“Mestre, qual é o maior mandamento da lei?”
“Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão [na linguagem semítica “odiar” equivale a “não amar”], é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar.” (1 Jo 4, 20)
As palavras cortantes do “discípulo a quem Jesus amava”, não deixam dúvidas nem ilusões: o irmão é o “sacramento” no qual Deus se torna visível e tangível, aqui e agora.
Nele se encontra Deus a cada dia e em cada momento e situação da vida.
Quem não reconhece a Deus no irmão e não o ama, partilhando de suas
necessidades e promovendo sua dignidade, ilude a si mesmo e talvez os
demais, mas não pode enganar a Deus: é um mentiroso!
O amor é
como a linfa vital que brota da única raiz, e se estende até os
pormenores dos ramos e às folhas mais longínquas da árvore; do
contrário, os ramos morrem e não dão frutos. O amor é como o sangue
impelido pelo coração até as menores veias do corpo para alimentá-lo; em
caso contrário, os órgãos fenecem. O amor, que é participação à própria
vida de Deus, ou abrange num único abraço a Deus, a si mesmo e o irmão,
ou se torna uma força que destrói a vida! Um amor dividido e limitado é
uma mentira em relação às potencialidades que traz consigo, enquanto
dom divino ao homem e à mulher.
Infelizmente
os letrados que conhecem tão bem a letra da Torá, não estão procurando a
verdade para crescer na qualidade da própria vida, mas armando
armadilhas para experimentar e provocar dificuldade a Jesus. É o perene e
sempre atual paradoxo dos que se aproximam de Deus não para viver, mas
para desculparem-se a si mesmos e para não mudar de vida. “Mestre qual é o maior mandamento da lei?”.
Pergunta não inusual dos discípulos aos mestres da lei, nas escolas de
Israel. A resposta de Jesus, não fica nas nuvens das discussões
acadêmicas familiares entre os letrados, mas aponta diretamente para o
caminho da vida.
Se o homem, à
causa da sua interioridade conflituosa, tem tendência a dividir e
contrapor, Jesus, o “homem novo”, plenamente unificado em si mesmo e
fonte de unidade, prospecta um horizonte de unidade e um caminho de
responsabilidade. Segundo a narração de Lucas, ao fariseu que o
interroga e lembra a proximidade dos mandamentos do amor a Deus e ao
próximo, Jesus dá uma resposta lapidária: “Respondeste corretamente; faze isto e viverás” (Lc 10, 28-29). A atitude de Jesus retoma uma temática descrita no livro dos salmos: “Com o homem puro, tu és puro, com o astuto, tu és prudente”. (Sl 18,26)
Jesus, o
Verbo encarnado do Pai, na fragilidade da sua condição de filho do
carpinteiro e natural da desprezada cidadinha de Nazaré, nos revela o
Pai e constitui o único e autêntico caminho que conduz à Ele. Do mesmo
modo, o irmão e a irmã, sobretudo os que se encontram em maior
fragilidade, nos fazem tocar com nossas mãos e nos revelam o próprio
Jesus. É ele mesmo que neles é honrado, servido, ou desprezado: “Tive
fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era
forasteiro e recolhestes… Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a
um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes… Em verdade vos
digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos,
foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25, 31-46).
O mistério
da encarnação do Verbo de Deus continua atual, ao passar da pessoa de
Jesus de Nazaré para os pobres; assim como a atuação do amor que
transforma os corações das pessoas e a história, este continua a operar
na pessoa de Jesus através dos que, nele permanecendo como os ramos na
videira, produzem os frutos da vida nova. “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34).
A memória do
amor de Jesus até o dom da própria vida, se torna memória que subverte
as situações ambíguas, cultivadas pela falsa religiosidade e a
espiritualidade desencarnada, que separam o suposto amor a Deus do
efetivo amor aos irmãos. Tal memória denuncia a separação da sua
nascente que é o exemplo pascal de Jesus e o Espírito que ele derramou
da cruz, e que participamos por graça nos sacramentos da iniciação
cristã.
Quando Jesus, na última ceia, partiu e distribuiu o pão aos discípulos, acompanhando o gesto com as palavras “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”
(Lc 22,19), ele não se limitou a instituir simplesmente um “novo rito”,
o rito da nova páscoa, mas entregou aos discípulos a “nascente perene”
da existência nova, a ser construída nas recíprocas relações do dia a
dia, e o “modelo divino” a testemunhar e difundir para uma nova
humanidade.
Eis como
João, a partir da experiência pessoal do amor sem limites recebido de
Jesus, sintetiza o horizonte de vida radicalmente novo, inaugurado por
Jesus com a sua morte por amor, participado aos discípulos com a efusão
do Espírito Santo, e entregue a eles como “mandamento novo”, que
qualifica a aliança “nova” estipulada no seu sangue derramado por amor. “Dou-vos
um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35; cf 15,12-14).
Da
experiência do amor recebido e da capacitação por ele gerada, nasce a
entrega do mandamento novo e a possibilidade de cumpri-lo, não como
obrigação de uma lei exterior, mas como resposta à uma vocação que vem
do interior , e como vida que segue e imita o exemplo do Senhor: Depois
de ter lavado os pés aos discípulos com a humildade do escravo e o amor
de uma mãe, Jesus acrescenta: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13, 15).
Esta
conformação interior a Cristo na sua páscoa é graça, e não fruto dos
nossos esforços. Por isso a Igreja pede com humildade e confiança: “Ó
Deus, que os vossos sacramentos produzam em nós o que significam, a fim
de que um dia entremos em plena posse do mistério que agora celebramos” (Oração depois da comunhão).
À luz do exemplo de Jesus, os dois preceitos do Deuteronômio e do Levítico: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento” (Dt 6,5), e “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”
(Lv 19,18), não podem em nenhuma maneira ficar divididos. Em realidade,
é na radical unidade recíproca destes que se realiza o projeto de vida
de Deus, manifestado através da Torá e dos profetas. Paulo, com uma
fórmula ainda mais lapidária, sintetiza assim a vida nova dos batizados
em Cristo: “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor
mútuo, pois o que ama o outro cumpriu a lei… Portanto a caridade é a
plenitude da lei” (Rm 13, 8-10. cf Gl 5,13.15).
A leitura do
Êxodo nos orienta para a mesma direção. A memória sagrada da
experiência da libertação da escravidão do Egito, por iniciativa
gratuita de Deus, funda a possibilidade e a exigência que para que
Israel assuma, na organização da vida social, o mesmo estilo de atenção e
de cuidado em relação aos mais necessitados e frágeis, como são as
viúvas, os estrangeiros os pobres “Não oprimas nem maltrates
o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito. Não
façais mal algum à viúva nem ao órfão” (Ex 22, 20-21). Deus está sempre da parte dos oprimidos e dos pobres: “Se os maltratardes, gritarão para mim, e eu ouvirei seu clamor” (Ex 22, 22). Assim fez Deus ao ouvir o clamor do seu povo sofrido na escravidão (cf. Ex 3, 7-8).
Hoje em dia,
continua a levantar-se o grito de tantas pessoas oprimidas em muitas
maneiras, mesmo nos direitos mais elementares da dignidade humana, nos
países pobres, nos países em desenvolvimento, assim como nos países mais
ricos.
Na Europa a
atitude prevalente em relação aos imigrantes dos países mais pobres, é o
medo e a recusa. Aos que conseguem entrar, muitas vezes são reservadas
condições de escravidão e de abandono. O Papa Bento XVI tem repetido que
a solução das violentas crises financeiras e econômicas atuais, passa
para a necessária mutação do parâmetro do proveito como critério
absoluto da economia, para o da solidariedade.
Também o
Brasil, no processo de uma acelerada transformação, continua
experimentando a marginalização de milhões de pessoas. O evangelho de
hoje nos diz que como cristãos não podemos nos justificar, dizendo que
tudo isso é problema que pertence aos profissionais da vida social e
política. Cada um é chamado a iniciar de si mesmo, a se fazer “próximo”
para os que se encontram no caminho cotidiano da sua vida, como fez o
“bom samaritano:” “Vai, e também tu, faze o mesmo” (Lc 10, 37).
O sofrimento
dos pobres é um grito que se eleva ao Senhor, e interpela também nossa
consciência de cristãos e cristãs, para um empenho de promoção da
justiça e da partilha mais justa dos recursos culturais, sociais,
econômicos, espirituais. Nossas celebrações da páscoa de Jesus nos
domingos, poderiam cair sob a acusação de “Mentira” por parte de Jesus,
se não nos procuramos sair do nosso interesse individual, para nos abrir
ao serviço do Senhor na pessoa humana em que está impressa a imagem de
Deus.
Paulo, na
segunda leitura contempla com alegria as maravilhas operadas pela
Palavra recebida com fé por parte dos tessalonicenses, que sob o impulso
transformador do Espírito, tem assumido um estilo de vida moldado pelo
exemplo do apóstolo e do próprio Jesus. Nesta maneira eles se tornaram “evangelho vivente”
que continua se espalhando em toda a Macedônia e a Ásia (1 Ts 1,6- 8).
Esta é também hoje a maneira mais eficaz para testemunhar e divulgar a
“boa nova” de Jesus e de participar à “nova evangelização” à qual o papa
Bento XVI está convidando todos os cristãos e as cristãs, com a
promulgação do “Ano da fé” a se realizar no 2012-2013. “Assim vos tornastes modelo para todos os fieis da Macedônia e da Ásia” (1 Ts 1,7).
O convite de
Jesus a anunciar a boa nova é sempre atual, e o empenho para uma
resposta generosa e criativa com a graça e o vigor do Espírito, sempre
novo. Esta é a nossa páscoa que nos aproxima sempre mais ao cumprimento
do reino de Deus, que nestes últimos domingos do ano litúrgico, a Igreja
celebra como o horizonte central da própria fé e da própria esperança,
movida pelo único amor a Deus e aos homens que anima seu coração de
mãe.
“Deus
eterno e todo-poderoso, aumentai em nós a fé, a esperança e a caridade e
dai-nos amar o que ordenais, para conseguirmos o que prometeis. Por
Cristo nosso Senhor” (Oração do dia).
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