Qual é o verdadeiro culto que Deus espera?
3º DOMINGO DA QUARESMA- ANO B
A liturgia do 3º Domingo da Quaresma dá-nos conta da eterna preocupação de Deus em conduzir os homens ao encontro da vida nova. Nesse sentido, a Palavra de Deus que nos é proposta apresenta sugestões diversas de conversão e de renovação.
Na primeira leitura, Deus oferece-nos um conjunto de indicações (“mandamentos”) que devem balizar a nossa caminhada pela vida. São indicações que dizem respeito às duas dimensões fundamentais da nossa existência: a nossa relação com Deus e a nossa relação com os irmãos.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica de Deus… É preciso que descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade sem fim não está numa lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância, mas está na lógica da cruz – isto é, no amor total, no dom da vida até às últimas consequências, no serviço simples e humilde aos irmãos.
No Evangelho, Jesus apresenta-Se como o “Novo Templo” onde Deus Se revela aos homens e lhes oferece o seu amor. Convida-nos a olhar para Jesus e a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar.
LEITURA I – Ex 20,1-17
O texto que hoje nos é proposto como primeira leitura faz parte de um conjunto de tradições que referem uma Aliança entre Jahwéh e Israel (cf. Ex 19-40). Essa Aliança é situada num monte, algures no deserto do Sinai, o mesmo monte onde Jahwéh se havia revelado a Moisés.
No texto bíblico não temos indicações geográficas suficientes para identificar o monte da Aliança. Em si, o nome “Sinai” designa uma enorme península de forma triangular, com mais ou menos 420 km de extensão norte/sul, estendendo-se entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A norte, junto do Mediterrâneo, o Sinai apresenta uma faixa arenosa de 25 km de largura; mas à medida que descemos para sul, o território torna-se mais acidentado, com montanhas que chegam a atingir 2400 m de altura. A península inteira é um deserto árido; não há, praticamente, vegetação (exceto em alguns pequenos oásis) e as comunicações são difíceis. Nesta enorme extensão de areia e rochas, é difícil situar o “monte da Aliança”. Contudo, uma tradição cristã tardia (séc. IV d. C.) identifica o “monte” com o Gebel Musah (o “monte de Moisés”), um monte com 2244 m de altitude, situado a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da Aliança” com este lugar levante problemas, o Gebel Musah é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.
A Aliança entre Jahwéh e Israel, celebrada no Sinai, vai ser apresentada pelos catequistas de Israel através de uma estrutura literária que é muito semelhante aos formulários jurídicos conhecidos no mundo antigo para apresentar os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um “senhor” e o seu “vassalo”. Nesses formulários, depois de recordar ao “vassalo” a sua ação, a sua generosidade, os seus benefícios, o “senhor” apresentava as “cláusulas da Aliança” – isto é, a lista das obrigações que o “vassalo” assumia para com o seu “senhor” (obrigações que o “vassalo” devia cumprir fielmente).
De entre as “cláusulas da Aliança” do Sinai, sobressai um bloco especial, onde são apresentadas as dez obrigações fundamentais que Israel vai assumir diante do seu Deus: os “dez mandamentos” ou as “dez palavras”. É esse texto que a nossa primeira leitura nos apresenta. Aí está, verdadeiramente, o “coração” da Aliança; aí se define o caminho que Israel deve percorrer para ser o Povo de Deus.
A lista dos “dez mandamentos” é uma lista irregular, com mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não matarás”; não roubarás”) e outros mais desenvolvidos, contendo um comentário explicativo (cf. Ex 20,4.17), uma motivação (cf. Ex 20,7) ou uma promessa (cf. Ex 20,12). Por vezes Deus fala em primeira pessoa (cf. Ex 20,2.5-6); noutras, fala-se de Deus em terceira pessoa (cf. Ex 20,7.11.12). Dois mandamentos são formulados positivamente (cf. Ex 20,8: “lembra-te”; Ex 20,12: “honra”); todos os outros são formulados negativamente (“não matarás”; “não roubarás”). Estas irregularidades significam que o “decálogo” sofreu, através dos séculos, por motivos pastorais e catequéticos, retoques, acrescentos, comentários, modificações.
É provável que Moisés tenha uma certa relação com estas leis que estão no centro da Aliança entre Deus e o seu Povo; mas o texto, na sua forma atual, não vem de Moisés. É, certamente, um texto muito trabalhado, que sofreu muitas elaborações ao longo dos séculos. Ainda que esta lista de preceitos possa lembrar algumas listas de proibições encontradas na Babilônia e no Egito, ocupa um lugar à parte no conjunto dos formulários legais dos povos do Crescente Fértil: é um núcleo legal sóbrio e equilibrado, despojado de tudo aquilo que nos outros povos é magia, superstição, tabu.
O “decálogo” abarca os dois vetores fundamentais da existência humana: a relação do homem com Deus e a relação que cada homem estabelece com o seu próximo.
Os primeiros quatro mandamentos dizem respeito à relação que Israel deve estabelecer com Deus (vers. 3-11). Dois, sobretudo, são de uma tremenda originalidade (o mandamento que obriga Israel a não ter outro Deus, outro Senhor, outra referência; e o mandamento que proíbe construir imagens de Deus), pois não encontram paralelo em nenhuma das religiões antigas que conhecemos.
A questão essencial que sobressai, nestes quatro mandamentos, é esta: Jahwéh deve ser a referência fundamental da vida do Povo, o centro à volta do qual se constrói toda a existência de Israel. Nada nem ninguém deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que só a Deus pertence. É preciso que Israel reconheça que só em Jahwéh está a vida e a salvação (vers. 3: “não terás nenhum deus além de mim”); é necessário que Israel reconheça a absoluta transcendência de Jahwéh – que não pode ser reproduzida em qualquer criatura feita pelo homem – e não se prostre perante obras criadas pela mão do homem (vers. 4: não farás para ti qualquer imagem esculpida… não hás-de prostrar-te diante delas, nem prestar-lhes culto”); é preciso que Israel reconheça que não deve manipular Deus e usá-lo em apoio de projeto e interesses puramente humanos (vers. 7: “não hás-de invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio do que não tem fundamento”); é preciso que Israel reconheça que só o Senhor é o dono do tempo e que reserve espaço para o encontro e o louvor do Senhor (vers. 8: “hás-de lembrar-te do dia de sábado, a fim de o santificares”).
Os outros seis mandamentos dizem respeito às relações comunitárias (vers. 12-17). Procuram inculcar o respeito absoluto pelo próximo – a sua vida, os seus direitos na comunidade, os seus bens. São “a magna carta da liberdade, da justiça, do respeito pela pessoa e pela sua dignidade”. Recomendam que cada membro da comunidade reconheça a sua dependência dos outros e aceite a sua vinculação a uma família e a uma cultura (vers. 12: “honra teu pai e tua mãe”); pedem que cada membro do Povo de Deus respeite a vida do irmão (vers. 13: “não matarás”); recomendam que seja defendida a família e respeitadas as relações familiares (vers. 14: “não cometerás adultério”); exigem que se respeite absolutamente quer os bens, quer a própria liberdade dos outros membros da comunidade (vers. 15: “não tomarás para ti” – o que pode referir-se a pessoas ou a coisas. Pode traduzir-se por “não roubarás”, mas também por “não privarás de liberdade o teu irmão, não o reduzirás à escravidão”); pedem o respeito pelo bom nome e pela fama do irmão, nomeadamente dando sempre um testemunho verdadeiro diante do tribunal e garantindo a fiabilidade de uma justiça que é a base da correta ordem social (vers. 16: “não levantarás falso testemunho contra o teu próximo”); exigem o respeito pelos “bens básicos” que asseguram ao irmão a sua subsistência e procuram evitar que o coração dos membros da comunidade do Povo de Deus seja dominado pela cobiça e pelos instintos egoístas (vers. 17: “não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher dele, nem o criado ou a criada, o boi ou o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”).
Porque é que Deus apresentou estas propostas a Israel e lhe recomendou este caminho? Qual o interesse de Deus em que Israel viva de acordo com as regras aqui apresentadas? O que é que Deus “tem a ganhar” com a fidelidade do Povo a estas normas?
A resposta a esta questão está na primeira afirmação do Decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão” (vers. 2). Jahwéh, o Deus libertador, está interessado em que Israel se liberte definitivamente da escravidão e se torne um Povo livre e feliz. Os “mandamentos” são, precisamente, um contributo de Deus para isso. Ao colocar estes “sinais” no percurso do seu Povo, Jahwéh não está a limitar a liberdade de Israel, mas está a propor ao Povo um caminho de liberdade e de vida plena. Os mandamentos pretendem ajudar Israel a deixar a escravidão do egoísmo, da autossuficiência, da injustiça, do comodismo, das paixões, da cobiça, de exploração… Os mandamentos nascem do amor de Jahwéh a Israel e procuram indicar ao Povo o caminho para ser feliz. A resposta do Povo a essa preocupação de Deus será aceitar as indicações e viver de acordo com esses preceitos. Israel responderá, assim, ao amor de Deus e será feliz. É essa Aliança que Jahwéh quer fazer com o seu Povo, é esse o “interesse” de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Os mandamentos que dizem respeito à relação do homem com Deus sublinham a centralidade que Deus deve assumir no coração e na vida do seu Povo. Na vida de todos os dias somos, com frequência, seduzidos por outros “deuses” – o dinheiro, o poder, os afetos humanos, a realização profissional, o reconhecimento social, os interesses egoístas, as ideologias, os valores da moda – que se tornam o objetivo supremo, no valor último que condiciona os nossos comportamentos, as nossas atitudes e as nossas opções. Com frequência, prescindimos de Deus e instalamo-nos num esquema de orgulho e de autossuficiência que coloca Deus e as suas propostas fora da nossa vida. A Palavra de Deus garante-nos: esse não é um caminho que nos conduza em direção à vida definitiva e à liberdade plena. Neste tempo de Quaresma, somos convidados a voltarmo-nos para Deus e a redescobrirmos o seu papel fundamental na nossa existência… Quais são os “deuses” que nos seduzem mais e que condicionam a nossa vida, as nossas tomadas de posição, as nossas opções? Que espaço é que reservamos, na nossa vida, para o verdadeiro Deus?
• Os mandamentos que dizem respeito à nossa relação com os irmãos convidam-nos a despir esses comportamentos que geram violência, egoísmo, agressividade, cobiça, intolerância, escravidão, indiferença face às necessidades dos outros. Tudo aquilo que atenta contra a vida, a dignidade, os direitos dos nossos irmãos, é algo que gera morte, sofrimento, escravidão, para nós e para todos os que nos rodeiam e é algo que contribui para subverter os projetos de vida e de felicidade que Deus tem para nós e para o mundo. O que é que, nos meus gestos, nas minhas atitudes, nos meus valores, é gerador de injustiça, de sofrimento, de exploração, de escravidão, de morte, para mim e para todos aqueles que me rodeiam?
• O que está aqui em jogo não é o respeitar regras “religiosamente corretas”, o evitar que Deus tenha razões de queixa contra nós, ou o fugir aos castigos divinos; mas é, antes de mais, o construir a nossa própria felicidade. É preciso aprendermos a não ver os “mandamentos” de Deus como propostas reacionárias, descabidas e ultrapassadas, inventados por uma moral obsoleta e antiquada, que apenas servem para limitar a nossa liberdade ou para impedir a nossa autonomia; mas é preciso ver os “mandamentos” como “sinais de trânsito” com os quais Deus, no seu amor e na sua preocupação com a nossa realização plena, nos ajuda a percorrer os caminhos da liberdade e da vida verdadeira.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.
LEITURA II – 1 Cor 1,22-25
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52).
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10). Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.
Um dos graves problemas da comunidade cristã de Corinto era a identificação da experiência cristã com uma escola de sabedoria: os cristãos de Corinto – na linha do que acontecia nas várias escolas de filosofia que infestavam a cidade – viam várias figuras proeminentes do cristianismo primitivo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude da sabedoria e da realização humana. É de crer que os vários adeptos desses vários mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a excelência e a superior sabedoria do mestre escolhido. Ao saber isto, Paulo ficou muito alarmado: esta perspectiva punha em causa o essencial da fé.
Paulo vai esforçar-se, então, por demonstrar aos coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a experiência cristã não é a busca de uma filosofia coerente, brilhante, elegante, que conduza à sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Quem procura na mensagem cristã um sistema lógico, coerente, inquestionável à luz da lógica humana, é porque não percebeu nada do essencial da mensagem cristã, da “loucura da cruz”.
Judeus e gregos, cada um à sua maneira, buscam seguranças. Os judeus procuram milagres que garantam a veracidade da mensagem anunciada; os gregos procuram as belas palavras, a coerência do discurso, a lógica dos argumentos… Na verdade, Jesus não Se apresentou como um Deus espetacular, a exibir o seu poder e as suas qualidades divinas através de gestos estrondosos e milagrosos, como os judeus estavam à espera; nem Se apresentou como o “mestre” iluminado de uma filosofia capaz de se impor pelo brilho das suas premissas e pela sua lógica inatacável, como os gregos gostariam.
A essência da mensagem cristã está na “loucura da cruz” – isto é, na lógica ilógica de um Deus que veio ao encontro da humanidade, que fez da sua vida um dom de amor e que aceitou uma morte maldita para ensinar aos homens que a verdadeira vida é aquela que se coloca integralmente ao serviço dos irmãos, até à morte. No entanto, foi precisamente dessa forma que Deus apresentou aos homens o seu projeto de salvação e de vida definitiva. Na cruz de Jesus manifestou-se, de forma plena, o poder salvador de Deus. Decididamente, considera Paulo, a lógica de Deus não é exatamente igual à lógica dos homens.
O caminho cristão não é uma busca de sabedoria humana, mas uma adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se de forma humanamente desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• O nosso texto convida-nos a descobrir e a interiorizar a lógica de Deus, que é bem diferente da lógica dos homens. Os homens sentem-se mais seguros e confortáveis diante de líderes vencedores, que se impõem pela força e que exibem o seu poder através de gestos espetaculares; e Deus aparece-lhes na figura de um obscuro carpinteiro galileu, condenado pelas autoridades constituídas, abandonado por amigos e discípulos, escarnecido pelas multidões, e morto numa cruz fora dos muros da cidade. Os homens gostam de ser convencidos por projetos intelectualmente brilhantes, que apresentem argumentos fortes e uma lógica inquestionável; e Deus oferece-lhes um projeto de salvação que passa pela morte na cruz, em plena e radical contradição com todos os esquemas mentais e toda a lógica humana. O apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica de Deus… É preciso que descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade sem fim não está numa lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância, mas está no amor total, no dom da vida até às últimas consequências, no serviço simples e humilde aos irmãos.
• A força e a “sabedoria de Deus” manifestam-se na fragilidade, na pequenez, na obscuridade, na pobreza, na humildade. Sendo assim, não nos parecem ridículas, descabidas e pretensiosas as nossas poses de importância, de autoridade, de protagonismo, de êxito humano?
• “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Aqueles que têm responsabilidade no anúncio do Evangelho devem anunciar a mensagem com verdade e radicalidade, renunciando à tentação de a suavizar, de a tornar mais “politicamente correta”, de a tornar menos radical e interpelativa. Às vezes, o invólucro “brilhante” com que envolvemos a Palavra torna-a mais atrativa, mas menos questionante e, portanto, menos transformadora.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo 3,16
EVANGELHO – Jo 2,13-25
O episódio que hoje nos é proposto aparece na “secção introdutória” do Evangelho de João (cf. Jo 1,19-3,36), onde se diz quem é Jesus e se apresentam as grandes linhas programáticas do seu ministério.
A cena situa-nos no Templo de Jerusalém. Trata-se desse Templo majestoso, construído por Herodes para demonstrar as suas boas disposições para com o culto a Jahwéh e para conseguir a benevolência dos judeus. A construção do Templo iniciou-se em 19 a.C. e ficou essencialmente pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos em 63 d.C.). No ano 27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).
João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a festa principal do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria à volta de 55.000 habitantes, chegava a albergar cerca de 125.000 peregrinos nesta altura. No Templo sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros, destinados à celebração pascal.
Neste ambiente, o comércio relacionado com o Templo sofria um espantoso incremento. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais à volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças revertia para o sumo-sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam, diretamente, à família do sumo-sacerdote. Vendiam-se os animais para os sacrifícios e vários outros produtos destinados à liturgia do Templo. Havia, também, as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois não era permitido que moedas com a efígie de imperadores pagãos conspurcassem o tesouro do Templo). Este comércio constituía uma mais valia para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.
Vai ser neste contexto que Jesus vai realizar o seu gesto profético.
Os profetas de Israel tinham, em diversas situações, criticado o culto sacrificial que Israel oferecia a Deus, considerando-o como um conjunto de ritos estéreis, vazios e sem significado, uma vez que não eram expressão verdadeira de amor a Jahwéh; tinham, inclusive, denunciado a relação do culto com a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jer 7,21-26). As considerações proféticas tinham, de alguma forma, consolidado a ideia de que a chegada dos tempos messiânicos implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a Jahwéh no Templo. O profeta Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do universo” – Zac 14,21).
O gesto que o Evangelho deste domingo nos relata deve entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no chicote de cordas, expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (vers. 14-16), está a revelar-Se como “o messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos.
No entanto, Jesus vai bem mais longe do que os profetas vétero-testamentários. Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Jahwéh (João é o único dos evangelistas a referir este pormenor), Jesus mostra que não propõe apenas uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo de Jerusalém era, antes de mais, algo sem sentido: ao transformar a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus… Mas, além disso, o culto celebrado no Templo era algo de nefasto: em nome de Deus esse culto criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai casa de comércio” (vers. 16).
Os líderes judaicos ficam indignados. Quais são as credenciais de Jesus para assumir uma atitude tão radical e grave? Com que legitimidade é que Ele se arroga o direito de abolir o culto oficial prestado a Jahwéh?
A resposta de Jesus é, à primeira vista, estranha: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (vers. 19). Recorrendo à figura literária do “mal-entendido” (propõe-se uma afirmação; os interlocutores entendem-na de forma errada; aparece, então, a explicação final, que dá o significado exato do que se quer afirmar), João deixa claro que Jesus não Se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os seus ritos litúrgicos (vers. 20), mas a um outro “Templo” que é o próprio Jesus (“Jesus, porém, falava do Templo do seu corpo” – vers. 21). O que é que isto significa? Jesus desafia os líderes que O questionaram a suprimir o Templo que é Ele próprio, mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez erigido no meio dos homens. Jesus alude, evidentemente, à sua ressurreição. A prova de que Jesus tem autoridade para “proceder deste modo” é que os líderes não conseguirão suprimi-l’O. A ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.
No entanto, o mais notável, aqui, é que Jesus Se apresenta como o “novo Templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a residência de Deus, o lugar onde Deus Se revelava e onde Se tornava presente no meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde Se encontra com os homens e onde Se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a partir de agora, o faz.
ATUALIZAÇÃO
• Como é que podemos encontrar Deus e chegar até Ele? Como podemos perceber as propostas de Deus e descobrir os seus caminhos? O Evangelho deste domingo responde: é olhando para Jesus. Nas palavras e nos gestos de Jesus, Deus revela-Se aos homens e manifesta-lhes o seu amor, oferece aos homens a vida plena, faz-Se companheiro de caminhada dos homens e aponta-lhes caminhos de salvação. Neste tempo de Quaresma – tempo de caminhada para a vida nova do Homem Novo – somos convidados a olhar para Jesus e a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar.
• Os cristãos são aqueles que aderiram a Cristo, que aceitaram integrar a sua comunidade, que comeram a sua carne e beberam o seu sangue, que se identificaram com Ele. Membros do Corpo de Cristo, os cristãos são pedras vivas desse novo Templo onde Deus Se manifesta ao mundo e vem ao encontro dos homens para lhes oferecer a vida e a salvação. Esta realidade supõe naturalmente, para os crentes, uma grande responsabilidade… Os homens do nosso tempo têm de ver no rosto dos cristãos o rosto bondoso e terno de Deus; têm de experimentar, nos gestos de partilha, de solidariedade, de serviço, de perdão dos cristãos, a vida nova de Deus; têm de encontrar, na preocupação dos cristãos com a justiça e com a paz, o anúncio desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os homens. Talvez o facto de Deus parecer tão ausente da vida, das preocupações e dos valores dos homens do nosso tempo tenha a ver com o facto de os discípulos de Jesus se demitirem da sua missão e da sua responsabilidade… O nosso testemunho pessoal é um sinal de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado? A vida das nossas comunidades dá testemunho da vida de Deus? A Igreja é essa “casa de Deus” onde qualquer homem ou qualquer mulher pode encontrar essa proposta de libertação e de salvação que Deus oferece a todos?
• Qual é o verdadeiro culto que Deus espera? Evidentemente, não são os ritos solenes e pomposos, mas vazios, estéreis e balofos. O culto que Deus aprecia é uma vida vivida na escuta das suas propostas e traduzida em gestos concretos de doação, de entrega, de serviço simples e humilde aos irmãos. Quando somos capazes de sair do nosso comodismo e da nossa autossuficiência para ir ao encontro do pobre, do marginalizado, do estrangeiro, do doente, estamos a dar a resposta “litúrgica” adequada ao amor e à generosidade de Deus para conosco.
• Ao gesto profético de Jesus, os líderes judaicos respondem com incompreensão e arrogância. Consideram-se os donos da verdade e os únicos intérpretes autênticos da vontade divina. Instalados nas suas certezas e preconceitos, nem sequer admitem que a denúncia que Jesus faz esteja correta. A sua autossuficiência impede-os de ver para além dos seus projetos pessoais e de descobrir os projetos de Deus. Trata-se de uma atitude que, mais uma vez, nos questiona… Quando nos barricamos atrás de certezas absolutas e de atitudes intransigentes, podemos estar a fechar o nosso coração aos desafios e à novidade de Deus.
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