O Anjo do Senhor anunciou
a Maria?
parte I
O anjo anunciou a Maria rezamos
tantas vezes a Oração do Angelus e lemos o texto da Anunciação a Maria em tantas Festas, que
já teremos a Encarnação do Verbo como um facto histórico adquirido com todos
aqueles pormenores. E se alguém nos provar que Lucas teceu a sua narrativa num
esquema literário anterior e conhecido? Nem perdemos a dimensão do mistério,
nem Deus e o homem saem menos dignificados.
A
audácia de Zefirelli
Quando
o produtor cinematográfico Franco Zefirelli filmou um dos seus mais conhecidos
filmes, o já clássico “Jesus de Nazaré”, muitos pensaram que se tinha atrevido
demasiado. Embora esteja concebida com uma rara sensibilidade, contudo, na cena
da anunciação vê-se uma cândida Maria acordar assustada à meia-noite, e
enquanto um raio de luz, evidentemente sobrenatural, entra pela janela do seu
quarto, a jovem começa um misterioso diálogo sobre a futura conceção de seu
Filho Jesus.
Mas
com quem fala Maria? Aqui entra a grande ousadia de Zefirelli: com ninguém! É
só ela a perguntar e só ela a responder-se, sem a presença de nenhum outro
interlocutor. De uma só penada, o produtor italiano tinha feito desaparecer o
popular anjo Gabriel!
Os
católicos criticaram o filme impiedosamente: era uma irreverência, uma
mutilação inaceitável do evangelho, que atentava contra a verdadeira fé
católica. E o caso não era para menos. Tinha sido suprimido um dos personagens
mais singulares do Novo Testamento: o omnipresente anjo que estamos habituados
a ver em todas as pinturas ou cenas da anunciação. Aquele a quem, desde
crianças, nos habituámos a nomear, quando rezamos o angelus: «O anjo do Senhor
anunciou a Maria...»; o maior comunicador da História.
Sim.
Zefirelli tinha-se atrevido demais.
Como
é que transcendeu
Mas
há um pormenor que sempre chamou a atenção na anunciação do anjo a Maria (Lc
1,26-38). Como é que Lucas, o único evangelista a falar do assunto, conseguiu
informar-se? Ter-lho-á contado a Virgem Maria, protagonista exclusiva, ou
alguém a quem ela o tivesse dito.
Mas
podemos perguntar-nos: andaria Maria a contar as suas intimidades? Condiz com
aquela jovem humilde e calada, que meditava todas as suas coisas guardando-as
em seu coração (Lc 2,19.51), referir o diálogo secreto que ela e o anjo tiveram
em privado? Andaria a fazer alarde com o relato de como Gabriel entrou a voar
pela janela da sua casa, e a felicitou por ser a única mulher privilegiada aos
olhos de Deus, quando nem sequer a José o quis contar?
A
dúvida não reside apenas aqui. Também os elementos da narrativa parecem não ser
muito históricos, mas antes vagos e indefinidos.
Para
que se note a gravidez
Alguém
poderá pensar que o pormenor de o anjo visitar Maria quando a sua parente
Isabel estava grávida de seis meses é muito concreto, e parece ser histórico.
Mas, vendo bem, trata-se de um complemento literário.
Se o anjo dá a Maria o
sinal de que Isabel, «apesar da sua velhice, também está grávida», a razão do
sexto mês é evidente: a gravidez de Isabel deve servir-lhe como testemunho para
acreditar, e os sinais externos de uma gravidez não saltam à vista até ao sexto
mês. Se o anjo tivesse aparecido antes no relato, Maria não teria podido
comprovar a veracidade do sinal.
O
pormenor, pois, não pretende indicar uma data histórica, mas tem apenas a
intenção de nos dizer que as palavras do anjo eram verdadeiras e podiam ser
verificadas.
Por
isso atualmente os biblistas defendem que Lucas, ao narrar o fato da
anunciação, contou algo real, que na verdade tinha ocorrido, mas fê-lo com uma
cena criada por ele.
Um
diálogo repetido
Que
a narração é uma construção artificial nota-se quando constatamos que os
elementos do diálogo entre Gabriel e Maria estão copiados de outros “anúncios”
do Antigo Testamento.
A
saudação «alegra-te» (v.28) está tirada do profeta Sofonias (3,14). A expressão
«O Senhor está contigo» é do livro dos Juízes (6,12), quando um anjo aparece a
Gedeão. «Não temas» (v.30) é a frase que o anjo Gabriel diz a Daniel ao
apresentar-se (Dn 10,12). «A Deus nada é impossível» (v.37) encontramo-lo em
Génesis 18,14 quando um anjo anuncia a Abraão que lhe nascerá um filho.
A
mensagem do anjo a Maria «conceberás e darás à luz um filho ao qual porás o
nome...» (v.31) é a frase do anjo a Agar, escrava de Abraão (Gn 16,11). E a
continuação «ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, o Senhor lhe
dará o trono de David, seu pai, reinará sobre a casa de Jacob pelos séculos, e
o seu reino não terá fim» (v.32-33) alude claramente à profecia de Natan ao rei
David, prometendo-lhe, em nome de Deus, um sucessor no trono e o reinado eterno
da sua linhagem (2 Sm 7,12-16).
Quer
isto dizer que Lucas compilou frases importantes do Antigo Testamento relativas
a intervenções de Deus na História, e com elas teceu um relato sobre a maior
das intervenções divinas na humanidade.
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