do coração do homem leva à ação (num desenvolvimento que o texto que nos é hoje proposto pela liturgia não apresenta, Jahwéh confia a Elias uma missão profética – cf. 1 Re 19,15-18): o encontro com Deus conduz sempre o homem a um empenho concreto e a um compromisso com o mundo.
Com Elias, Israel é convidado a voltar aos inícios, a redescobrir as suas raízes de Povo de Deus, a reencontrar o rosto de Jahwéh (que é muito diferente dos rostos desses deuses que, todos os dias, seduzem o Povo e o afastam dos seus compromissos), a renovar a sua Aliança com Ele, a escutar a voz de Deus que ecoa no coração de cada membro da comunidade, a aceitar dar testemunho de Deus e dos seus projetos no meio do mundo.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode ter em conta os seguintes dados:
• Quem é Deus? Como é Deus? É possível provar, sem margem para dúvidas, a existência de Deus? Estas e outras perguntas já as fizemos, certamente, a nós próprios ou a alguém. Todos nós somos pessoas a quem Deus inquieta: há um “qualquer coisa” no coração do homem que o projeta para o transcendente, que o leva a interrogar-se sobre Deus e a tentar descobrir o seu rosto… No entanto, Deus não é evidente. Se confiarmos apenas nos nossos sentidos, Deus não existe: não conseguimos vê-l’O com os nossos olhos, sentir o seu cheiro ou tocá-l’O com as nossas mãos. Mais ainda: nenhum instrumento científico, nenhum microscópio eletrônico, nenhum radar espacial detectou jamais qualquer sinal sensível de Deus. Talvez por isso o soviético Yuri Gagarin, o primeiro homem do espaço, mal pôs os pés na terra apressou-se a afirmar que não tinha encontrado na estratosfera qualquer marca de Deus… O texto que nos é proposto convida todos aqueles que estão interessados em Deus, a descobri-l’O no silêncio, na simplicidade, na intimidade… É preciso calar o ruído excessivo, moderar a atividade desenfreada, encontrar tempo e disponibilidade para consultar o coração, para interrogar a Palavra de Deus, para perceber a sua presença e as suas indicações nos sinais (quase sempre discretos) que Ele deixa na nossa história e na vida do mundo… Tenho consciência de que preciso encontrar tempo para “buscar Deus”? De acordo com a minha experiência de procura, onde é que eu O encontro mais facilmente: na agitação e nos gestos espetaculares, ou no silêncio, na humildade e na simplicidade?
• Hoje como ontem, há outros deuses, outras propostas de felicidade, que nos procuram seduzir e atrair… Há deuses que gritam alto (em todos os canais de televisão?) a sua capacidade de nos oferecer uma felicidade imediata; há deuses que, como um terremoto, fazem tremer as nossas convicções e lançam por terra os valores que consideramos mais sagrados; há deuses que, com a força da tempestade, nos arrastam para atitudes de egoísmo, de prepotência, de injustiça, de comodismo, de ódio… O nosso texto convida-nos a uma peregrinação ao encontro das nossas raízes, dos nossos compromissos batismais… Temos, permanentemente, de partir ao encontro do Deus que fez conosco uma Aliança e que nos chama todos os dias à comunhão com Ele… Aceito percorrer este caminho de conversão? Encontro tempo para redescobrir o Deus da Aliança com quem me comprometi no dia do meu Batismo? Quais são os falsos deuses que, às vezes, me afastam da comunhão com o verdadeiro Deus?
• Na história de Elias (e na história de qualquer profeta), a descoberta de Deus leva ao compromisso, à ação, ao testemunho… Depois de encontrar o Deus da Aliança, aceito comprometer-me com Ele? Estou disposto a cumprir a missão que Ele me confia no mundo? Estou disponível para O testemunhar no meio dos meus irmãos?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)
Refrão: Mostrai-nos, Senhor, o vosso amor
e dai-nos a vossa salvação.
Deus fala de paz ao seu povo e aos seus fiéis
e a quantos de coração a Ele se convertem.
A sua salvação está perto dos que O temem
e a sua glória habitará na nossa terra.
Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade,
abraçaram-se a paz e a justiça.
A fidelidade vai germinar da terra
e a justiça descerá do Céu.
O Senhor dará ainda o que é bom
e a nossa terra produzirá os seus frutos.
A justiça caminhará à sua frente
e a paz seguirá os seus passos.
LEITURA II – Rom 9,1-5
Depois de apresentar, nos primeiros oito capítulos da Carta aos Romanos, uma catequese sobre a salvação (apesar do pecado que submerge todos os homens e desfeia o mundo Deus, na sua bondade, oferece gratuitamente a todos os homens, através de Jesus Cristo, a salvação), Paulo vai referir-se, agora, a um problema particular, mas que o preocupa a ele e a todos os cristãos: que acontecerá a Israel que, apesar de ser o Povo eleito de Deus e o Povo da Promessa, recusou essa salvação que Cristo veio oferecer? Israel ficará, devido a essa recusa, definitivamente à margem da salvação? Na verdade, Deus jurou ao seu Povo, em vários momentos da história, libertá-lo e salvá-lo; ora, se Israel ficar excluído da salvação, podemos dizer que Deus falhou? Podemos continuar a confiar na sua Palavra? É a estas questões que, genericamente, Paulo procura responder nos capítulos 9-11 da Carta aos Romanos.
O texto que nos é proposto como segunda leitura deste domingo é a introdução a esta questão.
Pelo texto perpassa a grande tristeza e dor que a questão levanta no coração de Paulo. O problema da salvação de Israel incomoda-o tanto que ele até aceitaria tornar-se “anátema” (no Antigo Testamento, o que era “anátema” devia ser totalmente destruído; no Novo Testamento, “anátema” equivale a “maldito” e implicava, quer a exclusão da comunidade do Povo de Deus, quer a maldição divina) e ser separado de Cristo, se isso servisse para que o Povo judeu aceitasse a salvação que Deus lhe oferece. Trata-se de expressões que são para levar a sério? Digamos, apenas, que são afirmações excessivas, mas que dão bem a ideia do sofrimento de Paulo e da sua preocupação com a sorte do seu Povo.
Na verdade, Israel foi adotado por Deus, é o Povo da Aliança, da Lei, do culto, das Promessas, dos antepassados que escutaram Deus e viveram em comunhão com Ele… Israel é, até, o Povo do qual nasceu Cristo; ora, esse Cristo que “está acima de todas as coisas” deixará o seu Povo “segundo a carne” entregue à morte?
A leitura que nos é hoje proposta não vai mais além; mas, no conjunto da sua reflexão sobre esta questão (cf. Rom 9,1-11,36), Paulo mostrará que Deus é eternamente fiel às suas promessas e que nunca falha… Ele tem os seus planos; e a desobediência atual de Israel deverá fazer parte dos planos de Deus. Paulo acabará, no final da secção, por manifestar a sua convicção de que a misericórdia de Deus se derramará também sobre Israel.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, ter em conta os seguintes desenvolvimentos:
• Uma das coisas que impressiona, neste texto, é a forma como Paulo sente a infelicidade do seu Povo. A obstinação de Israel em recusar a salvação fá-lo sentir “uma grande tristeza e uma dor contínua” no coração. Todos nós conhecemos irmãos – mesmo batizados – que recusam a salvação que Deus oferece ou que, pelo menos, vivem numa absoluta indiferença face à vida plena que Deus lhes quer dar. Como nos sentimos diante deles? Ficamos indiferentes e achamos que não é nada conosco? Deixamo-nos contaminar por essa indiferença e escolhemos, como eles, caminhos de egoísmo e de auto-suficiência? Ou sentimos que é nossa responsabilidade continuar a testemunhar diante deles os valores em que acreditamos e que conduzem à vida plena e verdadeira?
• Este texto propõe-nos também uma reflexão sobre as oportunidades perdidas… Israel, apesar de todas as manifestações da bondade e do amor de Deus que conheceu ao longo da sua caminhada pela história, acabou por se instalar numa auto-suficiência que não lhe permitiu acompanhar o ritmo de Deus, nem descobrir os novos desafios que o projeto da salvação de Deus faz, em cada fase, aos homens. O exemplo de Israel faz-nos pensar no nosso compromisso com Deus… Em primeiro lugar, mostra-nos a importância de não nos instalarmos num esquema de vivência medíocre da fé e sugere que o “sim” a Deus do dia do nosso batismo precisa de ser renovado em cada dia da nossa vida… Em segundo lugar, sugere que o cristão não pode instalar-se nas suas certezas e auto-suficiências, mas tem de estar atento aos desafios, sempre renovados, de Deus… Em terceiro lugar, sugere que o ter o nome inscrito no livro de registros da nossa paróquia não é um certificado de garantia de salvação (a salvação passa sempre pela adesão sempre renovada aos dons de Deus).
ALELUIA – Salmo 129,5
Aleluia. Aleluia.
Eu confio no Senhor,
a minha alma espera na sua palavra.
EVANGELHO – Mt 14,22-33
No passado domingo, Jesus foi-nos apresentado como o novo Moisés, que conduz “ao deserto” um povo de coração escravo. Aí, liberta-o da opressão do egoísmo, ao mostrar-lhe que os bens são um dom de Deus, destinados a ser partilhados com todos os homens. Nasce, assim, a comunidade do Reino – isto é, essa comunidade fraterna de amor e de partilha, que se senta à mesa de Deus e que d’Ele recebe vida em abundância (cf. Mt 14,13-21).
O texto do Evangelho que hoje nos é proposto vem na sequência desse episódio. Mateus começa por observar que, depois desses sucessos, Jesus “obrigou os discípulos a subir para o barco e a esperá-l’O na outra margem, enquanto Ele despedia a multidão” (Mt 14,22). Esta nota pode indicar que Jesus quis arrefecer o entusiasmo excessivo dos discípulos (o autor do quarto Evangelho, a propósito do mesmo episódio, refere que Jesus Se retirou sozinho para o monte, pois sabia que “viriam arrebatá-l’O para O fazerem rei” – Jo 6,15).
O episódio situa-nos na área do lago de Tiberíades ou da Genesaré, esse lago de água doce com 21 quilômetros de comprimento e 12 de largura situado na Galileia e que é o grande reservatório de água doce da Palestina.
Para os judeus, o mar – e o lago de Tiberíades ou de Genesaré é considerado, para todos os efeitos, um “mar” – era o lugar onde habitavam os monstros, os demônios e todas as forças que se opunham à vida e à felicidade do homem. Na perspectiva da teologia judaica, no mar o homem estava à mercê das forças demoníacas; e só o poder de Deus podia salvá-lo…
Recordemos, ainda, que o nosso texto está incluído numa secção (cf. Mt 13,1-17,27) do Evangelho segundo Mateus, a que poderíamos chamar “instrução sobre o Reino”. Aí, Mateus põe Jesus a dirigir-Se sobretudo aos discípulos e a instruí-los sobre os valores e os mistérios do Reino. É neste contexto de catequese sobre o Reino que devemos situar o episódio que hoje nos é proposto.
Lembremos, finalmente, que o Evangelho segundo Mateus – escrito durante a década de 80 – se destina a uma comunidade cristã que já esqueceu o seu entusiasmo inicial por Jesus e pelo seu Evangelho e que vive uma fé cômoda, instalada, pouco exigente. Para os crentes, avizinham-se grandes contrariedades e perseguições… A comunidade só poderá subsistir se confiar em Jesus, na sua presença, na sua proteção.
Depois de despedir a multidão e de obrigar os discípulos a embarcar para a outra margem, Jesus “subiu a um monte para orar, a sós”. Mateus só se refere à oração de Jesus por duas vezes: aqui e no episódio do Getsemani (cf. Mt 26,36): em ambos os casos, a oração precede um momento de prova para os discípulos.
Enquanto Jesus está em diálogo com o Pai, os discípulos estão sozinhos, em viagem pelo lago. Essa viagem, no entanto, não é fácil nem serena… É de noite; o barco é açoitado pelas ondas e navega dificilmente, com vento contrário. Os discípulos estão inquietos e preocupados, pois Jesus não está com eles…
O quadro refere-se, certamente, à situação da comunidade a que Mateus destina o seu Evangelho (e que não será muito diferente da situação de qualquer comunidade cristã, em qualquer tempo e lugar). A “noite” representa as trevas, a escuridão, a confusão, a insegurança em que tantas vezes “navegam” através da história os discípulos de Jesus, sem saberem exatamente que caminhos percorrer nem para onde ir… As “ondas” que açoitam o barco representam a hostilidade do mundo, que bate continuamente contra o barco em que viajam os discípulos… Os “ventos contrários” representam a oposição, a resistência do mundo ao projeto de Jesus – esse projeto que os discípulos testemunham… Quantas vezes, na sua viagem pela história, os discípulos de Jesus se sentem perdidos, sozinhos, abandonados, desanimados, desiludidos, incapazes de enfrentar as tempestades que as forças da morte e da opressão (o “mar”) lançam contra eles…
É aí, precisamente, que Jesus manifesta a sua presença. Ele vai ao encontro dos discípulos “caminhando sobre o mar” (vers. 26). No contexto da catequese judaica, só Deus “caminha sobre o mar” (Job 9,8b; 38,16; Sal 77,20); só Ele faz “tremer as águas e agitarem-se os abismos” (Sal 77,17); só Ele acalma as ondas e as tempestades (cf. Sal 107,25-30). Jesus é, portanto, o Deus que vela pelo seu Povo e que não deixa que as forças da morte (o “mar”) o destruam. A expressão “sou Eu” reproduz a fórmula de identificação com que Deus se apresenta aos homens no Antigo Testamento (cf. Ex 3,14; Is 43,3.10-11); e a exortação “tende confiança, não temais” transmite aos discípulos a certeza de que nada têm a temer porque Jesus, o Deus que vence as forças da morte e da opressão acompanha a par e passo a sua caminhada histórica e dá-lhes a força para vencer a adversidade, a solidão e a hostilidade do mundo.
Depois, Mateus narra uma cena exclusiva, que não é apresentada por nenhum outro evangelista: a do diálogo entre Pedro e Jesus (vers. 28-33). Tudo começa com o pedido de Pedro: “se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. Pedro sai do barco e vai, de fato, ao encontro de Jesus; mas, assustando-se com a violência do vento, começa a afundar-se e pede a Jesus que o salve. Assim acontece, embora Jesus censure a sua pouca fé e as suas dúvidas.
Pedro é, aqui, o porta-voz e o representante dessa comunidade dos discípulos que vai no barco (a Igreja). O episódio reflete a fragilidade da fé dos discípulos, sempre que têm de enfrentar as forças da opressão, do egoísmo, da injustiça. Jesus comunicou aos seus o poder de vencerem todos os poderes deste mundo que se opõem à vida, à libertação, à realização, à felicidade dos homens. No entanto, enquanto enfrentam as ondas do mundo hostil e os ventos soprados pelas forças da morte, os discípulos debatem-se entre a confiança em Jesus e o medo. Mateus refere-se, desta forma, à experiência de muitos discípulos (da sua comunidade e das comunidades cristãs de todos os tempos e lugares) que seguem a Jesus de forma decidida, mas que se deixam abalar quando chegam as perseguições, os sofrimentos, as dificuldades… Então, começam a afundar-se e a ser submergidos pelo “mar” da morte, da frustração, do desânimo, da desilusão… No entanto, Jesus lá está para lhes estender a mão e para os sustentar.
Finalmente, a desconfiança dos discípulos transforma-se em fé firme: “Tu és verdadeiramente o Filho de Deus” (vers. 33). É para aqui que converge todo o relato. Esta confissão reflete a fé dos verdadeiros discípulos, que vêem em Jesus o Deus que vence o “mar”, o Senhor da vida e da história que acompanha a caminhada dos seus, que lhes dá a força para vencer as forças da opressão e da morte, que lhes estende a mão quando eles estão desanimados e com medo e que não os deixa afundar.
Quando é que os discípulos fizeram a descoberta de que Jesus era o Deus vencedor do pecado e da morte? Naturalmente, após a Páscoa, quando perceberam plenamente o mistério de Jesus (perceberam que Ele não era “um fantasma”), sentiram a sua presença no meio da comunidade reunida, experimentaram a sua ajuda nos momentos difíceis da caminhada, sentiram que Ele lhes transmitia a força de enfrentar as adversidades e a hostilidade do mundo, sentiram que Ele estava lá, estendendo-lhes a mão, nos momentos de fraqueza, de dificuldade, de falta de fé. É esta mesma experiência que Mateus nos convida também a fazer.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir dos seguintes elementos:
• O Evangelho deste domingo é, antes de mais, uma catequese sobre a caminhada histórica da comunidade de Jesus, enviada à “outra margem”, a convidar todos os homens para o banquete do Reino e a oferecer-lhes o alimento com que Deus mata a fome de vida e de felicidade dos seus filhos. Estamos dispostos a embarcar na aventura de propor a todos os homens o banquete do Reino? Temos consciência de que nos foi confiada a missão de saciar a fome do mundo? Aqueles que são deixados à margem dessa mesa onde se jogam os interesses e os destinos do mundo, que têm fome e sede de vida, de amor, de esperança, encontram em nós uma proposta credível e coerente que aponta no sentido de uma realidade de plenitude, de realização, de vida plena?
• A caminhada histórica dos discípulos e o seu testemunho do banquete do Reino não é um caminho fácil, feito no meio de aclamações das multidões e dos aplausos unânimes dos homens. A comunidade (o “barco”) dos discípulos tem de abrir caminho através de um mar de dificuldades, continuamente batido pela hostilidade dos adversários do Reino e pela recusa do mundo em acolher os projetos de Jesus. Todos os dias o mundo nos mostra – com um sorriso irônico – que os valores em que acreditamos e que procuramos testemunhar estão ultrapassados. Todos os dias o mundo insiste em provar-nos – às vezes com agressividade, outras vezes com comiseração – que só seremos competitivos e vencedores quando usarmos as armas da arrogância, do poder, do orgulho, da prepotência, da ganância… Como nos colocamos face a isto? É possível desempenharmos o nosso papel no mundo, com rigor e competência, sem perdermos as nossas referências cristãs e sem trairmos o Reino?
• Para que seja possível viver de forma coerente e corajosa na dinâmica do Reino, os discípulos têm de estar conscientes da presença de Jesus, o Senhor da vida e da história, que as forças do mal nunca conseguirão vencer nem domesticar. Ele diz aos discípulos, tantas vezes desanimados e assustados face às dificuldades e às perseguições: “tende confiança. Sou Eu. Não temais”. Os discípulos sabem, assim, que não há qualquer razão para se deixarem afundar no desespero e na desilusão. Mesmo quando a sua fé vacila, eles sabem que a mão de Jesus está lá, estendida, para que eles não sejam submergidos pelas forças do egoísmo, da injustiça, da morte. Nada nem ninguém poderá roubar a vida àqueles que lutam para instaurar o Reino. Jesus, vivo e ressuscitado, não deixa nunca que sejamos vencidos.
• A oração de Jesus (que em Mateus antecede os momentos de prova) convida-nos a manter um diálogo íntimo com o Pai. É nesse diálogo que os discípulos colherão o discernimento para perceberem os caminhos de Deus, a força para seguir Jesus, a coragem para enfrentar a hostilidade do mundo.
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