14º DOMINGO
DO TEMPO COMUM-
ANO B
A liturgia
deste domingo revela que Deus chama,
continuamente, pessoas para serem testemunhas no mundo do seu projeto de
salvação. Não interessa se essas pessoas são frágeis e limitadas; a força de
Deus revela-se através da fraqueza e da fragilidade desses instrumentos humanos
que Deus escolhe e envia.
A primeira
leitura apresenta-nos um extrato do
relato da vocação de Ezequiel. A vocação profética é aí apresentada como uma
iniciativa de Jahwéh, que chama um “filho de homem” (isto é, um homem “normal”,
com os seus limites e fragilidades) para ser, no meio do seu Povo, a voz de
Deus.
Na segunda
leitura, Paulo assegura aos cristãos
de Corinto (recorrendo ao seu exemplo pessoal) que Deus atua e manifesta o seu
poder no mundo através de instrumentos débeis, finitos e limitados. Na ação do
apóstolo – ser humano, vivendo na condição de finitude, de vulnerabilidade, de
debilidade – manifesta-se ao mundo e aos homens a força e a vida de Deus.
O Evangelho, ao mostrar como Jesus foi recebido pelos seus
conterrâneos em Nazaré, reafirma uma ideia que aparece também nas outras duas
leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na fraqueza e na
fragilidade. Quando os homens se recusam a entender esta realidade, facilmente
perdem a oportunidade de descobrir o Deus que vem ao seu encontro e de acolher
os desafios que Deus lhes apresenta.
LEITURA I –
Ez 2,2-5
Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu
ministério na Babilônia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte dessa
primeira leva de exilados que, em 597
a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilônia.
A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu
entre 593 a.C.
(data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi
conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor e uma nova leva de
exilados foi encaminhada para a Babilônia). Nesta fase, o profeta preocupou-se
em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio
terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em
denunciar a multiplicação das infidelidades a Jahwéh por parte desses membros
do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.
A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrolou-se
a partir de 586 a.C.
e prolongou-se até cerca de 570
a.C.. Instalados numa terra estrangeira, privados de
Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados estavam desiludidos e duvidavam
de Jahwéh e do compromisso que Deus tinha assumido com o seu Povo. Nessa fase,
Ezequiel procurou alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a
certeza de que o Deus salvador e libertador não tinha abandonado nem esquecido
o seu Povo.
O texto que nos é proposto hoje como primeira leitura
faz parte do relato da vocação de Ezequiel (cf. Ez 1,1-3,27). Depois de
descrever a manifestação de Deus, num quadro que apresenta todas as
características especiais das teofanias (cf. Ez 1,1-28), o profeta apresenta um
discurso no qual Jahwéh define a missão que lhe vai confiar (cf. Ez 2,1-3,15).
O episódio é situado “no quinto ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na Caldeia,
nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2).
Seria um erro interpretar este relato como informação
biográfica… Trata-se, antes, de mostrar – com a linguagem da época e utilizando
os processos típicos da literatura da época – que o profeta recebeu uma missão
de Deus e que fala e actua em nome de Deus.
O nosso texto apresenta alguns dos elementos típicos
dos relatos de vocação e que fazem parte de qualquer história de vocação.
Sugere-se, em primeiro lugar, que a vocação profética
é um desígnio divino. Não se nomeia Jahwéh diretamente; mas aquele que chama
Ezequiel não pode ser outro senão Deus… O nosso texto é antecedido (cf. Ez
1,1-28) de uma solene manifestação de Deus. Depois, o profeta ouve uma “voz”
que o chama (vers. 2) e que revela a Ezequiel que deve dirigir-se a esse Povo
rebelde que se insurgiu contra Deus. Há também uma referência ao “espírito” que
se apossou do profeta e o fez “levantar”; de acordo com a reflexão judaica, era
Deus que comunicava uma força divina – o seu “espírito” – àqueles que escolhia
para enviar a salvar o seu Povo, como os juízes (cf. Jz 14,6.19; 15,14), os
reis (cf. 1 Sam 10,6.10; 16,13) e os profetas (no caso de Ezequiel, esse
“espírito” aparece como uma manifestação especialmente violenta de Deus, que se
apossa do profeta e o destina para o seu serviço). A vocação é sempre uma
iniciativa de Deus e não uma escolha do homem. Foi Deus que chamou Ezequiel e
que o designou para o seu serviço.
Em segundo lugar, aparece a ideia de que o chamamento
é dirigido a um homem. Ezequiel é chamado “filho de homem” (vers. 3) –
expressão hebraica que significa simplesmente “homem ligado à terra, fraco e
mortal. Deus chama homens frágeis e limitados, não seres extraordinários,
etéreos, dotados de capacidades incomuns… O que é decisivo não são as
qualidades extraordinárias do profeta, mas o chamamento de Deus e a missão que
Deus lhe confia. A indignidade e a limitação, típicas do “filho do homem”, não
são impeditivas para a missão: a eleição divina dá ao profeta autoridade,
apesar dos seus limites bem humanos.
Em terceiro lugar, temos a definição da missão.
Ezequiel, o profeta, é enviado a um Povo rebelde, que continuamente se afasta
dos caminhos de Jahwéh. A sua missão é apresentar a esse Povo as propostas de
Deus. O mais importante não é que as palavras do profeta sejam ou não
escutadas; o que é importante é que o profeta seja, no meio do Povo, a voz que
indica os caminhos de Deus (vers. 4-5).
A vida de Ezequiel realizou integralmente o projeto de
Deus. Chamado por Jahwéh, ele foi, no meio do Povo exilado na Babilônia, uma
voz humana através da qual Deus apresentou ao seu Povo o caminho para a vida
plena e verdadeira. É essa a missão do profeta.
ATUALIZAÇÃO
• Os “profetas” não são um grupo humano extinto há
muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para
intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde
estão eles?
• No Batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de
Cristo. Cada um de nós tem a sua história de vocação profética: de muitas
formas Deus entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta
positiva à sua proposta. Temos consciência de que Deus nos chama – às vezes de
formas bem banais – à missão profética? Estamos atentos aos sinais que Ele
semeia na nossa vida e através dos quais Ele nos diz, dia a dia, o que quer de
nós? Temos a noção de que somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus se
dirige aos homens?
• O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus
e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário).
Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que Ele tem para o mundo, e
confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a distância
que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome
de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas,
simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que desfeiam o
nosso mundo? Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer
a minha vocação profética?
• A denúncia profética implica, tantas vezes, a
perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte
(Óscar Romero, Luther King, Gandhi…). Como lidamos com a injustiça e com tudo
aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça,
alguma vez nos impediram de ser profetas?
• É preciso ter consciência, também, que as nossas
limitações e indignidades muito humanas não podem servir de desculpa para
realizar a missão que Deus quer confiar-nos: se Ele nos pede um serviço,
dar-nos-á também a força para superar os nossos limites e para cumprir o que
nos pede. As fragilidades que fazem parte da nossa humanidade não podem, em
nenhuma circunstância, servir de desculpa para não cumprirmos a nossa missão
profética no meio dos nossos irmãos.
SALMO RESPONSORIAL
– Salmo 122 (123)
Refrão: Os nossos olhos estão postos no Senhor,
até que Se
compadeça de nós.
Levanto os olhos para Vós,
para Vós que habitais no Céu,
como os olhos do servo
se fixam nas mãos do seu senhor.
Como os olhos da serva
se fixam nas mãos da sua senhora,
assim os nossos olhos se voltam para o Senhor nosso
Deus,
até que tenha piedade de nós.
Piedade, Senhor, tende piedade de nós,
porque estamos saturados de desprezo.
A nossa alma está saturada do sarcasmo dos arrogantes
e do desprezo dos soberbos.
LEITURA II –
2Cor 12,7-10
A Segunda Carta de Paulo aos Coríntios espelha uma
época de relações conturbadas entre Paulo e os cristãos de Corinto. As críticas
de Paulo a alguns membros da comunidade que levavam uma vida pouco consentânea
com os valores cristãos (Primeira Carta aos Coríntios) provocaram uma reação
extremada e uma campanha organizada no sentido de desacreditar Paulo. Essa
campanha foi instigada por certos missionários itinerantes procedentes das
comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e
que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo. Entre outras coisas, esses
missionários afirmavam que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter
convivido com Jesus e que a catequese apresentada por Paulo não estava em
consonância com a doutrina da Igreja. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se
apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores.
Depois, bastante magoado, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino
negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar a reconciliação.
Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi
aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito
eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra
vez, em comunhão com Paulo.
Reconfortado, Paulo escreveu uma tranquila apologia do
seu apostolado, à qual juntou um apelo em favor de uma coleta para os pobres da
Igreja de Jerusalém. Esse texto é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios.
Estamos no ano 56 ou 57.
O texto que nos é proposto integra a terceira parte da
carta (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Aí Paulo, num estilo apaixonado, às vezes
cáustico, mas sempre levado pela exigência da verdade e da fé, defende a
autenticidade do seu ministério frente a esses “super-apóstolos” que o acusavam.
Como apóstolo, Paulo não se sente inferior a ninguém e
muito menos aos seus detratores. Estes orgulhavam-se das suas credenciais e
afirmavam por toda a parte os seus dons carismáticos… Paulo, se quisesse entrar
no mesmo jogo, podia orgulhar-se de muitas coisas, nomeadamente das revelações
que recebeu e das suas experiências místicas (cf. 2 Cor 12,1-4); mas ele quer
apenas que o vejam como um homem frágil e vulnerável, a quem Deus chamou e a
quem enviou para dar testemunho de Jesus Cristo no meio dos homens.
Assumindo essa condição de debilidade e de
vulnerabilidade, Paulo fala aos Coríntios de uma limitação que transporta no
seu corpo, um “anjo de Satanás” que lhe recorda continuamente a sua finitude e
fragilidade (vers. 7). De que é que se trata, em concreto? Não o sabemos.
Provavelmente, trata-se de uma doença física crônica (em Gal 4,13-14 Paulo fala
de uma grave enfermidade física, que fez com que o corpo do apóstolo fosse,
para os Gálatas, “uma provação”; mas nada garante que essa enfermidade física
esteja relacionada com este “anjo de Satanás” de que ele fala aos Coríntios). O
fato de Paulo chamar a essa limitação que o apoquenta um “anjo de Satanás” deve
ter a ver com o fato de a mentalidade judaica ligar as enfermidades aos
“espíritos maus”. De acordo com outra interpretação, esse “espinho na carne”
que é um “anjo de Satanás” poderia referir-se também aos obstáculos que Satanás
põe a Paulo no que diz respeito ao anúncio do Evangelho.
Em todo o caso, o problema pessoal de Paulo mostra como
a finitude e a fragilidade não são determinantes para a missão; o que é
determinante é a graça de Deus… Com a graça de Deus, Paulo tudo pode, apesar da
sua debilidade. Deus não eliminou o problema, apesar dos insistentes pedidos de
Paulo; mas é Ele que dá a Paulo a força para continuar a sua missão, apesar dos
limites que esse “espinho na carne” lhe impõe. Na verdade, o problema pessoal
de que Paulo sofre dá testemunho de que Deus atua e manifesta o seu poder no
mundo através de instrumentos débeis, finitos e limitados. No apóstolo – ser
humano, vivendo na condição de finitude, de vulnerabilidade, de debilidade –
manifesta-se ao mundo e aos homens a força de Deus e de Cristo.
ATUALIZAÇÃO
• O caso pessoal de Paulo diz-nos muito sobre os
métodos de Deus… Para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar a sua
proposta de salvação, Deus não utiliza métodos espetaculares, poderosos,
majestosos, que se impõem de forma avassaladora e que deixam uma marca de estupefação
e de espanto na memória dos povos; mas, quase sempre, Deus utiliza a fraqueza,
a debilidade, a fragilidade, a simplicidade para nos dar a conhecer os seus
caminhos. Nós, homens e mulheres do séc. XXI, deixamo-nos, facilmente,
impressionar pelos grandes gestos, pelos cenários magnificentes, pelas
roupagens suntuosas, por tudo o que aparece envolvido num halo cintilante de
riqueza, de prestígio social, de poder, de beleza; e, por outro lado, temos
mais dificuldade em reparar naquilo que se apresenta pobre, humilde, simples,
frágil, débil… A Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante-nos que é na
fraqueza que se revela a força de Deus. Precisamos de aprender a ver o mundo,
os homens e as coisas com os olhos de Deus e a descobrir esse Deus que, na
debilidade, na simplicidade, na pobreza, na fragilidade, vem ao nosso encontro
e nos indica os caminhos da vida.
• A consciência de que as suas qualidades e defeitos
não são determinantes para o sucesso da missão, pois o que é importante é a
graça de Deus, deve levar o “profeta” a despir-se de qualquer sentimento de
orgulho ou de auto-suficiência. O “profeta” deve sentir-se, apenas, um
instrumento humano, frágil, débil e limitado, através do qual a força e a graça
de Deus agem no mundo. Quando o “profeta” tem consciência desta realidade, percebe
como são despropositadas e sem sentido quaisquer atitudes de vedetismo ou de
busca de protagonismo, no cumprimento da missão… A missão do “profeta” não é
atrair sobre si próprio as luzes da ribalta, as câmaras da televisão ou o olhar
das multidões; a missão do “profeta” é servir de veículo humano à proposta
libertadora de Deus para os homens.
• Como pano de fundo do nosso texto, está a polêmica
de Paulo com alguns cristãos que não o aceitavam. Ao longo de todo o seu
percurso missionário, Paulo teve de lidar frequentemente com a incompreensão;
e, muitas vezes, essa incompreensão veio até dos próprios irmãos na fé e dos
membros dessas comunidades a quem Paulo tinha levado, com muito esforço, o
anúncio libertador de Jesus. No entanto, a incompreensão nunca abalou a decisão
e o entusiasmo de Paulo no anúncio da Boa Nova de Jesus… Ele sentia que Deus o
tinha chamado a uma missão e que era preciso levar essa missão até ao fim,
doesse a quem doesse… Frequentemente, temos de lidar com realidades
semelhantes. Todos experimentamos já momentos de incompreensão e de oposição
(que, muitas vezes, vêm do interior da nossa própria comunidade e que, por
isso, magoam mais). É nessas alturas que o exemplo de Paulo deve brilhar diante
dos nossos olhos e ajudar-nos a vencer o desânimo e a tentação de desistir.
• Neste texto de Paulo (como, aliás, em quase todos os
textos do apóstolo), transparece a atitude de vida de um cristão para quem
Cristo é, verdadeiramente, o centro da própria existência e que só vive em
função de Cristo… Nada mais lhe interessa senão anunciar as propostas de Cristo
e dar testemunho da graça salvadora de Cristo. Que lugar ocupa Cristo na minha
vida? Que lugar ocupa Cristo nos meus projeto, nas minhas decisões, nas minhas
opções, nas minhas atitudes?
ALELUIA –
cf. Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Espírito do Senhor está sobre mim:
Ele me enviou a anunciar o Evangelho aos pobres.
EVANGELHO –
Mc 6,1-6
O Evangelho de hoje fala-nos de uma visita à “terra”
de Jesus. De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma pequena vila
da Galileia situada a 22 Km
a oeste do Lago de Tiberíades. Esta povoação tipicamente agrícola nunca teve
grande importância no universo na história do judaísmo… O Antigo Testamento
ignora-a completamente; Flávio Josefo e os escritores rabínicos também não lhe
fazem qualquer referência. Os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe
escassa consideração (cf. Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus
cresceu e onde reside a sua família.
A cena principal que nos é relatada por Marcos
passa-se na sinagoga de Nazaré, num sábado. Jesus, como qualquer outro membro
da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e,
fazendo uso do direito que todo o israelita adulto tinha, leu e comentou as Escrituras.
O episódio que nos é proposto integra a primeira parte
do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Jesus é apresentado como o
Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Na secção que vai
de 3,7 a
6,6, contudo, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo face à
proclamação de Jesus… À medida que o “caminho do Reino” vai avançando, vão-se
multiplicando as oposições e incompreensões face ao projeto que Jesus anuncia.
O nosso texto deve ser entendido neste ambiente.
MENSAGEM
Os ensinamentos de Jesus na sinagoga, naquele sábado,
deixam impressionados os habitantes de Nazaré, como já tinham deixado
impressionados os fiéis da sinagoga de Cafarnaum (cf. Mc 1,21-28). No entanto,
os de Cafarnaum, depois de ouvir Jesus, reconheceram a sua autoridade mais do
que divina (e que, segundo eles, era diferente da autoridade dos doutores da
Lei); os de Nazaré vão chegar a conclusões distintas.
Depois de escutarem Jesus, na sinagoga, os seus
conterrâneos traduzem a sua perplexidade através de várias perguntas… Duas das
questões postas dizem respeito à origem e à qualidade dos ensinamentos de Jesus
(“de onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada?” – vers.
2); uma outra questão refere-se à qualificação das ações de Jesus (“e os
prodigiosos milagres feitos por suas mãos?” – vers. 2).
Numa espécie de contraponto à impressão que Jesus lhes
deixou, eles recordam o seu ofício e a “normalidade” da sua família (vers. 3a)…
Para eles, Jesus é “o carpinteiro”: não é um “rabbi”, nunca estudou as
Escrituras com nenhum mestre conceituado e não tem qualificações para dizer as
coisas que diz. Por outro lado, eles conhecem a identidade da família de Jesus
e não descobrem nela nada de extraordinário: Ele é o “filho de Maria” e os seus
irmãos e irmãs são gente “normal”, que toda a gente conhece em Nazaré e que
nunca revelaram qualidades excepcionais. Portanto, parece claro que o papel
assumido por Jesus e as acções que Ele realizou são humanamente inexplicáveis.
A questão seguinte (que, no entanto, não aparece
explicitamente formulada) é esta: estas capacidades extraordinárias que Jesus
revela (e que não vêm certamente dos conhecimentos adquiridos no contacto com
famosos mestres, nem do ambiente familiar) vêm de Deus ou do diabo? Desde o primeiro
momento, os comentários dos habitantes de Nazaré deixam transparecer uma
atitude negativa e um tom depreciativo na análise de Jesus. Nem sequer se
referem a Jesus pelo próprio nome, mas usam sempre um pronome para falar d’Ele
(Jesus é “este” ou “ele” - vers. 2-3). Depois, chamam-Lhe depreciativamente “o
filho de Maria” (o costume era o filho ser conhecido em referência ao pai e não
à mãe). Como cenário de fundo do pensamento dos habitantes de Nazaré está
provavelmente a acusação feita a Jesus algum tempo antes pelos “doutores da Lei
que haviam descido de Jerusalém e que afirmavam: «Ele tem Belzebu! É pelo chefe
dos demônios que ele expulsa os demônios»“ (Mc 3,22). Marcos conclui que os
habitantes de Nazaré ficaram “escandalizados” (vers. 3b) com Jesus (o verbo
grego “scandalidzô”, aqui utilizado, significa muito mais do que o “ficar
perplexo” das nossas traduções: significa “ofender”, “magoar”, “ferir
susceptibilidades”). Há na vila uma espécie de indignação porque Jesus, apesar
de ter sido desautorizado pelos mestres reconhecidos do judaísmo, continua a
desenvolver a sua atividade à margem da instituição judaica. Ele põe em causa a
religião tradicional, quando ensina coisas diferentes e de forma diferente dos
mestres reconhecidos. Conclusão: Ele está fora da instituição judaica; o seu
ensinamento não pode, portanto, vir de Deus, mas do diabo. Os conterrâneos de
Jesus não conseguem reconhecer a presença de Deus naquilo que Jesus diz e faz.
Jesus responde aos seus concidadãos (vers. 4) citando
um conhecido provérbio, mas que Ele modifica, em parte (o original devia soar
mais ou menos assim: “nenhum profeta é respeitado no seu lugar de origem,
nenhum médico faz curas entre os seus conhecidos”). Nessa resposta, Jesus
assume-Se como profeta – isto é, como um enviado de Deus, que atua em nome de
Deus e que tem uma mensagem de Deus para oferecer aos homens. Os ensinamentos
que Jesus propõe não vêm dos mestres judaicos, mas do próprio Deus; a vida que
Ele oferece é a vida plena e verdadeira que Deus quer propor aos homens.
A recusa generalizada da proposta que Jesus traz
coloca-o na linha dos grandes profetas de Israel. O Povo teve sempre
dificuldade em reconhecer o Deus que vinha ao seu encontro na palavra e nos
gestos proféticos. O facto de as propostas apresentadas por Jesus serem
rejeitadas pelos líderes, pelo povo da sua terra, pelos seus “irmãos e irmãs” e
até pelos da sua casa não invalida, portanto, a sua verdade e a sua procedência
divina.
Porque é que Jesus “não podia ali fazer qualquer
milagre” (vers. 5)? Deus oferece aos homens, através de Jesus, perspectivas de
vida nova e eterna… No entanto, os homens são livres; se eles se mantêm
fechados nos seus esquemas e preconceitos egoístas e rejeitam a vida que Deus
lhes oferece, Jesus não pode fazer nada. Marcos observa, apesar de tudo, que
Jesus “curou alguns doentes impondo-lhes as mãos”. Provavelmente, estes
“doentes” são aqueles que manifestam uma certa abertura a Jesus mas que, de
qualquer forma, não têm a coragem de cortar radicalmente com os mecanismos religiosos
do judaísmo para descobrir a novidade radical do Reino que Jesus anuncia.
Marcos nota ainda a “surpresa” de Jesus pela falta de
fé dos seus concidadãos (vers. 6a). Esperava-se que, confrontados com a
proposta nova de liberdade e de vida plena que Jesus apresenta, os seus
interlocutores renunciassem à escravidão para abraçar com entusiasmo a nova
realidade… No entanto, eles estão de tal forma acomodados e instalados, que
preferem a vida velha da escravidão à novidade libertadora de Jesus.
Este facto decepcionante não impede, contudo, que
Jesus continue a propor a Boa Nova do Reino a todos os homens (vers. 6b). Deus
oferece, sem interrupção, a sua vida; ao homem resta acolher ou não esse
oferecimento.
ATUALIZAÇÃO
• O texto do Evangelho repete uma ideia que aparece
também nas outras duas leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na
fraqueza e na fragilidade. Normalmente, Ele não se manifesta na força, no
poder, nas qualidades que o mundo acha brilhantes e que os homens admiram e
endeusam; mas, muitas vezes, Ele vem ao nosso encontro na fraqueza, na
simplicidade, na debilidade, na pobreza, nas situações mais simples e banais,
nas pessoas mais humildes e despretensiosas… É preciso que interiorizemos a
lógica de Deus, para que não percamos a oportunidade de O encontrar, de
perceber os seus desafios, de acolher a proposta de vida que Ele nos faz…
• Um dos elementos questionantes no episódio que o
Evangelho deste domingo nos propõe é a atitude de fechamento a Deus e aos seus
desafios, assumida pelos habitantes de Nazaré. Comodamente instalados nas suas
certezas e preconceitos, eles decidiram que sabiam tudo sobre Deus e que Deus
não podia estar no humilde carpinteiro que eles conheciam bem… Esperavam um
Deus forte e majestoso, que se havia de impor de forma estrondosa, e assombrar
os inimigos com a sua força; e Jesus não se encaixava nesse perfil. Preferiram
renunciar a Deus, do que à imagem que d’Ele tinham construído. Há aqui um
convite a não nos fecharmos nos nossos preconceitos e esquemas mentais bem
definidos e arrumados, e a purificarmos continuamente, em diálogo com os irmãos
que partilham a mesma fé, na escuta da Palavra revelada e na oração, a nossa
perspectiva acerca de Deus.
• Para os habitantes de Nazaré Jesus era apenas “o
carpinteiro” da terra, que nunca tinha estudado com grandes mestres e que tinha
uma família conhecida de todos, que não se distinguia em nada das outras
famílias que habitavam na vila; por isso, não estavam dispostos a conceder que
esse Jesus – perfeitamente conhecido, julgado e catalogado – lhes trouxesse
qualquer coisa de novo e de diferente… Isto deve fazer-nos pensar nos
preconceitos com que, por vezes, abordamos os nossos irmãos, os julgamos, os
catalogamos e etiquetamos… Seremos sempre justos na forma como julgamos os
outros? Por vezes, os nossos preconceitos não nos impedirão de acolher o irmão
e a riqueza que Ele nos traz?
• Jesus assume-Se como um profeta, isto é, alguém a
quem Deus confiou uma missão e que testemunha no meio dos seus irmãos as
propostas de Deus. A nossa identificação com Jesus faz de nós continuadores da
missão que o Pai Lhe confiou. Sentimo-nos, como Jesus, profetas a quem Deus
chamou e a quem enviou ao mundo para testemunharem a proposta libertadora que
Deus quer oferecer a todos os homens? Nas nossas palavras e gestos ecoa, em
cada momento, a proposta de salvação que Deus quer fazer a todos os homens?
• Apesar da incompreensão dos seus concidadãos, Jesus
continuou, em absoluta fidelidade aos planos do Pai, a dar testemunho no meio
dos homens do Reino de Deus. Rejeitado em Nazaré, Ele foi, como diz o nosso
texto, percorrer as aldeias dos arredores, ensinando a dinâmica do Reino. O
testemunho que Deus nos chama a dar cumpre-se, muitas vezes, no meio das
incompreensões e oposições… Frequentemente, os discípulos de Jesus sentem-se
desanimados e frustrados porque o seu testemunho não é entendido nem acolhido
(nunca aconteceu pensarmos, depois de um trabalho esgotante e exigente, que
estivemos a perder tempo?)… A atitude de Jesus convida-nos a nunca desanimar
nem desistir: Deus tem os seus projetos e sabe como transformar um fracasso num
êxito.
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